sábado, 28 de fevereiro de 2015

Fonte



Foi esta ruptura absurda,
Vinda não sei de que céu
Obrigando à separação
Abrigando a imensidão
Foi esta história simples
De acontecer a arfante fuga
Do imenso espelho do ser
Na verdade insubmissa e cruel
De nada poder contra as palavras
Esvaziando-me e enchendo-me o ser
Foi esta incapacidade de não conhecer
Outra coisa senão estados do mar
E são só vagas de palavras a falar...
Foi esta a longura sem distancia
Este momento de intemperança
Em que um céu maior do que o ser
O invade  e em morte transparente o lança
Em diferentes tempos a acontecer
Não sei de que mar, de que humor, de que deus
De que norte ou sul ou oriente andou e veio
Este remoinho de sóis,  esta arte sem saber
Quem dera a voz, dos trovões, dos mares
Pudesse dizer, na sua pura firmeza
Que a nave é puro espírito, 
adormecendo e aconchegando a febre do existir
Não nada nem ninguém,
sabe o que o Verbo pode e faz acontecer
E de que modo se move por entre as frestas da alma
E de que modo canta nos intervalos das veias
E como se solta em pombas rápidas
E de que modo é Ele mesmo sempre a nascer


(Cynthia Guimarães Taveira)

Sintra em Sol maior



Vou por ti, Sintra, nesse perfil
Nesse sonho exemplar que és
Fogo escondido por Eras e Eras
Larga e altiva, abraço ao mar...

E desassossego com esta lembrança
Que é ver-te, tão minha, tão do meu olhar
Velando o mar como quem vela um anjo
Ver-te, e deixar de te ver, ao livre estar das brumas...
 
Quem dera a saudosa graça do teu segredo
Guardado por sóis e luas nascentes,
E assim é, desde sempre e te ergueste
Desse mar almado, vivificando as rochas...
 
Ah, sustento de promessa não pedida
E dessa ilha oscilante
Naves em vão por ela passam
Mas a ela só o teu olhar alcança
 
Maior que esta lua de te saber
É este sol presente ao lado
Nada fica de fora em nosso perfil
Nem o Castelo, nem o Palácio
Nem o verde da lagoa, nem o azul 

Passam por nós anjos
Por breves momentos em voo, param
Reconhecem-nos em vida nos nossos olhos?
Sim, eles sabem do olhar secreto e alado...

(Cynthia Guimarães Taveira)

quarta-feira, 25 de fevereiro de 2015

Àqueles




Àqueles que vivem no mundo a sentir e, ainda assim, em esforço maior, o reescrevem num sentido demonstrável pela arte. Àqueles que não negam o fogo inaparente das coisas. (Oh, mundo, que esconde outro, que emerso está ainda noutro... vagas de frio tornadas quentes...!) Àqueles que não permitem a inexactidão do templo e o demonstram no vento... (Ah, terra de loucos sem passado e cujo respirar é um terno e doce encontro entre as vinhas e o vinho já provado!).  Àqueles para os quais não há pesar, nem grilhetas capazes de os levar para onde não querem ir... e antes, muito antes do tempo existir, já davam asas a quem passava. Àqueles que permitem que o anjo desça, em nuvem, cascata, em ermitas ou violetas... àqueles cuja alma é sã no crepúsculo e o ilumina contrariando as horas... envio, daqui, donde vos vejo, a palavra desdobrada, em céu e terra tomada, sem que nada deixe ao acaso, nem a sombra, nem a voz, nem a luz, nem o ser-se assim para além de tudo.

 

(Cynthia Guimarães Taveira)

