Há tempos que são de contratempos e, deste modo, os contratempos, estão a favor do tempo e não são contratempos porque fazem parte da natureza do próprio tempo em que se vive. O verdadeiro contratempo é aquele que contraria o contratempo, aquele que se contraria a si próprio. Assim, um contratempo contém em potência a sua própria negação. No filme “Rapsódia de Agosto”, de Akira kurosawa, um casal de idosos é filmado vivendo as quatro estações, aceitando o fluir do tempo. As estações do ano sucedem-se naturalmente, são aceites universalmente. O contratempo desta época actual facilita o re-posicionamento das coisas porque se auto-anula. As memórias vívidas das quatro estações, são memórias-eixos com as quais se mantém a integridade numa época que é de pré-nascimento de uma nova Era e que se parece mais com o líquido caótico amniótico do que propriamente com a criança dobrada sobre si que dorme. O líquido é a actualidade, no que tem de indefinido, a criança é o futuro, no que tem de fresco e novo. No entanto, ela dorme, ausente, num sono reparador no líquido que a sustém. Talvez esta situação seja muito difícil de aceitar para quem se agita e faz parte do líquido indefinido. Contrariamente ao que se pensa, também do ponto de vista da criança que dorme, o espectáculo não é grande coisa. Ela apercebe-se dos movimentos do caldo que a envolve e semicerra os olhos olhando à sua volta num aparente sono profundo. Mas o seu olhar é tremendamente detalhista. Quase como se fosse composto por fotogramas únicos, pedaços apanhados em fragmentos sempre que os seus olhos se entreabrem. E essa colecção fragmentária é o suficiente para que possa ter um retrato geral do caos que a cerca. E regressa ao sono, esperando que as águas repressoras se libertem, sejam escoadas e se dissolvam na atmosfera. Uma vez questionada dentro do útero essa criança só revelará essas imagens fragmentárias que a impressionam porque não têm nada a ver com a sua natureza. Ou antes, com a sua sobre-natureza. Nesse estado, enrolada sobre si, ela encontra-se, como um ponto, à imagem e semelhança do centro da circunferência, entre a existência e a não existência. Os olhos permitem-lhe absorver a realidade que é, no imediato, confrontada com a unidade que a própria criança é. Trata-se de um confronto porque a indefinição múltipla é algo que a rodeia e que não faz parte dela. Kubric percebeu e foi mais além em “2001: Odisseia no Espaço”. A contemplação de um ser por nascer diz-nos mais do que a contemplação de uma caveira, até porque a contemplação de uma caveira não é, nem a contemplação dos ossos, na sua totalidade como técnica ascética ancestral oriental nem a contemplação de uma cabeça viva e faladora, como era a templária. Trata-se de uma queda num fragmento de osso e daí que ela tenha sido cistalizada por alguém que a esculpiu no passado nesse material. O cristal inerte e frio. O olhar, os olhos, dessa criança por nascer serão sempre um espelho do caos que a rodeia. Sempre que os olhos se abrem tememos a nossa própria situação num cosmos composto e nascido no devir. É desta forma que os sábios projectavam a própria imagem dos discípulos sem que fosse intencional. O discípulo via-se a si mesmo e fugia aterrorizado com a experiência de saída do seu próprio corpo de uma forma tão vívida.
quarta-feira, 3 de novembro de 2021
A imagem vívida
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário