domingo, 3 de janeiro de 2021

Autores antigos


Gosto de ler aquela maneira antiga de escrever, dos autores que mantinham a integridade ao longo dos longos textos,  indo buscar referências aqui e ali, cruzando-as, interpretando-as, esclarecendo-as. Os longos ensaios antigos não eram especializados, limitavam-se a colocar na mesa uma mundividência do olhar e do pensar. Hoje, não se pensa, canta-se de galo sobre um qualquer tema. E quando há cruzamento de temas, símbolos, histórias, depressa se cai no desprezível sincretismo onde tudo é igual a tudo. Foi o sincretismo, aliás, o pai da globalização, não foram as Descobertas porque a Casa da Índia era a Casa da Índias e não as casas de todo o mundo. Depois, a forma como se lê, e que esses antigos ensaios estimulam, é lenta, digerida, moldando-se a pouco e pouco na nossa mente, ganhando forma suavemente, sem pressa, a palavra tornada barro vivo. Hoje a pressa com que se escreve é igual à pressa com que se lê. São os textos que querem os resumos acelerados que provocam leitores acelerados, mas sem aquele perfume que fica no ar, depois de um ensaio antigo passar... Aquele perfume que nos faz parar o olhar na estante, naquele livro que lemos há anos e que sentimos, de novo, e no qual sabemos onde fica aquela passagem importante que nos ficou, mais ou menos a meio do livro, mais para o princípio ou mais para o fim, e o local da página exacto: na da direita ou na da esquerda, mais acima ou mais abaixo. Uma memória que nos faz acenar a cabeça e dizer: "É ali, naquele exacto ponto do longo texto, que se confunde com um vasto campo, que se encontra aquela casa feita de palavras e que ainda hoje são argamassa do que pensamos e somos". Desvinculo-me de dia para dia da contemporaneidade que é repetitiva como um robot estragado e que nos obriga a sermos repetitivos, como robots estragados quando dizemos que a contemporaneidade é repetitiva como um robot estragado. Só gosto do que é velho. Praticamente. A contemporaneidade que sou face à contemporaneidade é falsa. Sou falsa quando aplaudo um espectáculo de luzes moderno. Por isso não aplaudo. Prefiro Monet, com as cores pastel que conseguem vibrar, às luzes led das suas pinturas a encherem os quatro cantos e os recantos e os tectos e a nós mesmos de uma sala. Não me interessa nada disso. Dizem os génios que isto é estar contra o mundo. Não me parece. É estar contra o vazio que a contemporaneidade me provoca. Contra o mundo não tenho nada. Contra o vazio tenho tudo. E o mundo não é composto de vazio. Pelo menos o meu não é. No início do século XX, havia pessoas com a cara tapada por causa das epidemias. No início do século XXI também. Haverá maior ilusão de progresso? Gosto daqueles autores que me obrigam a lembrar-me, ao longo do dia, do que escreveram e a relacionar as suas palavras com isto e com aquilo, que me obrigam a viagens interiores inevitáveis em busca da verdade ou da peça de um puzzle, ou da composição certa de um pensamento, de uma sensação. A pressa dos novos ensaístas impõe-nos a sua visão, o seu orgulho, o seu bebé que é o mais bonito e perfeito do mundo. Tal e qual as mães derretidas que ficam assim, numa espécie de êxtase enquanto a primeira infância dura. Falta-nos quem nos leve num passeio livre por esses campos de palavras que parecem não ter fim, e nos façam esquecer das palavras que possamos ou não escrever só para dizermos a nós e aos outros que aprendemos isto e aquilo. A urgência de se ser autor, é a urgência de se querer ser mestre. E nunca se passeia. Nunca nos deitamos à sombra da árvore das palavras, com as mãos cruzadas na nuca a fazerem de almofada, a olhar para elas, vendo como se movem com o vento, como se tocam as folhas e os fólios, os símbolos e as ideias enquanto o rio passa ao nosso lado, alegre por passar ao nosso lado e nós alegres ao vê-lo passar sem o querer apanhar. A profundidade assim é intacta como uma pintura cheia d'alma. A contemporaneidade é um acidente de percurso que me aconteceu sem que a tenha pedido, como um bilhete para um mau filme e do qual saímos a meio por não prestar. Só gosto do que é velho por ser tão fresco, por ser tão intenso, por ser tão profundo, como o azul do céu que parece não acabar. A contemporaneidade arrasa-nos o olfacto, o paladar, como o vírus. E o olhar cada vez mais cego para o verde e o azul que vive nos nossos próprios olhos e nos montes e no mar em volta, pérolas turquesa que trocamos por selfies em estâncias turísticas construídas para todos os cegos que alimentam a cegueira mundana feita de vazios. Diz-me mais um fóssil de dinossauro  do que esta trapalhada do presente. Um fóssil é íntegro. Um bocado íntegro da História dos animais. Os vivos parecem zombies, vão em massa para festivais de música a abanar os braços. Tal e qual os zombies. Um fóssil é algo de concreto. Concretamente morto. Concretamente vivo na nossa imaginação. Os zombies modernos são viscosos. Nem mortos, nem vivos, nem assim-assim. Gosto de ensaios antigos. E da precisão deles, das fontes onde vão buscar as coisas. Os zombies nem sabem o que é uma fonte. Nunca viram nenhuma no caminho que os levou da sepultura ao festival. Vão em linha recta, a balançar em direção ao palco e ali ficam, hipnotizados, com olhos esbugalhados. Sepultados no festival. Os campos das palavras por onde corro estão cheios de flores, de pássaros e de nascentes de água fresca. São coisas velhas. 

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