sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Enquanto isto, em Alexandria...


 Tomai estas palavras como a mais pura verdade:


" Graças a um autor satírico da época conhecemos os costumes dos membros do Museu, tranquilos estudiosos aliviados de qualquer preocupação, protegidos dos acontecimentos desfavoráveis dos seus tempos. «Na populosa terra do Egipto - diz o poeta e humorista - engordam muitos eruditos que gatafunham livros e dão bicadas uns nos outros na gaiola das musas.» Outro poema fazia regressar um escritor do mundo dos mortos para aconselhar os habitantes do Museu a não sentirem tanto ressentimento uns pelos outros. Na verdade, as bicadas eram um assunto corrente entre aqueles sábios de vida relaxada, retirados do ruído mundano. as fontes históricas refectem discórdias, ciúme, cólera, rivalidades e má-língua entre eles."

Irene Vallejo, O Infinito num Junco, Bertrand Editora, 2022, pág. 54

Antes de serem estudiosos, são ainda humanos, tal como os padres, antes de serem padres, são ainda humanos, e por aí fora. É assim que a marcha da humanidade permanece para além do espírito das letras, do espírito do conhecimento e do espírito do Espírito. Na nossa incalculável e, por vezes, inenarrável humanidade, prossegue a capacidade daquilo a que nem chamarei paradoxo porque para o ser seria necessário que as paralelas se encontrassem, coisa que não fazem, a não ser num determinado prisma pentagonal... e isto em teoria matemática. 

Dei por mim a querer revisitar o sempre irresistível, Somerset Maugham, e a sua assertividade ao descrever a natureza humana como se me fizesse falta, assim meio de repente, voltar a sentir o universo paralelo (ao daquele dito da sabedoria), onde a natureza humana permanece a mesma, igual a si própria, inalterável, por séculos e séculos. E assim ficará por muito mais tempo, caminhando como caminhamos, assemelhamo-nos à "monotonia" dos dias sofrida e vivida por todos os espécimes de homens que precederam o célebre, e mal chamado "homo sapiens", tendo sido melhor chamá-lo de "homem conhecimento" porque a sabedoria não é para esta espécie chamada... só será quando as tais paralelas se tocarem. 

Nascer em berço de ouro tecnológico não é garante de sabedoria alguma, da mesma forma que nascer em berço, dito "tradicional", não é garante de ausência de desenvolvimento em direção à sabedoria, mas pode ser... e ainda outro "mas":  Mas o que ambos os nascimentos acarretam como carga penosa, é a condição humana, que espreita como Caim acocorado pronto a saltar, tendões flectidos, esperando a hora, para atacar o irmão. A História da Humanidade é uma sucessão de fratricídios... atravessados por algum conhecimento daquilo que nos cerca. Sabedoria é tesouro d'outro universo paralelo, raras vezes visto e ainda mais raramente vivido. 

Não é por acaso que dou por mim embrenhada na Antiguidade à procura das respostas, e eis que surge sempre a Humanidade no seu esplendor de loucura e de demanda incessante por um lugar ao sol, nunca à lua (talvez por ser demasiado misteriosa...), por uma assinatura por debaixo de cada descoberta, por tentativas de eternidade em forma de letras, autênticos brasões reais a revelar ao escol de incompetentes. Caims e Abéis sem fim nesta árvore da vida com as raízes demasiado metidas na terra para ser verdadeira.

Não, nada disto é verdadeiro e, por isso, não há que os levar muito a sério, nem por eles ter grande respeito. Que as mãos nunca nos tremam em frente aos homens do conhecimento, será a nossa própria fraca condição humana que treme e se assegura distante da sabedoria. Não há mestre que nos salve se não reconhecemos o mistério do luar... e se como homens, que se esquecem que são os "sapiens" que nunca foram, reiniciarmos a caminhada, despidos de véus obscuros, de camadas amedrontadas pelo tempo, e nos esquecermos definitivamente desta Humanidade que se enganou, mais uma a enganar-se... exactamente no dia em que se auto-intitulou "sábia". 

Sou uma romântica inalterável com os anos... ainda penso em justiça como a sobremesa de uma vida inteira. E ainda escrevo, como se fosse essa mesma sobremesa, esse sabor doce que faz repousar o excesso de sal com que povoamos os nossos gestos. Mesmo sabendo do fel a que a justiça pode saber... não deixa de ser doce, na sua essência. 

Já nem vejo o conhecimento como veículo para coisa nenhuma. Sempre tive uma memória seletiva, só contando nela o que, de alguma forma, me desse a esperança do encontro de duas paralelas, lugar de luz, harmonia e criação. 

Mas é tão raro... tão raro... e, ainda assim, o único sonho, ou desejo que vale a pena... porque nem tudo vale a pena, apenas a alma vale a pena, nem grande, nem pequena, mas do tamanho desse sonho, que não tem tamanho, nem dimensão, nem sequer é daqui.








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