sábado, 17 de junho de 2023

A Educação

 


A Suécia colocou um travão na digitalização nas escolas devido ao perigo de os alunos ficarem "analfabetos funcionais". É muito conhecida a relação dos leitores com os seus livros. São objectos pessoais, com história, com cheiro, com carícias e momentos. Os livros quase ganham o estatuto de gente. A educação em Portugal está toda mal e o facto de o Estado colocar a pata em todos os momentos escolares é o descalabro. A educação encontra-se pelas ruas da amargura porque responde numericamente a uma Europa burocrática que necessita de números para se manter à tona num mundo de grandes potências económicas. Tudo se tornou uma razão económica. Temos estatísticas que nos dizem que a população "não é renovada", por um lado e, por outro, nunca o planeta esteve tão povoado. Temos uma Europa envelhecida "encostada" ao Estado social, por um lado, por outro, temos verdadeiras potências e pró-potências com elevada taxa de juventude, de maneira que estar vivo num determinado país significa estar a lutar por um qualquer espaço que é o mesmo que dizer "recursos". O espaço é um recurso e os países só sobreviverão se o seu número populacional o justificar... a par disto temos todos os movimentos separatistas da Alemanha, Bélgica, Bósnia e Herzegovina, Croácia, Chipre, Dinamarca, Espanha, Finlândia, França, Itália, Macedônia do Norte, Moldávia, Países-Baixos, Portugal (Açores), Reino Unido, República Checa, Rússia, Sérvia, Suécia, Ucrânia ... é longa a lista e a questão dos recursos chama-se "sonho de autossuficiência", sonho impossível neste mundo globalizado. A Europa nasce do Aço e do Carvão e o seu baptismo foi e Economia. Desta feita, dessa fada traiçoeira que fadou o bebé, não se livra. E a educação em Portugal foi, a pouco e pouco, sendo engolida pela economia de maneira que, num mundo competitivo tecnologicamente, convinha criar seres preparados para essa tecnologia para não se ficar atrás nessa competição. Resultado: "analfabetos funcionais". Este analfabetismo funcional não se deve apenas à digitalização nas escolas, deve-se à ideia de um mundo competitivo em termos tecnológicos e competitivo relativamente aos recursos, sejam eles, água, alimentos ou energia, é esta a base de tudo, inclusivamente da desgraça em que se encontra a Educação, pois é devido a isto que são necessários os números para enviar à Comunidade Europeia, cuja única preocupação é sobreviver, no meio de todos os obstáculos: envelhecimento da população, grandes potências económicas, taxa de juventude de alguns países, luta pelos recursos no mundo, tecnologia de ponta, esta última servindo para tudo, desde a saúde às armas (que são o oposto da saúde). Ora, um português, antes de ser europeu, é português. Pela família, cultura e língua. Só depois descobre a Europa, o mundo e, se tiver oportunidade, o espaço sideral. Isto de estudar Antropologia é uma enorme desvantagem pois esta parece tender no sentido inverso do percurso do mundo. Esta disciplina ensina-nos que os jovens, na puberdade, na maior parte das culturas, eram introduzidos na sua cultura, no seu espaço, na sua História. Se pensarmos bem, vimos que não é mal pensado. A formação era, noutros tempos, humanística, e a tecnologia ficava remetida aos planos práticos. Entrar e pertencer a uma comunidade era um processo humanístico, sobretudo. Mas os iluminados modernos, inverteram o processo e o plano tecnológico, tornou-se prioritário na educação, sendo que este plano é global e não local. É o mesmo que começar a educação de uma criança explicando-lhe tudo sobre o espaço sideral, sem lhe dar a conhecer a sua própria comunidade, a história da mesma, a sua língua, etc. O analfabetismo foi quase substituído pela palavra literacia. Ler letras não é o mesmo do que compreendê-las. Mas donde vem a capacidade de compreender as letras? Da cultura humanística, a mesma que foi colocada de parte e que começa por introduzir os seres na sua própria comunidade (dando-lhes um sentimento de segurança e de pertença, já agora) para mais tarde, sabendo de onde são oriundos, poderem partir para o restante mundo e cosmos e saberem assim para onde vão. O analfabetismo é mau, mas o analfabetismo cultural é muito pior. Agora, com a inteligência artificial, a grande tentação irá ser a de delegar a memória e a cultura em máquinas e, os seres humanos, correm o risco de ficar reduzidos às tarefas básicas de "carregar ou não no botão", isto se não lhes for implantado um chip à nascença, algo que já se passa quase de certeza. Na Suécia, deram-se conta de que as crianças carregavam bem nos botões, mas que não sabiam nada. Eram funcionais a não saber nada. Lembro-me de já ter alertado para os riscos deste tipo de educação cegamente obediente aos números. Há "exames nacionais" com perguntas iguais para todos e com respostas previamente estipuladas. Só assim, dizem, há democracia porque todos têm de responder da mesma forma e às mesmas perguntas. Só um ceguinho é que não vê que isto é uma autêntica ditadura cultural dentro de um país. Uma criança de uma aldeia transmontana vive numa realidade diferente do que uma criança na capital do país, não tem, nem deve responder da mesma forma, nem tem ou deve saber as mesmíssimas coisas. A cultura, só se torna geral, mais tarde, quando já nem nos damos conta de que é cultura. Os professores tornaram-se apenas numa ponte obediente a um Ministério que obedece a uma Europa que obedece às exigências competitivas do mundo e isto não é ambiente para que quem quer que seja possa aprender. É a base que está errada. Profundamente errada. O ensino está assente numa ideia de competitividade, mesmo que não esteja visível e quando aprender começa assim, com a palavra competitividade, os resultados são escabrosos, como aliás se nota. Uma das piores palavras do mundo que enchem a boca de todos os políticos, e que a dizem com um sorriso, como se fosse a melhor coisa do mundo, é a palavra competitividade: ela está ligada ao jogo e está ligada à guerra. Pelo jogo, temos o entendimento imediato de que a vida é um jogo, coisa que não é, e pela guerra, temos o entendimento de que a vida pode ser aniquilada em nome dos recursos. A nossa civilização desceu até à animalidade mais primária: os cãezinhos brincam (têm sentido lúdico) em idades juvenis, e até mais tarde, e quando crescem, lutam pelos recursos. É este o plano em que nos encontramos e o plano que faz mover o mundo, por muito que ouçamos Mozart, Haydn ou Beethoven. De maneira que, o que está por detrás do recuo, por parte da Suécia, na digitalização das escolas, é apenas e tão só, um problema antropológico. O mesmo problema que sempre tivemos: o de sermos bestas, humanos, deuses ou anjos...  

