domingo, 13 de outubro de 2024

Camionista





A tabuleta assim, pendurada, esquecida, abandonada à indiferença, remete, mesmo que não queira, não a uma qualquer nostalgia, porque essas são sempre agradáveis, mas sim ao arremesso que o vento dá ao que quer, quando quer. Passámos do Portugal amordaçado do Ary, para o Portugal arremessado para um qualquer canto. Em abono da verdade, estamos sujeitos ao vento arremessados para onde calha. Nem com um reles orçamento se encontra um acordo, quanto mais em relação ao resto. Estamos num mundo sem ponta de poesia e Portugal não tem muito jeito para este tipo de mundo. Neste mundo das falsas notícias, tudo é, em contramão, realidade férrea, metálica, pesada e insistente naquilo que a realidade tem de abrutalhado. O mundo é um camionista ao volante, braço tatuado para fora da janela com o cotovelo ao céu, barba de vários dias, daquela que pica como espinhos, desmazelo orgulhoso de si, palito nos dentes, trincado depois de remover restos do almoço com sabor a banha servido à beira da estrada, óculos escuros espelhados onde se adivinha a tempestade próxima e reflectida, ténis velhos, do trabalho, saltando entre o acelerador e o travão. Calças de ganga, americanas, claro, porque a América é azul e é lá que está o Deus, qualquer que este seja; na rádio, a música pimba porque povo que é povo é brejeiro, goza e ri com um humor abaixo do infantil. A estrada é longa e leva ao objectivo do mundo que é um armazém onde se retêm produtos por pouco tempo, seja aí, nas lojas ou nas casas. Os camionistas não são mercadores, nem têm essa dignidade, são iguais ao seu camião, brutos, feios, largando fumo, com letras gastas e placas a balançar ao vento porque ninguém está para pregar um prego e acabar com o balanço. Já teve mais charme este mundo. E lá por dentro, no motor do camião, a combustão das guerras cujas explosões o fazem andar, andar, em direção ao armazém dos produtos, transeuntes vindos de uma qualquer fábrica que não é nem melhor, nem mais feliz que o camionista.  Nunca o silêncio foi tão de ouro. Mas ouro velho, daquele que é o de um pôr do sol de Outono. Ouro que se distancia, para além de ser silêncio. O silêncio distanciado. O ouro? Sabem lá do ouro, da luz ou da poesia que é a mesma coisa. Para se ser decente, hoje, tem de se andar com o coração magoado. Se não se anda assim, somos camionistas agarrados ao tempo e ao vento da estrada. Só o coração magoado se eleva no seu choro fino, só ele acena à poesia quando ela passa montada numa fénix, só ele a vê, ainda assim, para além do ferro e do chumbo, vestida como sempre está, de glória.

domingo, 29 de setembro de 2024

Coleccionadores, galeristas e psicopatas

 




Com o título "The Kill Room - Arte Fatal", um retrato fiel do coleccionismo, dos galeristas e dos artistas. Com a diva Uma Thurman. 





terça-feira, 23 de julho de 2024

Luz


 (Pintura de Cynthia Guimarães Taveira)

