segunda-feira, 15 de maio de 2023

O JARDIM DOS SÍMBOLOS XXXII


A BELEZA DA REBELDIA

 

Musculados, de pernas fortalecidas pelos pesos, levavam vasos e sacos de terra, subindo e descendo o jardim. Ainda não tinham o passo dos deuses, mas fortaleciam os músculos, sem que o soubessem, para que um dia pudessem dar esses passos únicos, ligeiros e firmes, indissociáveis do espírito. Tinham nascido das sementes e, como todas as plantas rebeldes saídas da imaginação de um demiurgo que um dia tinha sonhado acordado, possuíam ainda a sensação de conseguirem domesticar a rebeldia do mundo vegetal. Colhiam, podavam, lançavam sementes, cortavam, regavam, endireitavam, encaminhavam a direcção das árvores jovens, até à exaustão. E voltavam a fazer o mesmo, endurecendo os músculos, tornando-os pedra contraposta às plantas, desafiando-as na mesma medida em que elas os desafiavam a eles. Rebelavam-se apenas no que conseguiam ver que havia para se rebelarem. Não tinham mão nelas, mais rebeldes do que eles, cresciam em todas as direcções, ou murchavam quando menos era esperado, ou resolviam criar a desarmonia, assim entendida por eles que apenas desenhavam traços rectos e despojados que a sua falta de criatividade escondia enquanto podavam o jardim, tentando domesticá-lo incessantemente. Os deuses passavam por entre eles, despreocupados e com olhos de lince capazes de verem para além das rectas desenhadas e de apontarem os defeitos: uma folha amarelecida, uma tesoura de podar esquecida, um vaso tombado no caminho. Como cresciam ou em que direcção, isso não dizia respeito aos deuses, nem era importante. Uns reparavam com mais firmeza numas coisas, outros com mais segurança, diferente da firmeza, noutras e os deuses, ao contrário dos homens, admiravam a beleza da rebeldia das plantas e das flores, brincando com elas em segredo e criando com elas e, a partir delas, as sementes que um dia iriam cair de um ramo de flores composto num qualquer momento crepuscular. Olhavam para os homens que se rebelavam contra a rebeldia do mundo vegetal, indomesticável e pensavam-nos como condenados ao destino composto pelos passos escolhidos por esses homens e mulheres, passos cada vez mais fortes e firmes dados nessa tentativa de se sobreporem ao aparente e iminente caos do jardim e que não viam ainda os símbolos, apenas participavam neles, lançando uma ou outra palavra de fogo que lhes parecia terem escutado nos momentos, raros, em que a sua alma agitada sossegava. Nessas alturas, olhavam para longe como se estivessem a olhar para um anjo ou para alguém que lhes acenava ao longe. A sua rebeldia era ligeiramente sombria, uma sombra ténue que só os deuses podiam ver, uma sombra da sombra de um esbatido sentimento de culpa que ainda não sabiam ser uma ilusão, porque se rebelavam contra a própria rebeldia sem conhecerem a sua beleza, vista ao longe, na distância que separa os deuses dos símbolos e dos símbolos que os homens são.

 

 

 

 

 

 


 

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