Olá Fernando.
Nunca vejo este dia como o dia da tua morte porque, por andares sempre vivo para a poesia, aconteceu-te a eternidade, como te aconteceram os poemas. Nas patuscas capelas da vida do possível conhecimento, actual, falta a tua chama. Como bem disseste, "nunca levaram porrada" e convivem bem uns com os outros, mordendo-se no pescoço sempre que podem, mas, tirando esse ambiente tétrico e enfadonho, a alegria foi desviada por um vírus e a tristeza do nevoeiro adensou-se e espalhou-se pelas almas que, mesmo que não o digam, levaram a "porrada" do destino que o vírus trouxe.
Isto provoca uma espécie de ausência antes de tempo, como se já nos víssemos como moribundos, agindo por impulsos elétricos.
Os mais afoitos, trabalham muito, como se não quisessem desligar-se da memória daquilo que foi a vida. Os mais tranquilos, fumam, como tu fumaste, e acompanham com o olhar, o percurso do fumo, que se ergue em espiral, adivinhando nela um qualquer caminho oculto e indizível.
Os sabichões do mercado possuem o traço em comum da total ausência de talento, coisa que te é absolutamente estranha e desconhecida. Noutros tempos, dos quais ainda te foi ofertada uma dádiva, a sabedoria vinha acompanhada pelos dons artísticos. Neste tempo, ela chega seca e espalmada como um enlatado, sem voos nítidos, nem triplos saltos o que nos leva a duvidar se será mesmo sabedoria ou apenas a encenação dela.
Fernando, o nevoeiro é de um cinzento esbranquiçado, algo que nos faz lembrar a luz, ainda que seja uma memória ténue e saturada de água, mas hoje, já não há nevoeiro sequer, excepto aqui onde vivo e tu também, como meu vizinho neste limiar entre a vida e a morte. Hoje há mesmo trevas. Mal se sai deste canto elas iniciam a sua aparição que coincide com o desaparecimento de tudo o que é ou iluminado ou luminoso.
Fernando, andaste para aí a dizer que eras Templário e olha, agora todos são tu e todos dizem sê-lo, ainda que não façam a mínima ideia do que quiseste dizer com aquela história da iniciação directa de mestre a discípulo e pensem que basta um sonho para que estejam "prontos" para qualquer coisa que também não sabem muito bem o que é.
Contemplar o panorama nacional provoca arrepios como um filme de terror (salva-nos alguma paisagem e as flores que teimam em nascer no momentos e lugares mais surpreendentes) às almas mais sensíveis.
Lembras-te de ter escrito que ninguém sabia que alma tinha? Hoje todos dizem saber que alma têm. Afirmam a "personalidade" sistemática, mesmo que seja inventada por um momento. Lembras-te da tua misoginia? Às vezes, mesmo sendo mulher, chego a sentir o mesmo, com estas mulheres que aparecem com as costas muito direitas e o queixo muito levantado como se estivessem a enfrentar um touro sempre que falam. A atitude é a personalidade, sem margem para dúvidas e a personalidade é a alma, sem a sombra da ausência de certezas. Eles não estão melhores e os que não são eles nem elas têm o panache de uma dona de casa instalada na continuidade geracional.
Fernando, adivinho-te pasmado com estas novidades que te trago e quase magoado também. Não foi deste Portugal que falaste. Foi d'outro. Um que até punha apóstrofos sempre que queria e estava livre de diplomacias ortográficas. Nós não somos nada livres. Só talvez uns resquícios do povo, ainda capazes de se rir dos padres e dos ricos na sua brejeirice solta e sem vigilantes suficientemente interessados por se tratarem apenas de resquícios dessa classe, considerada "inferior".
Não tenho dúvidas de que caminhamos todos para o abismo deslumbrados com a alma que julgamos ter, ofuscados pela ciência e pela medida, e terrivelmente deficitários no que toca à verdadeira emoção. Somos como aqueles animais que mudam o comportamento quando se sentem observados. Quando é por Deus, ainda vá que não vá, porque Ele nos dá liberdade, agora quando é por analfabetos de tudo, o caso torna-se parecido com aquilo que aconteceu com as televisões: o nivelamento é feito por baixo.
A baixa poesia é a constante e o sentimentalismo barato, aquilo que é mais vendido nos hipermercados da exposição pública, sobretudo em época pré-natalicía e não só.
O patriotismo tornou-se bélico, militar. Os poetas deixaram de fazer sentido. É a velha teima da casta guerreira a querer afastar os sacerdotes, donos da palavra e dos dons dela. Confundem hoje o sacerdócio com um qualquer cargo eclesiástico e tomam-se de ares de monges guerreiros, quando não são nem uma coisa nem outra, excepto na sua imaginação povoada por guerras santas, mas sempre deserta de obras como a tua, com alicerces bem fixos no céu. Chega a ser patético, Fernando.
Da política nem se fala. É inexistente. Tudo é negócio e negociável e quando algo não é, é morto a tiro, ou com bombas, ou com porrada (que ninguém leva) ou com a fome e os maus tratos.
Fernando, isto está muito mau. Se não fosse o nosso segredo não sei o que seria.
Adoro-te meu querido.
Volta a vista para o céu porque desta terra a única coisa que nos sobra é a paciência da lenta decadência. Volta os olhos para o céu, lá, onde tudo é belo e cheio de Graça.
Beijos enormes, da sempre tua
Cynthia