Isto não é quarentena, é centena. Confesso ter saudades dos anos 80. A nossa geração, cinquentona, não foi à guerra, foi brindada com uma adolescência que era doce quando nos abanou com a bandeira da liberdade. Não fomos à guerra, nem passámos fome, ficámos apenas com a ressaca do Estado Novo, da Segunda Guerra Mundial, do Ultramar e agora, dos anos 90, da década de 2000 e dos seus dez anos seguintes em que a tecnologia apareceu como a salvadora do mundo, quisá dos mundos... E que afinal não salvou nada antes serviu máquinas de propaganda e de publicidade (são coisas diferentes) de todos os tipos de objectos, de bens e serviços e de todas as vertigens ideológicas em que se podem pensar. Somos a geração das ressacas sem ter bebido álcool suficiente (isso fazem as novas gerações). Qualquer um de nós, se for minimamente inteligente, conhece o sabor dos sonhos desfeitos e das frustrações, tornou-se legitimamente desconfiado de qualquer promessa. Os que não são minimamente inteligentes ressonam a sono solto e chegam até a pensar que o mundo está no bom caminho. E até está, a desintegração faz parte do ciclo. Agora, e para que não nos falte nada, levámos com um vírus em cima. Antes dele já ouvíamos notícias como consecutivas ameaças estupendas: "Por ano morrem não sei quantos mil de doenças cardíacas, rins, cancro, gripe, diabetes, acidentes, cabeças partidas, ombros deslocados, de depressão e da mais sublime de todas, a culpa". Chegámos a questionarmo-nos se teríamos a sorte de morrer saudáveis. Os telejornais pareciam salas de pânico. Agora são o pânico lado a lado com a bandeira da liberdade. "Seja livre, tenha o seu próprio pânico." Escolha: "A miséria, a doença, a angustia do futuro ou o acidente puro e simples!". Traduzida por miúdos é isso que a informação/ propaganda faz. Não informa: propaga o pânico que já vinha sido preparado muito antes da virose. Os cinquentões herdaram a liberdade de escolher o seu próprio medo, o seu próprio filme de terror porque a maior parte dos cinquentões não se transformou em bonecos de televisão, embora alguns deles se tenham tornado em bonecos do Facebook como compensação à frustração (produto da ideia conjunta dos "ganhadores" - americana e dos "salvadores" - católica apostólica latina). Já não somos nós que não somos deste mundo, é Deus que já não é deste mundo, e alguns de nós, cinquentões, estamos com ele, damos-Lhe a mão e zarpamos sem ir para a rua gritar - tornámo-nos desconfiados com os gritos de rua que podem ser de tudo. Como Ele, só queremos ser deixados em paz e recusamo-nos a opinar sobre as ideologias e os bens de consumo. A poluição foi, na nossa infância, a madrasta má que tínhamos de superar, coisa que nunca fizemos por estarmos demasiado ocupados a tentar refazer sonhos depois de desfeitos. Os cinquentões que não estão exaustos andam de punho no ar (o esquerdo ou o direito, tanto faz) numa achega à utopia ou andam a tentar pagar a casa e o carro por entre viroses, fora os que morrem apanhados por alguma estatística devidamente dada a conhecer pela comunicação social. Os mais inteligentes aproveitam a nesga de céu que se consegue ver do apartamento das cidades donde nunca chegaram a sair por não poderem, as novas sarjetas porque a cidade só oferece confusão e barulho. Os que conseguiram fugir são acusados de egoísmo extremo embora eu pense que foram extremamente generosos para com eles próprios, o que é bem diferente, e percebe-se bem, era uma questão de sanidade, de higiene e de assegurar algum equilíbrio. O mesmo fez Noé e ninguém se queixa dele. Nunca serão heróis (nem estão interessados nisso), só esperam poder ler um livro em paz sem antes nem depois e reduzem a sua humanidade a uma aproximação a Deus e não às malditas religiões que andam sempre a reboque da angústia, para o jantar e para qualquer refeição, acompanhada por um excelente serviço noticioso tinto. O mundo, tal como está, já é a escama da serpente (até a serpente se livrou desta escama que já a incomodava), seca, desfigurada, coberta de pó e com um virusinho a saltitar por entre os seus buracos feitas pelas lagartas assambarcadoras das crises. Este mundo só tem ponta que se lhe pegue pela solidão da arca, com Noé à cabeça acalmando os animais que olham incrédulos para tudo isto. Nem eles chegaram tão baixo na insconsciencia de si. Uma boa centena de anos na arca e talvez isto apazigue com uma qualquer pomba do Espírito Santo por muito que os neo-templários ergam agora a sua espadita de latão e digam que estão cá para resolver todo e qualquer problema, sem perceberem que eles também fazem parte do problema. Assim, os cinquentões que não se deixam enganar, estão a preparar-se para a centena (o Centeno é uma ironia do destino) de anos que ainda faltam para o Juízo. Se é Final ou não não sabemos, desde que seja para ter juízo tudo bem.
Como disse a Dalila numa conferência: "Vinde, Senhor, que já cheira mal..."
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