terça-feira, 13 de junho de 2023

Parabéns, Fernando.

 


Meu querido:

Escrevo-te hoje, dia 13 de Junho, para te dar os parabéns. Passam 135 anos desde o dia em que nasceste e todos devíamos celebrar o teu nascimento. Porque és, de facto, único. Ultimamente tenho andado a pensar em ti e na distância que vai de ti a este mundo actual. Conseguiste a proeza de gerar Literatura, de quem hoje se pode dizer que o faça? Conseguiste a proeza de seres um mistério vivo. Quem hoje o é? Tu que te afirmaste como sendo nada, à parte de todos os sonhos do mundo, terias de conviver com esta civilização de gente imbuída do espírito de que são tudo, um sonho vivo e sobretudo, muito importantes. Adivinha-se já a crítica, não é? Todos conhecem a tua imagem e poucos te lêem. Todos reconhecem o teu chapéu, os teus óculos e a tua expressão entre o triste, o sério e o ensimesmado. Sabes porquê? Porque estamos na época das projecções de imagem. Primeiro começou, este hábito, com as fotografias, depois com o cinema e agora, todos podem tirar uma foto ou gravar um vídeo instantaneamente e colocar a coleção de imagens em ecrãs para todos verem. E é o que fazem. Sistematicamente. Projectam imagens de si próprios como se isso fosse crucial para se sentirem vivos e para serem dados como vivos. Das palavras, da consciência e da alma, pouco sabemos. Sabemos apenas das imagens, a maioria delas vazia, sem nada a reter senão elas mesmas. Tu que te preocupaste com as palavras como espelho da consciência, estranharias tudo isto. Todo este mundo de fantasmas sem consistência. E, aqueles que se preocupam com a alma, também são estranhos. Muito estranhos. Unem-se em grupos e almoçam ou jantam juntos. Dão muita importância às refeições. Tu que comias ovos estrelados solitariamente, devias estranhar estes banquetes daqueles que se preocupam com a alma. E retratam-se a comer, ou no fim das refeições para mostrarem a todos que são amigos. Tu, que tão poucos amigos tiveste… deverias estranhar o tempo dedicado ao convívio como coisa maior do que qualquer obra. Também creio que se hoje existisses, ninguém te entenderia na mesma. Pensariam que serias um ser estranho, longe do burburinho visual e das duas uma, ou te tomavam como guru, ou te invejariam de tal forma que te ignorariam. Se te tomassem como guru isso seria porque hoje todos precisam de orientação, de alguém que lhes diga qualquer coisa, que os distraia, que os anime e que os façam ganhar esperança não se sabe bem em quê… podemos questionarmo-nos se as pessoas querem sabedoria, ou se querem “evoluir espiritualmente, ou se querem salvar o mundo, ou se querem apenas andar por aí a distraírem-se com alguém que os distraia. Na verdade, não vejo ninguém tão ocupado como tu andaste, assim inquieto, com a tua obra que é maior. Talvez as pessoas me intriguem como a alma humana te intrigou a ti. Muitos ou dizem ou julgam-se estando numa demanda. Mas demanda de quê? Se lhes perguntarmos diretamente, saberão responder? O problema é falar com as pessoas de maneira que elas entendam, embora o entendimento possa ser um mau entendimento, ou um bom entendimento ou apenas parcial. Sabes como ando? Com a alma calada. Ela que me é tão exterior, parece-me que não está interessada em palavras. Assemelha-se a um lago tranquilo. Não sei se já alguma vez estiveste assim. Sem palavras por as pressentir inúteis. Mas quem disse que as palavras têm de ser úteis. Se fossem sempre úteis ninguém falaria no estado do tempo que é indiferente às palavras. Só gosta de danças da chuva. Lembras-te de pedires à Lídia para se sentar contigo à beira-rio? Parece que Lídia se sentou à beira-lago, olhando o mundo como um espelho de uma outra realidade, invisível e sobreposta. Como aquela ilha que escreveste estar próxima e distante. E mesmo assim, Lídia fica imóvel, numa quietude estranha, tão parecida com a do lago que se fundem. Talvez saiba que por mais que agitasse o lago com qualquer pedra que lançasse, este voltaria à sua forma estática e impassível e poupa-se, assim, a movimentos da alma demasiado complexos. O mundo permanece em queda livre e nessa queda é estático como um lago. E Lídia, acompanha esse movimento que é um não-movimento. Não se quebra porque o abismo não tem fim. Por isso, estranho esta quietude. Parece quase irracional. Até um voo picado de uma ave tem mais sentido, porque procura alimento, ou simplesmente sentir o ar a percorrer-lhe as penas. Se calhar é a vida bucólica que a torna assim. Não tem estradas para atravessar, apenas caminhos para percorrer, numa sucessão de paisagens indiferentes à sua presença. Mas hoje é o dia do teu aniversário e celebro-te com saudade. Ter saudades de um poeta é a glória deste mundo, tal como está. Mesmo que sejam umas saudades silenciosas, sem palavras, mas tão fortes que produzam um qualquer som no universo. As saudades têm essa capacidade. E da Saudade, nem se fala. Essa, altera mesmo o cosmos. Dá-lhe uma tonalidade fascinante, e une os tempos desunidos. Talvez a queda se transforme em voo e procure então as cúpulas em vez dos absimos. Talvez se lance de repente para cima e talvez as palavras surjam como estrelas.

