sexta-feira, 12 de dezembro de 2014

A superfície das águas...



 
Há uns tempos dei boleia a um rapazinho desconhecido. Dizia-me ele, a meio do percurso de poucos quilómetros, sermos nós um povo afável, generoso e de bom coração. Eu sei, pensei na altura de mim para mim... e que eramos comodistas... eu sei, pensei...  Há uns tempos, conheci um pintor de paredes. O pai dele já era pintor e o avô também... ela era pintor porque sim... seríamos um povo com raízes. Eu sei, pensei de mim para mim... Há uns tempos, dizia-me uma “caixa” de supermercado que como isto estava um dia teríamos medo de viver. Eu sei, pensei de mim para mim. Há uns tempos, dizia-me uma rapariga de vinte e poucos anos nada perceber das fichas que o filho levava para casa da segunda classe. Esquecera tudo. Eu sei, pensei... há uns tempos dizia-me uma senhora na bomba de gasolina... que se devia respeitar toda a gente e que desde que tivéssemos para comer e pudéssemos andar de cara descoberta, tudo andava... eu sei, e pensei... Há uns tempos ouvia os pescadores olhando o mar, dizendo que “eles” eram todos uns ladrões... eu sei. 

E pensei que estamos sempre em trabalho de campo a sentir o “pulso” às gentes... e que há tantas, tantas gentes... desde os que, vivendo na opacidade da monotonia da manutenção do mundo são levados pelos líderes embriagados de poder sobre os que vivem na opacidade da monotonia da manutenção do mundo, passando pelos filósofos mais inteligentes e mais estudiosos, mais espirituais, menos espirituais, e até àqueles que deram uma volta inteira na curvatura dos abismos do pensamento sem entranhas nem o bater do coração... e há artistas incomodados outros acomodados... e os desligados, também.
Lembrei-me de Teixeira de Pascoaes falando da imensidão de gentes que surgiam como fantasmas... e pensei que só um morto em vida os podia ver e reconhecer como tal... qualquer coisa de cadavérico no turbilhão do mundo, e no entanto, qualquer coisa de imensamente mais...

A quem foi dada a ver a luz, e com ela o sentido da vida, por vezes, é dada uma vida sem sentido, de maneira a que a própria vida seja ela um debate eterno entre as duas: ou ganha o sentido da vida, ou ganha a vida sem sentido... ironias divinas...

Ainda navegando nestes passos fronteiriços entre a vida ausente que existe na contemplação, quase parda, quase indefinida... movem-se na superfície das ondas pequenas brisas... são elas que dão alento e fazem reluzir, de modo intermitente, esse brilho do sol sobre o mar.  Seremos nós capazes dessa sensibilidade aquática às brisas em forma de pessoas que por nós passam? Seremos nós capazes de quebrar a casca dura que esta civilização produziu  e de sentir essas pequenas brisas de Elias?
Se tudo for, como à primeira vista parece ser, uma eterna dança entre dois polos extremos: a sobrevivência e o poder... que nos é dado do Espírito afinal?

Para bem da nação tenho assistido ao autoconvencimento e às múltiplas tentativas de persuasão dos autoconvencidos de que uma ideia, política ou religiosa ou ambas são, sem dúvida, sem sombra dela, o germe da salvação do mundo. É assim que têm nascido os mais variados exércitos ao ponto de, por vezes, o mundo me parecer mais uma arena do que qualquer outra coisa... mas, ao sairmos dessa arena, na qual há alarido imenso e gritos, e públicos que a sustentam... ao sair, dessa arena, que vemos à nossa volta?
Brisas que passam, algumas, impressões, vagas outras, fantasmas, alguns... dúvidas cada vez mais e crescentes sobre o verdadeiro papel da arena a não ser aquele que nos diz não servir para mais nada senão ir alimentando esse sentido da vida, ainda que a vida em si não tenha sentido... ou talvez sejam necessárias essas guerras para ir aprendendo o óbvio, que é o irmos arrancando, sempre mais e mais, as armaduras-carapaças desumanas que tanto usamos em combate em nome da humanidade.
Que nos restará um dia senão a consciência de que talvez a arena, essas guerras sem fim, de persuasão, de autoconvencimento não sejam apenas armaduras da subtileza humana que é capaz de sentir a brisa, e que uma vez, livres dessa roupagem essa brisa se torna assertiva e derradeira, como a evidência de um trovão? Desculpem se sonhei um pouco...

