quarta-feira, 7 de dezembro de 2022

O Frankenstein e o Golem



Diz Yuval Noah Harari, nas suas "21 lições para o século XXI" (Ed. Elsinore, 7a edição, 2021), várias coisas (por vezes bastantes precipitadas e próprias de um jovem que segue um linha de pensamento sem ter atenção ao hábito tão presente nas suas origens judaicas de debater em conjunto assuntos complicados, como é o caso da macro-História). De entre essas coisas, diz: "os computadores não têm subconsciente" (p.86), "a ficção científica costuma confundir inteligência com consciência " (p.95), "o perigo é que, se investirmos muito no desenvolvimento da inteligência artificial e pouco no desenvolvimento da consciência humana, a sofisticada inteligência artificial dos computadores só servirá para dar mais poder à estupidez natural dos seres humanos." (p. 97).

A páginas tantas, no seu deslumbramento pela demanda humana da criação da própria vida, lembra também o caso de Frankenstein e aí parei e lembrei-me do caso do Golem.

A diferença entre o Frankenstein e o Golem, é que o primeiro é feito de remendos, uma experiência científica mal sucedida, resultando num monstro, já  o Golem é criação de um alquimista, feito de barro, a quem foi insuflado o espírito da vida, o sopro, mas com a incapacidade de falar (a linguagem humana não é outra coisa senão a consciência humana corporificada). O que têm os dois em comum: acabam mal. 

A marcha da humanidade promovida neste e noutros livros do autor parece ser consequência da própria queda, imparável, da Humanidade. Existem factores, no entanto, que nos escapam ao invés do que parece sobressair nestas obras. Algo nos escapa sempre. O homem deificado não é Deus porque qualquer deus é uma faceta Dele. 

Conhecendo este autor o hinduísmo, espanta-me a forma linear com que reescreve a História dos Homens. Praticando este autor a meditação, espanta-me que não atente aos ciclos que na História dos Homens toma a forma de uma espiral, e não de uma lança dirigida ao futuro acertando em parte incerta... 

Evidentemente que nos alerta, evidentemente que propõe soluções, no entanto, nada nos diz que são as melhores e nada nos diz que o próprio autor se conhece verdadeiramente a si próprio: "a maioria das pessoas não se conhece muito bem a si mesma" (p.75), e segue na mesma página com o exemplo da sua homossexualidade descoberta tardiamente aos 21 anos. Tememos que o conhecimento da orientação sexual, gostos pessoais, etc, nada tenha a ver com o conhecimento da nossa própria essência... ,  todo esse tipo de auto-conhecimento é altamente volátil e até Freud teve de escavar, por vezes, um pouco mais profundamente, indo além do "abaixo do umbigo". O auto-conhecimento é a "parte mais baixa" do conhecimento do homem em geral... porque é extremamente volátil e um verdadeiro entretenimento para psicólogos que gostam que os seus clientes fiquem "resolvidos" e aptos a encaixarem numa sociedade estragada e desequilibrada. Dizer "sou gay" tem tanto de auto-conhecimento como dizer "gosto mais de bolos do que de doces", não revela nada, nem diz nada, nem adianta, nem atrasa... é apenas um facto no meio de milhares, um facto que, como tantos outros podem ou não ser motivos de descriminação. Uma coisa é o autoconhecimento de inúmeros factos, outra coisa é a descriminação e outra coisa é o conhecimento efectivo do ser humano para lá dos factos e da política ou dos preconceitos. Se se confunde inteligência artificial com consciência, como diz o autor, também se confundem conjuntos de factos que juntos podem funcionar ou não (veja-se a tecnologia), com o conhecimento de todas as dimensões humanas: a maioria delas permanecem desconhecidas.

O mesmo autor diz que as armas nucleares tradicionais (seja lá o que fôr essa "tradição") podem vir a ser consideradas obsoletas (p.152) o que revela que escreve apressadamente: uma arma foi feita para matar, se mata, funciona, se funciona não está obsoleta. O mesmo pode ser dito de uma faca...

O mesmo autor diz que "a maioria das pessoas vota sem pensar" (p.34) - não poderia estar mais de acordo, há quem vote no mais bonito, estou até convencida que foi assim  que Sócrates subiu ao poder...- mas no seu galope de historiador imparável e analista esclarecido, chega à conclusão que o mundo precisa, não de um governo global, mas sim de decisores globais, ou seja , o grupo de eleitos por cada país (os actuais governantes), em reunião, para decidir o futuro da humanidade em questões como, a ecologia, a economia e a marcha da ciência. (p.154). Tenho uma boa e uma má notícia para Yuval: a boa é que isso já se passa (e os governantes andam a mando das empresas), a má é que a maioria dos governantes foi eleito por não pensadores. 

As questões que o livro levanta são pertinentes, as soluções é que são estranhas talvez porque haja perguntas que não sejam colocadas tais como: necessitamos mesmo de inteligência artificial? A nossa não basta?

Só que questões como esta remetem-nos para a grande questão da essência do ser humano e isso é difícil, penoso e ambicioso, ou seja, a verdadeira demanda. Perguntar o que é uma essência é o primeiro passo. Ou o que é o ser humano, ou o que é uma pergunta... Enfim, começar... Já pintava  Almada Negreiros.





 

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