sexta-feira, 20 de maio de 2022
As três taças
quinta-feira, 19 de maio de 2022
Os bobos
Notas: nesta época caótica nada há a fazer a não ser assistir ao caos. Vejo aqui um pendor contemplativo, ainda que "ser diferente" seja uma forma de acção, submersa tal como o território Português, na sua extensão, se encontra maioritariamente submerso e há uma certa tranquilidade nessa contemplação ativa que resolve conflitos em vez de os estimular.
Outra Nota: o infantilismo leva a que se olhe o mundo, não com olhos de criança, porque estas estão apenas agraciadas pela constatação, mas com olhos deturpados e postiços provindos da mira de um qualquer boneco da Disneylândia, o equivalente a palas nos olhos. É graças a esse olhar, tresmalhado, que assistimos a virtuosos intelectuais, autores de biografias de Pessoa, a apelidá-lo de alguém que nunca cresceu. Ao contrário de alguns "cérebros iluminados" (devia ter colocado mais aspas, duas só não chegam) que logo apareceram com as sentenças de um novo Papa do Oriente que lhes escapa e desadaptadas à situação e pactuando assim com os intelectuais do Regime (que pelas costas tanto condenam), convém reafirmar que quem profere tais palavras sobre Pessoa, se encontra na esfera do fantástico e não da Realidade. Não há riso nisso, há a tragédia profunda da decadência. Se não vivêssemos na Era da Decadência, não seria necessário "ser diferente". E é necessário sê-lo. Aos tolos o que é dos tolos, e assim é, e aos diferentes aquilo que é para eles, e assim é. Na época da inversão das coisas são os infantis a infantilizarem os adultos e só os tolos, que nunca são adultos, confundem as crianças com o infantilismo desta época. É obra: tamanha confusão. A tragédia desta época é rir-se de si própria.
segunda-feira, 16 de maio de 2022
Mãe
A minha mãe faria hoje 89 anos. Faleceu há cinco. Taurina no signo solar e leoa de ascendente, das personalidades mais fortes que encontrei. Desde muito cedo a observava, ao ponto de, com 8 ou 9 anos, lhe ter dito que ela não era minha mãe, mas sim minha amiga. Sempre a vi como algo de exterior a mim. Talvez porque desde sempre soubesse quem era uma quem era a outra. Ela não me ensinou aquilo que as mães ensinam: nem a fazer bolos, nem a ter a casa impecável, nem a dizer mal da vizinhança, nem as histórias de encantar, nem a fazer crochet, nem a viver num mundo feminino e isto porque, a mãe não era assim. Era de outra espécie: a da liberdade. Só mais tarde me interessei por trabalhos ditos femininos, menos o crochet, algo que a mãe sabia fazer, mas nunca ensinou por não lhe dar grande importância. Dava importância a outras coisas. Aos empregados de mesa, se era ou não bem servida, às viagens, aos livros, às línguas estrangeiras, à cultura sob todas as suas formas, aos namorados e paixões, à sua própria ira, ao mar e ao sol e ao vento que a despertava do sono do Antigo Regime que sempre detestou. De 1933 a 1974, viveu em ditadura. E fugia para Paris e para Londres sempre que podia. E vinha com as malas carregadas de livros escondidos por debaixo do forro que era descosido e cosido metodicamente para poder passar na alfândega. Nunca foi comunista, mas detestava que lhe dissessem o que podia ou não ler, que filmes podia ou não ver. A cultura, como o sono, eram consideradas sagradas lá em casa. A música, não se chamasse a mãe, Cecília, era estrondosamente ouvida em manhãs de Sábado e de Domingo, sobretudo e rebentava em Tchaikovsky, Stravinsky, Mozart, Debussy (que amava loucamente), a Carmina Burana de Carl Off, todas as óperas das quais colecionava os libretos que trazia do S. Carlos, o Bolero de Ravel, os Barrocos cintilantes e a nítida sensação de que estávamos cá para usufruir da música. Que elas nos entrasse por todas as portas e janelas e ficasse a residir na nossa casa. O mais estranho na nossa casa era o tempo. Não havia horas para nada. Para chegar, para partir, para comer, para estudar, para dormir, para acordar. O tempo tendia a não existir ou a ser menosprezado. Nunca usei relógio à excepção de um minúsculo que usava num mini-cofre fechado à chave que trazia no bolso. Até o perder. A aventura não durou mais do que alguns meses.