Hoje acordei cedo com o barulho dos pássaros, uma discussão entre galinhas na capoeira aqui perto, o luar, o despontar do sol. Tanta luz logo pela manhã. Tinha acabado de sonhar que retornava a uma casa que não era minha nem me dizia nada. Esse retorno, impensável naquilo a que se chama vida real, deu-me uma sensação dupla de liberdade e do perfeito desligamento com o passado. A memória é apenas útil nalguns casos, como este, que nos diz que o passado não prestou o serviço que lhe era devido e a sua utilidade não vai além disso. É o desligamento do passado que nos solta os gestos futuros. A luz do sol e da lua, o canto dos pássaros e a discussão das galinhas pareciam os contrastes possíveis dentro daquilo a que chamamos luz ou manhã. A tentação de acordar e de largar um sonho que não me interessava mais foi demasiado grande, como se houvesse uma fronteira abrupta entre o passado e o presente, sem continuidade ou possibilidade de resolução. Penso muitas vezes que o passado não é resolúvel em vida e que só depois da morte as coisas se compõem, uma justiça que tem de ser adiada se quer efetivamente existir e não aparecer meia morta aparentando todas as Disneylândias do mundo. Há um silêncio qualquer que me acompanha e que é essa fronteira abrupta, não só entre o passado e o presente, mas também entre a não espectativa e a espectativa de tudo. Um silêncio que é todo ele terreno de possibilidades inexploradas onde o paradoxo de aguardar sem aguardar é possível. Caminho sempre envolta nessa capa. A capa-simbolo, não só de proteção, mas igualmente de espaço, de liberdade, de vontade e, sobretudo, de invisibilidade. Logo a seguir sonhei com umas torneiras quadradas, possivelmente vindas dos anos sessenta. No sonho dizia que as torneiras eram velhas o que provava que a casa era velha. Não era antiga, era velha. Ora sabendo que a água é fluida e tende para a curva ao mínimo apelo, aquelas torneiras quadradas, muito prateadas ainda (o tempo parecia não ter passado por elas), tudo me pareceu paradoxal: a visita a uma casa velha, com velhas pessoas que estavam ainda novas como as torneiras quadradas. As torneiras, donde jorra a água viva, não eram apropriadas às curvas, à fluidez. Desse passado não levava nada a não ser uma personagem, demasiado envolvida na casa, que se apresseva em julgar o facto de ter regressado. Um julgamento idiota por não saber do meu total desapego a esse passado. Olhava para a personagem, que abanava a cabeça, desapontada por ter regressado e dizia para mim que não percebia nada desse regresso, que esse regresso era inócuo em mim porque das torneiras quadradas nunca poderia jorrar água verdadeiramente viva. Era um passado que não percebia nada do meu tempo presente, interpretando tudo mal. Acordei porque a luz despontava, a do sol e a lua, também ela ia brilhante no céu e entravam as duas pelas festas das portadas. Esse era o meu tempo presente. Luz. 

quinta-feira, 13 de junho de 2024

Parabéns, meu querido Fernando


 Muitos parabéns, Fernando. Pois escrevo-te de novo embora, por aqui, nada de novo exista. Se Camões, depois de vir lá dos orientes, escreveu que todo o mundo é composto de mudança, o que é certo é que se esqueceu do minimalismo temporal no qual as mudanças que ocorrem são mínimas. É o que se passa, neste teu e nosso país. Estamos rodeados de écrans, de tal maneira que, só em casa, tenho cinco. Todas as telas revelam imagens e o mundo não é mais do que uma imagem projetada. Eternos espectadores quase impassíveis, adormecidos e distantes das avarias e desvarios mundanos. O meu coração parece uma ave e ouço nitidamente o seu bater das asas. Imagino-o projetado lá em cima  e com ele, os olhos de águia, sobrevoando esta suposta realidade. Não há muito que relatar a não ser sonhos sucessivos que são o desenrolar do mundo cada vez mais afoito, dando pequenos passos em direção a nada. Resumindo, a loucura está instalada e veio para ficar durante muito tempo e, aqueles que não são loucos, ou que o são numa outra dimensão estão fechados em guetos interiores. Cada qual criou um gueto só para si e finge que vive. Não tenho muitas opiniões porque cada vez há mais coisas e não tenho nem tempo nem disponibilidade para ter e dar uma opinião sobre tudo. É mais confortável assistir silenciosamente e com algum desinteresse. Parece que o Quinto Império, ou a Idade do Espírito Santo, ou outro nome qualquer que adquira uma nova Era já não me vão tocar em vida, excepto, claro está, nos mundos com os seus tempos e espaços paralelos. O inferno não são propriamente os outros até porque nem têm classe para isso. O que há é um mastigar do tempo e das muitas coisas que há cada vez mais. Se os homens da pré-história devem ter morrido de tédio ao longo de milhares de anos, não menos se morre agora do mesmo, ainda que em constantes festivais, competições e disneylândias, não havendo diferença nenhuma entre as três. É assim que se dá a involução tão apreciada nos dias de hoje e tão ternamente chamada de evolução. Resta, para os vivos, alguma curiosidade. E há cada vez menos vivos. As novas gerações, alimentadas a ecrãs multicor, depressa são redesenhadas e transformadas em zombies festivaleiros. E, não fora a curiosidade, a paisagem e os pôr-do-sol  (gosto e escrever com hífen porque contém assim a linha do horizonte e os três “ós”, que são três sois, o do amanhecer, o do anoitecer e o do dia e a lua, essa, tem um “u”, crescente ou decrescente, tanto faz...) e nada teria importância, aquela importância que pesa e conta nos seres humanos quando não estão entretidos a matar, a ofender ou a respeitar a bestialidade que há neles... Lidar com isto, Fernando, obriga a um alheamento, até da própria memória: os retratos dispostos pelas casas, fazem sofrer. Qualquer presença de um outro tempo mais doce, faz sofrer quando caímos na realidade deste que é feito de azares provocados e onde a sorte não entra. Não é em vão que te explico o que se passa porque sei que vais contar aos anjos que te rodeiam. Vais ler-lhes esta missiva em voz alta e vais desenrolar o pergaminho devagar, com ar solene. Escrevo-te duas vezes por ano, uma no dia em que nasceste e outra no dia em que nasceste de novo junto aos anjos. São datas sérias que requerem alguma atenção, alguma cerimónia e quiçá, alguma magnificência e daí, escrever-te.

