domingo, 23 de janeiro de 2022
O público
sábado, 22 de janeiro de 2022
A secreta esperança
Houve quem morresse com a esperança secreta no mundo, em Portugal, nas pessoas, na natureza. Uma esperança legitimada pela ideia de ciclo. E alguns deles, escreveram essa esperança na esperança de que as suas palavras fossem as tábuas da arca elevada acima do tumulto das águas. Não foi em vão terem escrito, como não é em vão andar por aí com essa esperança secreta, tão secreta por vezes que nem quem com ela anda, se dá conta de que a transporta como um canto celeste quase inaudível confundido com o barulho do mundo. É essa secreta esperança que tem um pé nestes tempos de clausuras, ignorância e desnorte e o outro noutro tempo, mais límpido e pacífico. Essa esperança só existe, aliás, porque é coroada com a certeza de que "os tempos vivem em simultâneo", como ciclos sobrepostos, como rodas dentadas do mecanismo de um relógio. E ainda o cuco que, quando sai pela portinhola, é sempre uma surpresa, mesmo que o faça à hora certa ou a uma certa Hora... Não nos enganam estes disfarces do tempo que nos aparece envolto em trapos, escondendo as rendas, as pérolas, os bordados, os adamascados... A serenidade só se encontra quando despimos o tempo da sua camada vagabunda e nos deixamos oscilar em baloiços de flores numa hora perdida no tempo de uma pintura antiga. Chegámos a um ponto em que as obras só são importantes, não pelo que falam ao colectivo, às gentes no geral, mas sim pelo diálogo de que são capazes de estabelecer coração a coração. Nunca o número foi tão irrelevante neste processo de desocultação de um outro mundo, mais belo, mais sereno, renascido das cinzas. E, no entanto, os telejornais debitam números como se fossem o novo exército que marcha sobre as avenidas do mundo: número de doentes, de mortos, de internados, de votantes, de impostos, de contas-poupança, de estimativas, observações de curvas e de gráficos... O sustento breve do mundo em decadência. O número não tem lugar no diálogo silencioso, sem palavras, entre a obra e o observador. É fugaz calcular o ângulo pelo qual a luz incide, quando a luz incide. Substituir a luz por um número de graus é deixar-nos às escuras. E o mundo está cada vez mais às escuras por causa dessa substituição. O número tornou-se na luz. Na sabedoria. Na verdade. A verdade jornalística. O facto sem prova a prova sem facto. Facto e prova são apenas a face obscura do número, o verdadeiro iluminador de luz negra, que apaga em vez de iluminar.
E quantos de nós não sabemos que a esperança reside em vermo-nos livres desses números todos? Tantos que não são contáveis. Até o bandido que assalta o banco quer um dia nunca mais contar as notas. O vigarista, quer aproveitar a luz do sol numa ilha comprada só para si. No nosso íntimo, quer sejamos o polícia ou o ladrão, no nosso mais profundo ser, queremos lá saber do número. O que desejamos sempre é a Luz. É dito que a lua é mentirosa por causa das letras não coincidirem com as suas fases (e talvez por uma qualquer misoginia implícita), mas essa mentira da lua resolve-se se fizermos o pino e tivermos os pés bem assentes no céu... Agora a mentira numérica deste mundo fá-lo engasgar-se sempre que tenta falar, todos aqueles ângulos presentes nos números... (Um ângulo para o 1, dois para o 2, três para o 3 e assim por diante), encravam-se na garganta e, na verdade, para quem tem os pés no céu, só se houve balbuciar no ecrã. A esperança reside como um ponto de luz imperceptível no meio de tanta medição. Viemos parar a um manicómio que alberga matemáticos que nunca encontraram a Unidade ou que, quando a encontraram, enlouqueceram... Preenchem as paredes das suas celas com números, tanto uns como os outros. Muito mais difícil do que aguentar o embate com as sombras, meu caro Jung, é o encontro com a Luz. E vê-la sem enlouquecer é a derradeira prova. De maneira que, alguns morreram com a secreta esperança no mundo, em Portugal, nas pessoas e na natureza. De loucos nada tinham a não ser a loucura de não embarcar num só tempo, mas em vários e num em especial que é donde parte o foco de Luz. Alguns deles deram-se ao trabalho de escrever com a secreta esperança de que as suas palavras fossem as tábuas da arca que flutua acima do turbilhão das águas... Quais cisnes. Outros, ainda mais acima, quais cisnes voadores, nem se deram ao trabalho de escrever. Simplesmente voaram, para além dos números e das letras.
quinta-feira, 20 de janeiro de 2022
Cães e porcos
As ciências exactas:
terça-feira, 4 de janeiro de 2022
Adeus, meu Senhor.
