sexta-feira, 7 de outubro de 2022

O centro



 




Lembro-me de uma vez, num daqueles passeios-improviso inventados de um dia para o outro pela minha mãe, em Mérida, no início dos anos 80, estarmos num café que ficava numa rua estreita, a ver televisão a cores onde tudo aparecia a cor-de-rosa e, de um momento para o outro, termos sentido a terra a vibrar e um barulho crescente que nos levou a ir para a porta para ver o que se passava. Lembro-me de ter visto passar tanques de guerra que por ali andavam, naquela rua estreita, sem alcatrão e com pedras que mais pareciam ter pertencido a uma qualquer estrada romana. O barulho que os tanques faziam, à medida que atravessava as pedras, ecoava com uma brutalidade que nos toldava os sentidos, aprisionando-nos naquela realidade densa que nos triturava. Foi a primeira vez que senti a tamanha brutalidade da matéria, naquele caso dirigida pelos homens, contra os homens, embora fosse apenas a deslocação dos tanques de um local para outro ou um mero exercício dado àqueles horríveis e horripilantes veículos. A sensação que tenho hoje, destes anos 20 do século XXI, é semelhante. Quando as pessoas não sabem viver, nem sequer estão vivas encontrando-se num estado de semi-dormência ou perto da animalidade, a realidade que criam e que recriam, toma a forma de tanques que atravessam a possível paz de uma ruela com empedrados antigos que não foi feita para a brutalidade e a bestialidade de máquinas de ferro trucidando as vidas e os sentidos.  Este tipo de realidade que é só e apenas criada pelos homens, esmaga qualquer percepção do sonho porque, para se sonhar com a beleza e a harmonia, há que estar para além da bestialidade e do próprio sono. Para se sonhar, é necessário estar-se acordado. Para justificar esta tremenda criação humana que é a do hiper-realismo sufocante, a razão apresenta-se lado a lado com a disciplina da Economia. Ambas justificam tudo e ambas comandam todo o ambiente geral em que submissos vagueamos. Porque vagueamos sempre por entre as ruínas das guerras futuras e os escombros das guerras presentes. As do passado são os argumentos com os quais se esgrimam as propagandas que não conhecem mais nada a não ser a guerra, sendo filhas dela. Se os homens sonham com outros patamares que não sejam o da sobrevivência, por um lado, ou o do conforto, por outro, são os tontinhos de serviço, aqueles que estão fora da realidade, os lunáticos que não aterram no planeta Terra, os pouco realistas. Ser realista, hoje, é admitir que esta é a realidade, que não há outra e que outra não pode ser sonhada-criada. O mundo deixa de ser um lugar estranho e perigoso para ser só perigoso. Já não se estranha nada. Quando já não se estranha nada, vivemos na hiper-realidade que é tão verdadeira como outra qualquer que queiramos criar, sendo que nenhuma delas é verdadeira, mas há umas mais perto da verdade (e por isso mais agradáveis), que outras. Os chineses não usam a palavra "verdade" por ser, talvez, demasiado hiper-realista (têm pudor) e, no seu lugar, está a palavra “centro”, mais justa por conceber o sonho como coisa real (a palavra “verdade” tende a excluí-lo). Quando a realidade que criamos é hiper-realista e, por isso, brutal e esmagadora resta-nos, não a compreensão porque, neste caso, o facto de compreendermos isto não serve para nada, mas sim, o desprezo profundo por esta época, talvez devido à insegurança em que nos coloca. Os psicólogos de serviço a esta hiper-realidade tendem a dizer que o desprezo é sinal de insegurança e, neste contexto, até têm razão, mas não pelas razões superficiais que apontam sempre que o desprezo aparece nos seus pacientes ou na sua análise do ser humano. É o hiper-realismo que nos coloca a todos numa situação de insegurança e é ele que nos conduz (pelo menos a alguns) à única saída: o desprezo profundo por esta época. E o desprezo, ao contrário do que os psicólogos inaptos para outras realidades que não sejam aquelas que estudaram, não significa obrigatoriamente ausência de amor. Só quem compartimenta sentimentos e sensações é capaz de criar dogmas sentimentais... o desprezo por esta época é sinal de sanidade mental. A não-adaptação a esta época, é sinal de adaptação a qualquer outra melhor, o triunfo dos infelizes está em serem infelizes e a alegria ou euforia como arma-máscara é a instabilidade nervosa cavalgante que afirma que nunca estivemos num mundo tão bom, nunca fomos tão felizes e nunca estivemos tão aquecidos e confortáveis como agora, embora, claro, com a total incapacidade de sonhar além da esfera do hiper-realismo.  Uma das razões pelas quais não devemos escrever é porque ninguém lê e sonha para além de si próprio. Uma das razões pelas quais até podemos/devemos escrever, de vez em quando, é exactamente pelo mesmo motivo. A nossa escrita nunca esteve num lugar tão central e paradoxal como o de agora. Exactamente o mesmo lugar em todos estamos, até mesmo os sonâmbulos, cerca de 99,9999999999...% da população contando da frente para trás e altamente desprezível, e as bestas, em mesmo número, mas contando de trás para a frente e igualmente desprezíveis. No meio de tudo isto, quem se safa? Ninguém, nem os desprezados nem os que desprezam. Todos vivemos neste hiper-realismo que tolhe o sonho e torna totalmente obscuro o amor-além-do-desprezo. 


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