 

Um grande beijinho

Da sempre tua,

 

Cynthia



segunda-feira, 5 de junho de 2023

O dito e o não dito

 



Queria ajudar-te a florescer, dando-te um ofício que tem o poder de produzir alguma beleza, para reparar o mundo. Enfim, ao nosso nível. Pelo gesto. Pela beleza  do gesto”.

 

”Não lhe custa coser vestidos que custam os olhos da cara e vir trabalhar ao Sábado, para depois ganhar uma miséria?

- Para começar, eu não ganho uma miséria. (...) O que conta não é o preço de uma coisa, e sim o seu valor. É o valor, não é o que custa. Percebes a nuance?

- Dedica toda a sua energia ao seu trabalho.

- Ao trabalho? Porque falas em trabalho? Isto que estás a aprender é um ofício! Vale todo o dinheiro do mundo! É um ofício que poderás transmitir. Que poderás levar contigo. Isso é que é a verdadeira riqueza!

- Um trabalho alimenta-nos, um ofício...

- Um trabalho não alimenta, minha infeliz! Um ofício é que alimenta! Alimenta o teu orgulho, alimenta o teu imaginário. O sentimento de se ser útil.”

 

Frase e diálogo retirado do filme “Alta Costura”,

 realizado por Sylvie Ohayon 

 

Em poucas palavras, se diz parte do que é importante. A outra parte, é indizível e só pode ser vivida. 

quarta-feira, 31 de maio de 2023

Os homens da pré -História

 