(Cynthia Guimarães Taveira)

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

Há anjos...


(De nada interessa ser louco ou são. O que interessa é o poema que sai.)

Há anjos que não deixam os poetas morrer
E lhe fazem respiração alma a alma
E lhes endireitam as hastes
E lhes redobram as asas
E os ensimesmam de forma tão absoluta
Em arqueologia ainda mais funda
que a verdadeira...
Há anjos que não os deixam morrer
E, no intervalo das multidões sôfregas
Que invadem as florestas sagradas
Nesse espaço de ninguém
Recuperam a flor pisada
Desembocam em cascata
Na verdade que a vida tem
Há anjos criados de sonhos e tormentos
Envoltos nas brumas irrevogáveis
Protegendo o divino navegar
Das sombras mais densas dos abismos
Há anjos que não param, nem para dormir
Ao som das palavras dos que amam
Creem ser elas a razão do seu próprio existir
Há anjos feitos de estrelas
Cujo toque mágico é sincero
Por saberem e terem por verdadeiro
Que a cada poeta salvo
É dado um anjo em tom mais alvo...

(Cynthia Guimarães Taveira)

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Longe, tão longe...





Sim, talvez fosse o único nicho do mundo onde era possível ser exuberante e discreto todo o ano. E onde o dentro correspondia ao que estava cá fora num sentido irónico e ligeiramente melancólico... longe, hoje, essa Veneza, essa outra que apenas deixou um rasto de sonho atrás de si. Longe, tão longe das vaidades genuínas e das máscaras tão absurdamente verdadeiras. Longe, essa Veneza do hoje sem arte... percorro as galerias na rua e procuro, em vão, esse vulto d’outrora em que se adivinhava o pormenor, o detalhe e a atenção da máscara... tanto que não era máscara coisa nenhuma mas a realidade última da expressão do artista, andando naturalmente com os chapéus que sabiam vindos da sua própria cabeça, prolongamento deles... nada mascarado, afinal, senão de si próprio... com dias mais discretos, tão discretos que se confundia a máscara com a própria sombra e outros, tão radiantes e luminosos que se confundiam com a própria fonte de luz... longe, tão longe essa Veneza, tão rara de encontrar numa esquina da rua que só tem sentido com ela, e onde, a dignidade da vénia nada mais é do que uma imensa reverência pela arte.


(Cynthia Guimarães Taveira)

sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Há já algum tempo que não te via...



(dedicado a...  àquele que sabe quando ler este poema)

Havia na tua presença
Toda a recordação viva
De nunca ter partido
Havia em todo o teu glamour
A ciência exacta da arte
Havia toda a máscara
Que te apetecia ter
E por dentro toda a eternidade
Donde te reconhecia
Havia o grande transbordar
Do mais que nós por acontecer
Havia a recordação de um lado
E o não acreditar nela, pelo outro
Havia a certeza intensa
Da mesma natureza e do mesmo instante
Havia a compreensão mútua
De quem não cessa o fogo errante
Havia o fado, a sorte e o destino...
A tragédia, o dom, a alma
e a comédia
Havia a compreensão lenta
Naquilo que era vero diálogo
Havia um espírito reconhecido
E a mágoa desmedida do impossível
Havia a dádiva do nascer do sol
Entregue em embrulho
de sol posto
Havia a recusa de toda a morte
Havia o lugar para além do estado
Havia a gratidão
A loucura como brandura
A ciência exacta dos aflitos
A nobre e eterna guerra
De quem acorda na paz dos anjos
Havia esse pairar que recordavas
Por gestos, tantos e de tanto espanto
Havia o elo que faltava
No desejo absoluto de um novo encanto
Eras o que sempre foste nas Eras
Atravessando e saltando as esferas
Pairavas sem dúvidas ou tormentos
Passei por ti e lá estavas
Só recordei contigo
O principio, o meio e o fim do tempo
Nada de que não te rias quando te digo
Nada que me importe o teu rir
por te saber de cor há tanto tempo
Nem há alegria ou lamento
Apenas a certa ideia que detenho
Como herança que não estrago
Nem me arrependo
Sei-te como se sabe um Mestre
Para além de ti, vejo as montanhas
Transparente e sereno e em recato
no recanto da memória do meu afecto.