quarta-feira, 29 de dezembro de 2021
A Questão
terça-feira, 21 de dezembro de 2021
Larvas de insectos
No fundo, o que lhes interessa é a tecnologia. Não é a ciência em si porque essa, do modo como anda, conduz inevitavelmente ao erro: a especialização esbarra sempre com outras especializações e ficam a orbitar umas em volta de outras, num ciclo sem fim, à procura da saída de si próprias, tarefa impossível num mundo quantitativo. É a tecnologia que fascina por ser precisa (dentro de determinados parâmetros) e por gerar lucro e ainda pelo facto de se confundir tecnologia com evolução sendo esta última considerada algo muito positivo embora não se perceba qual é o seu fim último, nem, na verdade, isso interessar a quem tem como objectivo último o lucro. Em suma, vivemos num mundo estúpido e arrogante. A mim, deixou de me interessar. Sempre que ouço alguém encantado por este canto da sereia, faço orelhas moucas. Os tiques e truques são sempre iguais, é a história da salvação contada aos pequenos robôts. Atrevo-me a sonhar com Deus durante a noite e acordo desconfiada relativamente à reprodução por réplica. Foram as fábricas que conduziram a isto. A replicação insensível e desalmada dos objectos conduziu à replicação dos seres humanos. Tudo o que fazemos e o modo como o fazemos conta. Se nos pensamos e vimos como máquinas, ou como parte de uma máquina, assim seremos e assim será a nossa vida porque nos comportamos com a imagem que construímos de nós mesmos. Descartes deve estar a rir-se. Bastante. Embora tenha sido o seu Deus mecânico que o impediu de ver muitas coisas, ele agora ri-se. O seu impulso para estar bem com Deus e com o diabo tornou-se letra viva. Bem, viva, mas dentro das possibilidades mais pequenas da vida, ao nível dos insectos. É aliás a visão das próprias sociedades actuais vistas de cima: carreiros de insectos, incansáveis e velozes. Um ser contemplativo estraga o panorama. Como é que se avisa um bando de loucos? Não se avisa. Os loucos estão loucos, é essa a sua condição. Ninguém de "deslouca", embora todos se desloquem na loucura geral. Há trabalhos que não valem mesmo a pena. Há outros que valem a pena. O trabalho interno vale a pena. Feito em nós. Uma escuta inscutável pelas escutas tão em voga.
segunda-feira, 13 de dezembro de 2021
Lua Nova
Diminuí a lua de propósito. Não vale a pena espelhar o sol para cegos. Diminuí o mundo porque não vale a pena um mundo sem graça. Observo da minha janela os transeuntes e são tão iguais ao que eram há dez, cem, mil anos. Normalmente o que escondem não é bom. Quase ninguém tem bons segredos, segredos grandiosos, vindos das planícies do céu. Encerram o tenebroso, o embaraçoso, o vergonhoso ou, simplesmente, o nada que carregam às costas e que se vê nos olhos. Hoje disseram na TV que o Rendeiro quando foi apanhado estava com um olhar vazio. Ele sempre teve um olhar vazio, como a maioria dos homens actuais. Somente algumas crianças ainda conservam um olhar acesso e vivo. A vida vê-se pelos olhos. Há também muitas crianças que já trazem o mesmo olhar vazio como uma marca do vazio futuro. Sinceramente já não me preocupo com o olhar vazio. Ainda pensei poder despertar este ou aquele com algumas palavras, mas a decadência do mundo é demasiado forte e visível para lutarmos contra ela. É até um acto de justiça fazer a negação da luta. Seria injusto não o deixar decair e não deixar que o fim de ciclo se cumpra. As sementes, que se podem deixar, são, por definição muito pequenas e invisíveis, escondidas na terra. São as únicas que germinam, as que estão escondidas a qualquer olhar. Prolongo o gesto de olhar o olhar dos animais e de ver neles a alma que falta aos homens. Seria bom poder dizer que um novo mundo está prestes a surgir, uma nova Era, e andar vestida com túnicas a sorrir, descalça num tapete de flores. Seria mais agradável ler isso do que estas letras de nevoeiro entristecido. Mas, a mentira é a grande inimiga da verdade. E a verdade é coisa inexistente num caminho mais além. Mais além, o que há, é uma ligação ao céu. Se quiserem chamar-lhe verdade, pode ser esse o nome. Mas nunca a mentira. A verdade é um nome, a mentira é um facto. Olhar para uma casa e ver de imediato todas as divisões é tão entediante como a desventura de uma verdade todos os dias dita. Daquelas verdades estúpidas como quando dizemos as horas a alguém. Permitam-me que vos diga que acho pouco ou nenhum interesse naquilo que escrevem. Escrevem como se dissessem as horas a alguém. Ou então mentem e dizem que é ficção. Tanto faz. A matéria é sempre desinteressante. O assunto, um dejá vu, os factos inoperantes. Restam os assuntos tomados sob a perspectiva pessoal e intransmissível, os únicos que valem a pena. Aqueles que são as tais sementes escondidas na terra, o gesto simples e humilde de querer saber mais um pouco. O resto é puro espectáculo, sem a grandeza do espectáculo. Um imenso espelho onde se banham os egóicos que nunca se cansam de si mesmos e julgam salvar o mundo ou que o mundo não se salva sem eles, o que para eles é a mesmíssima coisa. A lua, quando está mesmo diminuta, é lua nova. Invisível como as sementes e, o mundo, quando perde a graça, abandona-se a si mesmo num invisível que não compreende. É por isso que vale a pena não espelhar o sol e deixar que a inconsciência seja dona e senhora do momento, porque mesmo sem o saber, ela vagueia no invisível céu que desconhece e não alcança, enquanto ele, o céu, é dono e senhor de si e trata o mundo como um súbdito a quem dá algumas migalhas do banquete quando se lembra ou quando quer.