Pessoalmente, uma das frustrações com a qual vou morrer é com aquela que diz respeito à “ascensão espiritual”, tão difícil de alcançar. Não vou morrer frustrada com o facto de não ter comprado o último modelo de telemóvel, ou de computador, com mais ou menos inteligência artificial, até porque não os levaria comigo para a cova e, se os levasse, de pouco me serviriam. Isto não se trata de uma questão de prioridades, as prioridades servem para as estratégias, os objectivos e para resolver problemas. Trata-se da natureza humana que está cada vez mais pobre e longe de si. Tenho andado concentrada na chamada pré-história e, afinal, quase tudo o que me ensinaram na escola ou mesmo tudo (tendo em conta de que as questões fundamentais são aquelas que sofreram mais alterações com os novos estudos) não estava correcto. A pré-História linear, tipo Darwin, já não funciona há alguns anos e o ser humano, modificou-se (não digo evoluiu porque é um disparate), em movimentos paralelos, desviantes ou divergentes o que confere ao desenho de desenvolvimento, a forma de uma árvore. A árvore da vida. Ao que parece, esses homens e mulheres, comunicavam uns com os outros através algumas figuras que iam desenhando às quais se já dá o nome de pré-escrita (não é em vão que temos um centro de escrita incrustado no cérebro), conheciam a agricultura praticando-a se estivessem para aí virados, faziam pão (uma espécie de biscoito que era transportável e podia ser comido durante uma viagem, o que mostra, mais do que o domínio do fogo, o domínio da temperatura. As pedras que erguiam (e ninguém percebe muito bem como o faziam), estavam orientadas com as estrelas e remetiam-se uma para as outras porque do seu alto, outras eram visíveis, podendo também, por isso, ser pontos de referência, isto para além da tese de servirem, nalguns casos, o dos menires, por exemplo, para uma espécie de acupuntura da terra visto se encontrarem frequentemente junto a cursos de água, a mesma sendo altamente condutora de energia. Faziam também flautas para emitir sons. Se seria música ou apenas seriam sons para comunicarem à distância, não o sabemos, no entanto, se para o pássaro a música é natural, o homem, dotado de ouvidos, não lhe seria indiferente. A Harmonia está presente desde o princípio do mundo, e até mesmo dos planetas cujas rotas, por exemplo, estão ligadas a números primos, vá-se lá saber porquê.  Segundo estudos recentes, no seu cardápio não constava o consumo de cavalos, porém, são estes animais os mais representados na sua arte, daí que a exclusividade do tema da caça como tema artístico tenha de ser colocada de lado. Algo que me intriga, e como pinto sei do que falo, é a forma como os animais são tão bem representados ao passo que os seres humanos, são toscos, quase infantis nessas representações. Sei bem o quão difícil é desenhar um animal, muito mais do que um rosto, com olhos, pestanas, cabelos, sobrancelhas, nariz com respetivos orifícios, bocas ou queixos. Desenhar um animal, garanto que é mais difícil porque o animal vive das proporções, das linhas curvas que têm mesmo de se curvar no lugar certo, com a intensidade correta do traço. Mas, mais espantoso ainda, é o facto de esses desenhos não serem um produto do “desenho à vista”, feitos com o homem da pré-história prostrado em frente a uma tela, observando o bisonte enquanto bebe água. Eles são feitos depois de serem observados o que demonstra uma memória visual extraordinária, ou então, como