(Cynthia Guimarães Taveira)

 



domingo, 23 de novembro de 2014

O que dizem os poetas



"O meu sonho de felicidade seria não haver necessidade de poesia como género literário por ela se achar já realizada na vida."
Natália Correia


Há, nos portugueses de hoje, um sentimento vivo, igual, sem tirar nem pôr, ao sofrimento que atravessa alguma poesia de Mário de Sá Carneiro. Frases como: “Falta-me egoísmo pra ascender ao céu, /Falta-me unção pra me afundar no lôdo.”; “Rios que perdi sem os levar ao mar...”; “Castelos desmantelados, /Leões alados sem juba... “; “Tombei... //  E fico só esmagado sobre mim!... “; “Há exéquias de herois na minha dôr feudal - /E os meus remorsos são terraços sobre o Mar... “, são elas a melodia da incompletude, de uma certa perdição não merecida provinda de um sonho não sonhado mas, ainda assim, traído...

Como se, na História atravessada, desde um D. Sebastião, que sendo parte luz, é também parte sombra, como referência temporal de um auge oriental, no qual, o ponto mais alto é, em simultâneo, o início da queda ficando essa aura incerta marcando o horizonte do olhar à medida que, ora se caminha, ora se rasteja, numa espécie de limbo com seus nevoeiros e luz difusa, a mesma cujas tonalidades constituem o ocaso do dia e o princípio da manhã...

Esse sentimento de incompletude, mais do que a gerar advém das sucessivas tentativas de acompanhar o tempo do mundo, o tempo dos outros. Havendo conquistado o espaço, num Império mais profundo que aquele que é dado a ver nos livros de História, o tempo, esse, havia-nos escapado das mãos enquanto nos enlaçávamos na embriaguez das especiarias, da prata, do ouro, do corpo breve mas seguro da negra que passava em tom desnudo... e, nesse enlace com o mundo, na frequência dele como casa e esta o todo... lá fora, o tempo de cronos passava, implacável, insubmisso e infiel a tudo. Não acompanhámos o tempo porque estávamos entretidos no espaço, longe das revoluções, das máquinas a vapor, das vãs ambições das potências do mundo...


