domingo, 14 de novembro de 2021

A dádiva


 Sempre me deram livros. Desde pequena. Não é que fosse ou seja uma leitora compulsiva e todos soubessem disso. Não. Cheguei à conclusão de que é qualquer coisa de misterioso, como se o universo soubesse que os livros são objectos virtuosos e me concedesse a honra de os ter, vindos assim, sempre pelas mãos de alguém numa espécie de urgência ou de impulso constituído pelo destino. Pego sempre neles como dádivas importantes. Olho-os e digo: dantes não estavam cá, agora estão, porque sim. E há nesse sim, um infinito, um absoluto, uma verdade incontornável e palavras que avisam para nunca esquecer as palavras. As palavras das quais tantas vezes fujo por as pensar inúteis num mundo cheio delas. Presto atenção a esses padrões que surgem na vida. Não são repetições, são mais ricos do que isso. Neste caso, o padrão dos livros dados formando um luxuoso vestido para um luxuoso banquete de ideias, sentimentos, visões. Espanto-me com esta insistência do universo e penso-a seriamente como sendo uma oração, uma forma de resistência. Os livros dados são sempre dados na clandestinidade, são passados por entre os dedos da ignorância e da insensibilidade. Passam por esses dedos como uma carta mágica e como a carta de um mago e não de um ilusionista. Costumam vir em mão, mas também aparecem como uma carta na caixa do correio. Parecem dizer: "Escuta estas palavras". Um dia foi-me enviado um livro através de uma amiga. Alguém que ela conhecia soube que eu existia e insistiu com ela para me entregar o livro. São os próprios livros a insistirem em vir, por caminhos tortuosos e difíceis até ao seu palácio onde, por fim, repousam. Eles caminham porque são seres vivos compostos de palavras sempre-vivas tocados por mensageiros cujo rigor é semelhante ao firmamento girando em torno da terra. Sempre me deram livros. Não é que eu seja uma leitora compulsiva e todos saibam disso. Mas, os leitores compulsivos talvez sejam só isso e os livros saibam. Talvez eles queiram ser lidos e olhados, não como uma rotina, mas como um momento especial, uma festa, um banquete único no ano, com a atenção devida ao detalhe, com o silêncio devido aos seus próprios silêncios. Quando nos dão um livro há um rito implícito. Invisível. Importantíssimo. Esse rito, carrega o mundo às costas e, quando é entregue, o mundo voa como um pássaro livre que pousa no ramo mais alto da árvore de oiro onde a observação da paisagem devolve o sentido da vida e do mundo. É um rito de uma alegria imensa e o mais verdadeiro de todos. Porque é espontâneo. 

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