alguns teóricos avançam, apareceriam sob a forma de visões depois da ingestão, que também era frequente, de substâncias alucinógenas. De qualquer forma, é notável a perícia, o bom gosto e o requinte. Na arte contemporânea, nada me atrai porque é cerebral, altamente pensada e mergulhada em conceitos artificiais. Não me transmite nada, nenhuma emoção, nenhum espanto, quando muito, repulsa, por vezes. Na arte da pré-história tudo é incrivelmente espontâneo, feito ali, no momento. As cores surgem como flores que desabrocham para o sol, os traços acompanham o ritmo da natureza e o fogo ou o sol que os ilumina (se se tratar de gravuras), permitem as sombras de um outro mundo que nos supera e nos escapa como água por entre as mãos. O artista é a sua obra e a obra é o artista, unidos pelo fogo transcendente que os cria a ambos. Como se pode constatar, é natural que não morra infeliz por não ter o último modelo tecnológico de qualquer coisa. Aquilo que mais me intriga não é o desenvolvimento tecnológico. É o processo artístico como cosmogonia. De que forma o nosso corpo pode entrar em sintonia com as esferas invisíveis, com os mundos paralelos que podem ser superiores ou inferiores numa hierarquia, por vezes, tremenda e radical, outras vezes, subtil como uma aguarela? O mistério do ser humano não passa pela sua capacidade de fazer mais ou menos objetos tecnológicos, passa pela sua dimensão espiritual e essa é, cada vez, mais desconhecida, quase como se fosse uma consequência do caminho que a humanidade tomou ao delegar e sua inteligência em aparelhos, ao negar os seus próprios sentidos que são muito mais do que apenas cinco. Mesmo que a espécie humana desapareça, e pode desaparecer, o fenómeno que é a sua alma, não desaparece e pode surgir encarnada noutras situações, noutros planetas, noutras dimensões, isto quando tem de surgir, no grande movimento que têm os olhos de Argos, que ora dormem, ora despertam. Crê-se ser esta a civilização do desperdício e, se sobrevivermos a ela, como espécie, penso que deveria ser apelidada disso mesmo, não só pelo lixo quase irreversível que produzimos, mas, sobretudo, por desperdiçarmos a oportunidade de nos conhecermos e, dentro de nós, de conhecermos todas as nossas dimensões e possibilidades, algo que renegamos e que remetemos para tecnologia à qual falta e faltará sempre a alma, como anima transcendente. A inteligência artificial irá à procura de uma alma qualquer que nela queira encarnar, mas será sempre uma alma artificial, em segunda mão, algo que não acontece com os seres humanos, mesmo quando são “visitados” por outras. Porque cada uma delas é a primeira e a última em si, não por uma questão de probabilidades de combinações, mas pelo facto de, na sua essência, existir uma unidade transcendente. Absolutamente transcendente. Algo que não conseguiremos nunca reproduzir por não necessitarmos. Já somos assim. A maior parte das frustrações humanas actuais prendem-se com uma sociedade construída no artificialismo e, qual pescada de rabo na boca, essas frustrações tendem a ser “curadas” por mais tecnologia, piorando o diagnóstico. É por isso que me sinto mais próxima dos homens da pré-história do que dos homens contemporâneos. Eles estão mais próximos da essência do que somos e a minha frustração não é de não ser uma deusa, é a de não ser mais humana, cada vez mais humana, porque, ao sê-lo, estaremos mais próximos dos deuses e de Deus, sem foguetões, mas com naves espirituais. 