O problema com certas vidas é que se começamos a falar delas, não paramos. Não direi que a minha mãe fosse poeta, mas escrevia poesia. Uma espécie de poesia onde entrava sempre o tempo e o espaço. Duas obsessões abstractas herdadas dos anos sessenta. Lembro-me de uma que começava “paralelas as traves...” ou de outra que acabava com “fuzilaram o Sol”. Conversava-se de tudo lá em casa. Éramos três gatos pingados, eu a minha mãe e o meu irmão exaustivamente analíticos. Desde a política, à religião, aos filmes que víamos e ao dia-a-dia, todos entrávamos em casa com notas de rodapé que soltávamos no quarto da minha mãe onde estava deitada, às vezes por horas, dias... não porque estivesse doente, nunca estava, mas porque, como costumava dizer “o melhor clima do mundo é o da cama”. E era lá que ficava, e ler, a ver televisão, a ouvir música e a estudar. Não era a cozinha nem a sala o centro lá de casa. Era a cama da minha mãe. Era lá que instalávamos uma toalha redonda e fazíamos picnics com batatas fritas, ovos cozidos, tomates assados, fiambre, queijo, azeitonas, pickles e por aí fora. Era lá que recebia os nossos amigos, meus e do meu irmão. Lembro-me de se querer preparar para uma grande viagem a Itália e de se ter inscrito no Instituto Italiano para aprender a língua (antes disso tinha sido a Alliance Française, uma temporada na adolescência a viver em Londres para aprender o Inglês, o Instituto Alemão) e de espalhar todos os livros na cama, e todos os apontamentos e ainda o gravador para onde repetia as frases em italiano, ouvidas até à exaustão. Fez o mesmo comigo para que aprendesse a tabuada: “2x1, 2” e por aí fora. Fiquei com a gravação durante muitos anos e ria-me porque quando cheguei ao “7x10”, soltei um ligeiro grito seguido de um suspiro. “Setenta”, é ainda hoje o sinal que os mais íntimos reconhecem quando já estou farta.
Embora fosse farmacêutica detestava a farmácia. Mas tinha jeito para ajudar. Havia toda a espécie de comprimidos lá em casa, excepto aspirinas que íamos a correr com dores de cabeça comprar à farmácia do bairro e, sempre que isso acontecia, repetíamos “Em casa de ferreiro, espeto de pau”.
Detestava tachos e louça, o que tornava as refeições completamente arbitrárias. Desde muito cedo, lembro-me das “fases”. A fase da Cândida, uma empregada que chegou a viver lá em casa e que nos acordava com torradas e chá. Não podia beber leite porque vomitava, de maneira que a mãe decidiu que iria ser chá. Nunca pensei aguentar tanta teína. A fase dos tapperwares vindos dos restaurantes, a fase da D. Lurdes que nos dava comida em casa dela e limpava a nossa casa durante o dia, a fase da Rosalina, verdadeiramente trágica porque não sabia cozinhar, (excepto umas lulas estufadas, adoradas pelo meu irmão e detestadas por mim e cujo cheiro impestava tudo e me fazia hesitar na vontade de entrar em casa) e nos obrigava a resolver o problema fora de casa em cafés, restaurantes, supermercados, tudo o que encontrássemos, menos os panados encharcados em óleo dessa fase negra da alimentação.
Sendo o meu cabelo algo selvagem, a mãe tentava pentear-mo, quando estava para aí virada, e desistia. Ia buscar a laca para acalmar a fúria capilar e o perfume enchia a carrinha do colégio. Só eu sabia donde vinha aquele cheiro da L’oreal, a lata dourada...
Saía à noite. Ia para os bares. Para as suas paixões. Para os seus amigos homossexuais, para os espectáculos de travestis, para os namorados, as danças, a música do S. Carlos, do S. Luís, para o Teatro, para as cervejarias fora d´horas. E muitas das vezes íamos com ela. Ainda hoje tenho horror às tardes. As manhãs e as noites longas são horas decentes, as tardes são um meio termo entre a vida e a morte.