E, por entre monarquias decadentes, repúblicas ausentes, ditaduras abertas, no último século de desventura... resta a sensação de uma incompletude, como um peso que se traduz e que, esse sim, alimentamos e fazemos perdurar, na injustiça vigente que negamos por nos julgarmos incapazes tanto de a merecer como de a ter. Como se houvesse uma autopunição mais forte do que a própria justiça... e essa punição alimentasse essa mesma ausência de justiça. Da mesma forma  que o temperamento português, foi lido, no desenrolo da abertura ao mundo como tendo momentos de euforia e de disforia é verdade que um outro, desde D. Sebastião, foi nascendo e crescendo, por vezes até ao ponto do intolerável porque bloqueador e transgressor da identidade: o sentimento de uma punição auto-infligida e merecida por termos desviado os olhos do tempo na busca de uma eternidade num espaço... um certo desencanto tido logo à partida de cada acto... por não termos acompanhado os tempos. A forma/fórmula esquizofrénica como tentamos resolver esta questão é visível mas apenas como remendo na resposta que vamos dando: ou um fechamento numa tradição da qual nos vamos esquecendo de geração em geração, muitas vezes acompanhada pela falsa-memória do que ela é ou, por outro lado, uma colagem imediata e sem continuidade ao tempo dos outros em actos estrangeirados extremistas... tudo isto resulta num sentido de injustiça permanente que requer um inimigo para que se faça justiça... então... produzimos os nossos próprios inimigos com a facilidade de quem faz um filho e não por desejo, ou por gosto, nem sequer necessidade absoluta (essa seria a nossa morte...), mas porque criámos a necessidade em nós de uma autopunição como forma de gerar a injustiça e de a aplicar em simultâneo... isto é uma doença nacional e, se por um lado vai cumprindo o ditado “mulher doente, dura para sempre”, ou seja, se este viver na margem do tempo dos outros é, em rigor, aquilo que por vezes nos sustenta, por outro, é aquilo que nos coloca sempre à beira de um suicídio colectivo... tentação que recai agora, até, sobre a língua portuguesa, a grande iniciadora a ocidente, centelha do Verbo Divino... sendo que a desvinculação do pensamento constituí, neste momento, o perigo maior pois este aparece colado à falsa noção de sabedoria que é a acumulação de informação (e muita dela enganadora...) e dando a ilusão de, finalmente, “acompanharmos” o tempo dos outros quando, na verdade, essa acumulação não constitui nem faz permanecer o que é a nossa identidade... é nesse sentido que os poetas portugueses têm sido o garante, como rochas firmes ou anjos caídos, apesar de tudo e contra todos, de um certo permanecer, fundamental, da ideia de que em Portugal se pode nascer, não por missão ou castigo, mas em  circunstâncias situadas numa espécie de remoinho da própria consciência e que,  com a consciência desse próprio remoinho, há como que uma condução de uma demonstração, pelo seu papel de transmutadores do sentimento em palavras-Espírito, à noção exacta de que missão e castigo, são uma e a mesma coisa, cumprindo uma espécie de votos paradoxais que se erguem através do tempo, ao longo de gerações, como continuadores da nossa identidade.
Em simultâneo, neste quase-mundo que Portugal é, há, neste momento único  que é o desta  ilusão de finalmente estarmos a acompanhar o tempo dos outros, que nós nos tornámos, enfim, nele e “somos” como eles, sendo que, o que daí retiramos, e por esse ser o verdadeiro estado do mundo actual, sejam fragmentos, divisões, conflitos, guerras, fracturas expostas pela globalização... se o pensamento não nos servir para mais nada ao menos que sirva para que uma parcela da nossa identidade se mantenha viva, no meio dos escombros de todas as guerras, que no intimo mais intimo deste povo de navegadores e poetas, nunca pediu e tão facilmente é capaz, (e opta) de trocar uma arma por uma flor... ou pela palavra, liberdade, quando é mesmo preciso e está de acordo com o ritmo do universo para que da outra ponta da estrela poética que somos se possam ouvir as palavras de Natália Correia:
 
"Creio nos anjos que andam pelo mundo,
Creio na deusa com olhos de diamantes,
Creio em amores lunares com piano ao fundo,
Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes,
.


Creio num engenho que falta mais fecundo
De harmonizar as partes dissonantes,
Creio que tudo é eterno num segundo,
Creio num céu futuro que houve dantes,
.


Creio nos deuses de um astral mais puro,
Na flor humilde que se encosta ao muro,
Creio na carne que enfeitiça o além,
.


Creio no incrível, nas coisas assombrosas,
Na ocupação do mundo pelas rosas,
Creio que o amor tem asas de ouro. Ámen."



(Cynthia Guimarães Taveira)

 







(Cynthia Guimarães Taveira)

quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Saudade da saudade



A abraços meus e, oh saudade,
que em vida nem glória nem fortuna...
Primor de Ofélia morta
entre as margens do ser...
Saudades e, oh, abraços meus,
enclaves de sentidos múltiplos,
resto de sonhos difusos, Ai!
Não fosse a sorte de um anjo,
ser minha também...
Abraços meus e, teu olhar...
por entre rosas navega,
labirinto do meu penar.
Doce ternura que deixaste por ficar...
Abraços meus, nos campos d’oiro
Encantos mil foste...
Prima hora dos encontros,
Arte em busca de um altar...
Abraços meus, e, oh, saudade,
não fosse a hora da verdade,
não te voltaria a encontrar...

 
(Cynthia Guimarães Taveira)

terça-feira, 18 de novembro de 2014

A voz




É a voz o que mais impressiona...
é um certo timbre...
umas falam de uma bondade inata,
outras, de uma cristalina transparência,
mas outras, raras,
falam de uma outra memória,
mais certa do que a certeza.
É a voz, e não outra coisa
que transportamos da música das esferas...
É ela a memória derradeira
Que não nos engana e nos soterra,
em eternas, amaldiçoadas
e benignas chamas...

 
(Cynthia Guimarães Taveira)