Ontem não te escrevi porque estava um dia triste. Não há nada pior do que um aniversário da morte (como se a morte fizesse anos ...) como um dia chuvoso, pesado e cinzento, aliás, devíamos apenas, neste caso, falar ou escrever só no dia a seguir à morte. No caso de Cristo, fala-se passados três dias porque como aquilo que se passou foi um processo alquímico, levou um pouco de mais tempo mas, no caso dos poetas, um dia basta para sentirmos essa "curva" e vislumbramos, logo no dia a seguir, uma estrada de sol, como esta de hoje. Não estranhes o facto de não ter colocado uma foto tua (também nunca foste muito de fotos e de públicos juvenis que necessitam de ver para crer), coloquei uma minha que é igual ao estado do país: um perpétuo trabalho idiota de arrumações e limpezas, com momentos de revolta em que se lê um livro. Ler tornou-se um acto de rebeldia. Esses momentos são, no entanto, esparsos porque num país amnésico a lucidez assemelha-se a um raro momento de arco-íris... da mesma forma anda a filosofia portuguesa e a cultura em geral, depois da mecanização dos gestos, passámos (Oh, humanidade gloriosa!), à mecanização do pensamento e o nosso modelo deixou de ser Deus como centro para tender e passou a ser o robot, fios e lata em movimento activados por impulsos elétricos. O Mistério nunca zombou tanto de nós como agora e já nem escondido o achamos por já nem o sabermos nomear... Mudam-se os tempos, mudam-se as insanidades cada vez mais destrutivas. O ambiente em que viveste também não era bom, frio e pesado pela guerra grande e pelo vislumbre de outra a chegar, este tempo, por seu lado, retira a esperança com pás de coveiro e já nem o tédio dos dias nos permite ter alguma (nem que seja que o tédio acabe), porque não há tédio algum, ou seja, tempo estendido em que não se passa nada, o que há é um frenesim vazio de sentido. Afinal, as formigas-homens comandam um mundo, sem querer magoar as formigas, querendo apenas magoar os homens pela sua incapacidade de se reconhecerem como formigas. Creio que tenho como missão (os castigos já os tive todos), observar apenas o que se passa e sorver a aprendizagem do caos, ao mesmo tempo que o transmito ao cosmos para que se espante. Neste tempo de vigilância, a vigília é donzela, a observação é rainha e a contemplação, Imperatriz... O povo vigia tudo como um louco de binóculos numa mão e o martelo de juiz na outra. É a nova fé e a nova espada e a justiça deixou de ser cega e anda por aí, desnuda e louca com o que vê. Também, Fernando, me encontro no cais à espera do navio que me leve, ou da caravela dos sonhos. No fundo, só quero ir ter contigo para ouvirmos o crepitar da poesia enquanto bebemos um copo de vinho. Aqui, pouco ou nada me interessa e este papel de testemunha torna-se demasiado doloroso para almas sensíveis. A luta é para os práticos da vida, os psicopatas da felicidade que não olham a meios para a obter, destruindo tudo à sua passagem. Já lá vai o tempo dos guerreiros... agora, nas brumas deste nevoeiro sem fim, só se vêem mercenários magros e infelizes esperando a felicidade do golpe. Já ninguém galopa e os cavalos vivem em quintas abandonadas, também eles esquecidos de si...
É isto que te posso transmitir agora, Fernando. Isto e a leitura de um bom livro quando surge do tempo antigo ou quando é muito raramente editado hoje, o verdadeiro acto rebelde numa altura em que os livros são queimados barbaramente e diariamente nas redes sociais. Sempre que se acede a uma rede qualquer, queima-se um livro... A Inquisição somos todos nós e nenhum de nós é menos do que um guarda no campo de concentração de Auschwitz. Somo-los nos pequenos gestos resignados, e somos justos, apenas quando lemos. E se te lermos ainda mais. Neste cais, onde espero o Último Navio, leio e penso que gostaria de ter o Império sonhado, com donzelas, rainhas e imperatrizes, mas sem este povo lamacento, sem modos nem sabedoria sequer, apenas virtuosos robots, infinitamente baratos e fáceis, tontos e tristes, em transe com o seu estado de saúde devidamente actualizado. À nossa, Fernando! Somos mais do que isto e um dia destes vamo-nos encontrar junto à lareira para nos aquecermos e falarmos das estrelas já visíveis nessa altura.
Uma beijo enorme de saudades,
Cynthia
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