Por causa dela, a minha alma está cheia de vultos de deuses gregos e não sei rezar. Só orar que é outra forma de poesia. A mãe amava os deuses gregos a tal ponto que os sentia presentes quando falava deles.
(continua, se me apetecer)
quarta-feira, 11 de maio de 2022
Zenith e Nadir
terça-feira, 10 de maio de 2022
As línguas da língua.
domingo, 8 de maio de 2022
O texto pedido
Lá vai mais um texto a pedido de várias famílias, não muitas, mas várias. Assim sendo, começo por dizer que é um acto desesperadamente facilitista escrever para se ser entendido, isso provém de uma possível carência de quem escreve (afetiva, de reconhecimento ou outra qualquer) e, nos meios mais elevados, provém da ideia de tripeça, ou seja, três sentidos de interpretação ou ainda da moeda de duas faces, uma interpretação mais acessível, outra mais elitista (as parábolas de Jesus, por exemplo) e/ou ainda a ideia de que os "mestres" dizem verdades sublimes, vindas do alto e que terão o seu nível de interpretação consoante o nível de entendimento (Camões associou o entendimento ao Amor, e estava certo - não é "quanto a mim", estava certo ponto final parágrafo - as discussões são para os inúteis). Mas, a verdade (esta palavra terrível - não existe no Oriente, mas existe no meu coração) é que raramente há verdadeiras tripeça, parábolas, mestres que escrevem (normalmente não escrevem uma linha, não precisam...). Essa coisa de se ter de escrever para se ser entendido é o jogo viciado da fama, do proveito e do arroto final que é extremamente desagradável e pode ser evitado, se tudo o que vem antes dele também o for. Até os nossos maiores são incompreensíveis, e raramente confessamos que são incompreensíveis porque parece mal. Entenderemos tudo em Fernando Pessoa? A sério? Ou em Camões? A sério? A língua portuguesa (as outras não sei e duvido que o sejam - terrivelmente etnocêntrico este pensamento, mas sabe tão bem) é viva e dança connosco. Aquilo que é mais fácil neste mundo é ser compreendido, entendido, lido com admiração (em terra de cegos... Cada vez mais cegos, não sabia que para além da cegueira ainda havia mais cegueira, mas pelos vistos há - nada como Kali-Yuga para essa aprendizagem...), aquilo que é mais difícil e fácil em simultâneo é ser-se raptado pela própria língua portuguesa porque a sua soberania é imensa e vai para além do próprio entendimento do desgraçado que a escreve (quem escreve a sério normalmente é um desgraçado neste país, agraciado pela língua). Escreve-se porque sim. Sem mais, nem menos. O público está noutra dimensão, mesmo quando várias famílias nos pedem as letras, as palavras e os textos. E o mais estranho disto tudo é que nem sempre as famílias são as do costume. São outras: aquelas que vivem nas palavras, são delas e por elas e de maneira que, à semelhança do escaravelho que tem aquela forma única de se gerar a si próprio, muito semelhante com algo que se traduz como "Eu sou", "Eu gero-me" (algo associado à luz, ao nascer do sol e de toda a presença neste cosmos), o mesmo se passa com a língua. E mesmo que haja o pedido dessas famílias incomuns que vivem nesse espectro sideral, nada nos garante que elas mesmas entendam o que é escrito: pedir não é o mesmo que entender e nem sequer se pode associar à fórmula "Pede e ser-te-a concedido", porque o entendimento já está para além do desejo e quando vem, é como um raio de luz. Quantos textos pobres são entendidos, quantos textos ricos são incompreensíveis? Quanto aos primeiros, podemos responder que são muitos, quanto aos segundos, nunca saberemos, ou se soubermos já estão em nós. Escrever para ser entendido é para quem tem essa missão no mundo, escrever para se ser desentendido é puro acidente e, normalmente, é para quem não tem qualquer missão no mundo, porque o que escreve não é "normal". É um acidente daqueles inexplicáveis. Não foi em vão que Fernando Pessoa escreveu "Aconteceu-me um poema". Estas famílias das letras, das palavras e das frases são poucas e loucas. Uma verdadeira elite, sem a outra face da moeda, o Zé Povinho. Bastam-se a si próprias como o escaravelho. São puro sol. As sombras que se danem...
domingo, 1 de maio de 2022
Lapa