sexta-feira, 7 de outubro de 2022

A brisa

 


Quando ele criava conseguia a dupla elegância : a dos gestos e a da ausência de tudo o que o rodeava. O mundo estava concentrado na ponta dos seus dedos. Lembro-me de me dizer perante as minhas queixas de indiferença para com o que fazia: "Faça na mesma!" E era assim. O público era um acidente. Jamais o vi fazer algo, com aquele foco, para agradar. O que fazia era só para Deus. Os restantes, com os seus valores, as suas modas, as suas opiniões, fundamentadas ou não, os seus trejeitos, as suas divagações, as suas aprovações, os seus espantos, as suas admirações eram inexistentes como alvo da sua atenção. Isso dava-lhe o duplo aspecto de uma superioridade inata e de uma simplicidade intrínseca. As vezes parece que as saudades me derrotam nos gestos mais quotidianos. Mas algo me diz que permanece no fundo da minha alma tão vivo e sábio como quando o encontrei e revejo-o nos pequenos destinos para onde os meus olhos me levam. Hoje, recordei o mundo, "a bola de algodão que está nas nossas mãos fazer feliz" e desfiz-me em lágrimas. Era a voz da linhagem acompanhando o voo que me tinha conduzido à finisterra onde o sol, redondo e nítido, neste dia de luz difusa, se afunda na bruma indefinida que separa o céu do mar. Viemos de tão longe e continuarmos longe e dias há em que essa distância se acentua pela saudade. O mistério ronda a própria infância só por ser antigo e, nas reviravoltas que este mundo dá, permanece sempre nesta vida, atravessando-a como uma longa espada, sem princípio nem fim, recortando-me deste contexto insípido e devolvendo-me todo o Amor, numa simples canção, que nunca passa na rádio, mas hoje passou. No momento certo, o Mistério espreitando por uma fresta a minha inusitada vida. A brisa/carícia de Elias, ali mesmo.


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