O mundo está farto de arte porque não sabe o que é a arte.

E assim me despeço, com muitas saudades, meu amor.

 

Da sempre tua, Cynthia.

 

 

domingo, 9 de junho de 2024

Dias mágicos


 Acredito que todos tenham dias ou momentos mágicos, que saem da órbita monótona dos dias, que se elevem como sonhos e que residam numa impressão, numa sensação tão forte que nada os abala. Foi assim, naquele dia em que cheguei a Veneza, entrando nela pelo Grande Canal, e desembarcando na Praça de S. Marcos. Só que daquela vez, foi tudo diferente, uma orquestra tocava numa das esplanadas, apenas essa orquestra tocava nessa noite, naquela praça, o Bolero de Ravel. E dei por mim a dançar, numa praça semi-vazia, há muitos anos, ao som da música crescente, crescendo também a meus olhos a Basílica de S. Marcos, dourada, brilhando na noite. Lembro-me que a música durou exactamente o tempo da travessia da Praça, com o seu culminar, e o culminar da minha dança em frente à Basílica. Para sempre na minha memória como coisa mágica, uma oferta do acaso a quem, como eu, ama aquela cidade. E outros dias há, assim, mágicos, em que tudo daparece em volta dessa memória, desses momentos sem tempo, como aquele, na Costa onde tínhamos casa com alicerces enterrados na areia aveludada, com um grande avarandado onde jantávamos ao pôr do sol, mas naquele dia, diferente. Pousámos os talheres quando nos demos conta de que o mar estava negro, a temperatura morna e o sol dourado já próximo da linha do horizonte e, numa espécie de hipnotismo comum, cerca de dez pessoas, largaram a refeição e entraram, sem palavras e sem qualquer razão lógica, pelo mar adentro, e o mar estava quente e as algas verdes escuras eram aquelas que lhe davam aquela tonalidade negra. E lembro-me de homens e mulheres colocarem as algas no pescoço como se fossem colares vivos, e de nadarem e rirem até escurecer. Dias perfeitos e mágicos, sem perguntas nem respostas, apenas a adesão a eles, como se lhes pretencessemos desde sempre. Outros há, para descrever, embora a escrita não chegue a eles, nem dê sequer a intensidade da sua memória. 

domingo, 5 de maio de 2024

O drama


 O drama do teatro em vida é que este ocupa tudo, a atenção, o palco, o cenário, o tecto da casa de espectáculos, os atores, o texto, a ideia, as luzes, os trajes, os sons. Ocupa de tal forma tudo que mais nada se passa e o espírito afasta-se por não ser necessário. Isto quando é bom teatro, porque o mau ainda ocupa mais lugar no pensamento. A força da memória aparece como uma musa falante: "O teatro é a queda do Rito". É muito raro conhecer alguém que utilize o teatro para que o Espírito faça a sua aparição.  Na verdade, só conheci uma pessoa capaz disso, todas as outras necessitam de rito como de pão para a boca e uma das coisas que aprendi com essa pessoa, foi a reconhecer aqueles que tentam,  em vão, fazê-lo. A forma de reconhecer passa pelo coração e daí que não haja volta a dar a alguns candidatos a atores-mestres. Continuam perpetuamente no limbo que o seu teatro proporciona. Mas como o espectáculo começa e acaba com eles, o drama é total. O Espírito nem espreita por falta de espaço. Quando estamos perante Ele através daquele único que conheci, Ele brilha como uma jóia na noite. Exactamente  o contrário da máscara. A memória é um forte. O Espírito é a Hora.