quinta-feira, 25 de maio de 2023

O JARDIM DOS SÍMBOLOS XXXIV

 


A FUGA DOS HOMENS

 

A robustez das palavras surge da robustez do nosso olhar. Não há cerca maior do que o muro da nossa vivência, ergue-se até às estrelas e acaba por ganhar raízes até ao fundo da terra captando o sol que aí impera. Uma vez erguida, uma cerca, é inderrubável. Uns intuem-na, outros chegam mesmo a vê-la e fazem um silêncio recolhido. Ou fogem. Dentro desses muros não há personagens, há almas que se agitam e vozes postuladas na sua própria vibração. Quem foge por ter espreitado, vai fugindo com o aparente desencanto de um jardim deserto de personagens e regressa rapidamente ao mundo que faz parte da sua vida e, nessa corrida, vai dizendo, vai gritando: “Não é verdade! Não existe!” e não sabe que vai dizendo e gritando que a poesia não é verdade e que não existe e vai correndo em direcção ao mundo, entre o lamento e o alerta, pedindo para que se mantenham afastados do seu próprio centro, de onde tudo emerge e flui em cascata. E as almas do centro do mundo, espreitam essas corridas em fuga e comentam que os fugitivos parecem pássaros a quem tiraram as asas e que, por isso, só sabem correr como se fugissem do fogo das palavras que fazem arder todos os pedaços da vida, restituindo-lhes a cor emergente das cinzas, as jóias dos momentos de enlace com o céu e que não ardem e não arderão nunca. E não sabem que correm para as cinzas do mundo, em direcção ao pó de onde vieram, à poeira das estrelas, de onde vieram, dispersa e ainda não reunida na forma robusta de um deus voador que acompanha, com os olhos, essa fuga que atinge todo o mundo, envolvido pela viagem da Via Láctea pelo universo. A lágrima de um deus cai, para não se rir, cai sobre essa fuga. Submerge essa fuga e torna as almas fugidias em peixes fugindo pelo mar, esquivos às mãos dos pescadores, esquivos aos homens do mar, aos homens das naus que cantam e dançam no convés e enfeitam os mastros com as flores do jardim que vão revelando ao mundo…

 

TU E EU, ESQUIVOS AO MUNDO

 

O nosso olhar são duas aves que se encontram.

 

 


segunda-feira, 22 de maio de 2023

O JARDIM DOS SÍMBOLOS XXXIII

 


MAR

 

O jardim tornava-se labiríntico se os nossos pensamentos o tornassem labiríntico. Nas subidas dos caminhos construídos nas montanhas pelos homens rudes, havia sempre patamares, nos abismos escarpados das montanhas, nunca os havia. Todos os patamares eram ascensões, mesmo que ficassem a meio das descidas… os patamares obrigam à contemplação, à espera, à recuperação, pequenos mares. Os deuses, quando caíam, voavam e quando voavam jamais poderiam cair. Souberam disso os homens e mulheres, descendo pelos caminhos em direcção ao mar, quando a ele regressaram e, por esse caminho que os levava ao grande oceano, foram plantando jardins onde as plantas fixavam as suas raízes e onde algumas se transformavam em aves que, serenamente, a certas horas do dia, se deixavam ficar a contemplar o mar  e que, noutras horas do dia , recolhiam os seus frutos marítimos que são sempre mares eles próprios, para outros frutos. Todos os peixes do oceano guardam em si o milagre da sua própria multiplicação. Todo o oceano é multiplicável, toda a terra é redutível sem o mar. Iniciaram as viagens da terra para o mar, do céu para a terra, numa nau que era um aparente labirinto movimentado de raízes, jardins e ondas; viagens de naus, terrestres e celestes, entrando pelo mar que esperava por elas, talhadas como ondas de madeira perpendiculares aos mastros que eram as árvores da terra. O oceano brilhava à luz do sol e da noite, um novo jardim com a sua oscilante linha do horizonte, em degraus que desapareciam para outros aparecerem quando se elevava a proa. Só se pode navegar quando esse brilho solar e lunar é captado, sentido, recolhido e desenvolvido. Disso os deuses sabiam e isso esperavam dos homens e das mulheres nascidos das sementes: que regressassem à praia de onde tinham vindo. Esperavam pelas suas naus, pelas suas cordas, pelas suas velas, velando pelo mar e, sobretudo, pelos jardins que levavam com eles para que os plantassem longe como o horizonte, em terras diferentes. Os deuses sempre estiveram em todo o lado. No espaço e o tempo, na imagem que deles fazemos, na origem das palavras que cantamos na solidão das catedrais de pedra, e na imensidão do mar, sem que haja diferença entre a catedral e o mar. Ambos ecoam o que vamos dizendo. A Descoberta é uma oração, a oração uma Descoberta. 

 


segunda-feira, 15 de maio de 2023

O JARDIM DOS SÍMBOLOS XXXII


A BELEZA DA REBELDIA

 

Musculados, de pernas fortalecidas pelos pesos, levavam vasos e sacos de terra, subindo e descendo o jardim. Ainda não tinham o passo dos deuses, mas fortaleciam os músculos, sem que o soubessem, para que um dia pudessem dar esses passos únicos, ligeiros e firmes, indissociáveis do espírito. Tinham nascido das sementes e, como todas as plantas rebeldes saídas da imaginação de um demiurgo que um dia tinha sonhado acordado, possuíam ainda a sensação de conseguirem domesticar a rebeldia do mundo vegetal. Colhiam, podavam, lançavam sementes, cortavam, regavam, endireitavam, encaminhavam a direcção das árvores jovens, até à exaustão. E voltavam a fazer o mesmo, endurecendo os músculos, tornando-os pedra contraposta às plantas, desafiando-as na mesma medida em que elas os desafiavam a eles. Rebelavam-se apenas no que conseguiam ver que havia para se rebelarem. Não tinham mão nelas, mais rebeldes do que eles, cresciam em todas as direcções, ou murchavam quando menos era esperado, ou resolviam criar a desarmonia, assim entendida por eles que apenas desenhavam traços rectos e despojados que a sua falta de criatividade escondia enquanto podavam o jardim, tentando domesticá-lo incessantemente. Os deuses passavam por entre eles, despreocupados e com olhos de lince capazes de verem para além das rectas desenhadas e de apontarem os defeitos: uma folha amarelecida, uma tesoura de podar esquecida, um vaso tombado no caminho. Como cresciam ou em que direcção, isso não dizia respeito aos deuses, nem era importante. Uns reparavam com mais firmeza numas coisas, outros com mais segurança, diferente da firmeza, noutras e os deuses, ao contrário dos homens, admiravam a beleza da rebeldia das plantas e das flores, brincando com elas em segredo e criando com elas e, a partir delas, as sementes que um dia iriam cair de um ramo de flores composto num qualquer momento crepuscular. Olhavam para os homens que se rebelavam contra a rebeldia do mundo vegetal, indomesticável e pensavam-nos como condenados ao destino composto pelos passos escolhidos por esses homens e mulheres, passos cada vez mais fortes e firmes dados nessa tentativa de se sobreporem ao aparente e iminente caos do jardim e que não viam ainda os símbolos, apenas participavam neles, lançando uma ou outra palavra de fogo que lhes parecia terem escutado nos momentos, raros, em que a sua alma agitada sossegava. Nessas alturas, olhavam para longe como se estivessem a olhar para um anjo ou para alguém que lhes acenava ao longe. A sua rebeldia era ligeiramente sombria, uma sombra ténue que só os deuses podiam ver, uma sombra da sombra de um esbatido sentimento de culpa que ainda não sabiam ser uma ilusão, porque se rebelavam contra a própria rebeldia sem conhecerem a sua beleza, vista ao longe, na distância que separa os deuses dos símbolos e dos símbolos que os homens são.