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2015

Pítia e a estrela


Pítia e a estrela

Que há de tão impreciso nos teus passos que faz as flores fixas na beira do caminho oscilarem? Que há que não sei nem adivinho, essas artes de sol-posto que é desta praia e só desta praia de Portugal sem que outra haja?  Que há que calas e não dizes e nem expressas, sequer, no fundo do teu olhar? Que há que não sentes sem primeiro adivinhar?
Há o mar imenso, imenso dentro do teu olhar, dentro e fora de ti... que altíssimo te assiste nessas cores oscilantes, nessas nobres passagens por vidas breves? Que silêncio é esse de fragâncias e só fragâncias que o preenchem?
Por onde escutas, nessa noite, estrela a estrela, por ti passando... por onde vais, universo a universo por ti entrando?
Secretos tempos sem tempo... sucedendo-se no tempo rico. No tempo rico feito demais, elaborado de mais com avesso e frente tornando-te pítia por Cronos raptada e só por ele amada.
Que desenrolo é esse dessa imensidão de encontros predispostos antes de tempo? De que te falam quando te falam do que vai ser, do que pode acontecer... porque não te surpreendes já com esses passos do tempo que vem de fora e do além? Porque não estremeces já com o que esperas.. por esperares?
Que vozes são essas, donde vêm, para onde vão? E porque lhes interessa o tecido que vais tecendo se nus andam e sempre andarão? Que sei eu de ti, a não ser que vives para além de todo o artificio de tempos por mãos humanas tecidos, tão facilmente diluídos, quando o sopro verdadeiro em ti pulsa e em ti age na imensidão infinita desse azul feito de todos os azuis que te surpreendeu o ser e te surpreendeu por o seres? Como dizer que a estrela navegou no céu passando por ti primeiro?

(Cynthia Guimarães Taveira)

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

As rosas, as cruzes e a luz




 
- A senhora aprecia Camões?

- Como não? O nosso grande poeta. O nosso pai da língua! O nosso fazedor da “Bíblia” nacional!

- E dizei-me, a senhora, de que lado está? Das cativas, Leonores e ademais amadas pelo poeta, ou do lado do pobre poeta, que sem olho ficou, nas suas desventuras?

- De que lado? Existem lados? Olha-me com que olhos afinal, como personagem da obra Camoniana, como o poeta, ou como aquela cuja compreensão toca as esferas e a luz vista por Vasco da Gama (em imaginação, sim, em vera imaginação... )?

- Minha senhora, defina-se, ou ama ou é amada, ou é o poeta ou é a musa, ambos nunca, não há leitores ausentes, não me venha com a história da luz outra vez, ela não é própria de uma senhora, apenas de um homem da envergadura de Gama.

- Compreendo o que diz... são as chamadas dádivas legítimas. Pois se é dado a um homem tal presente dos céus, pode ser escrito e cantado em poemas, pois se ao invés, é dado a uma mulher, será fruto da ilusão, mera especulação da alma, sugestão de tais leituras... compreendo o seu ponto de vista, que é apenas um entre tantos.

- A senhora aprecia Pessoa?

- Como não? O nosso grande poeta. O pai da consciência da nossa alma! O fazedor de seres a haver!

- E dizei-me, senhora, de que lado está? Da fragmentação caótica de que foi alvo o poeta ou dessa unificação tentada que, aparentemente, para leitores desprevenidos, nunca o chegou a ser?

- De que lado? Existem Lados? Olha-me com que olhos, afinal, como personagem fictícia da obra de Pessoa, ou como aquela que a todos entende depois de adquiridos os olhos de luz (em imaginação, sim, em vera imaginação...)?

- Minha senhora, defina-se, ou é uma ou é várias, ou é o poeta que a todos assiste ou é todos a que ninguém assiste, e não me venha com essa história dos olhos de luz... o tempo das deusas acabou... Só um cego, um louco não vê que Fernando Pessoa morreu templário! Templário está a ouvir?

- Compreendo o que diz, se a rosa crucificada for um homem, então pode ser escrita e cantada em poemas, mas se ao invés, é dada a uma mulher tal crucificação na cruz heteronímica, será mera sugestão, colagem a um poeta, carências afectivas, histerismos vários, compreendo o seu ponto de vista, mas é um entre vários... nunca fui tão incomodada por ser mulher.

- Idiota, você é uma idiota: não vê que está tudo, mas tudo na sua cabeça? Mulher louca! Louca da casa, insubmissa, ignóbil, ignorante! Você não sabe nada, não entendeu nada. Você não é nada porque não se define... faça o favor de se posicionar perante as obras como gente grande! Cresça de uma vez!

- E o senhor? Como se define?

- Evidentemente que sou Camões e que sou Templário, sou Fernando Pessoa Unificado.

- Em imaginação?
 
(Cynthia Guimarães Taveira)

sábado, 14 de fevereiro de 2015

Vim de fora...




Vim de fora, quando ainda não havia livros nem citações e nos conhecíamos só por nos conhecer. Não havia a carga do saber e havia tudo por saber. Vim de fora, de um outro círculo do céu, longe destes homens talhados a foice de ideias... há, lembro-me, não havia ideias sequer, havia a procura dela, da grande ideia e o que sorríamos nesse procurar. Saudade? Ah, mas toda, toda sem igual. Nada disso outra vez encontrado... se andamos tristes? Oh, se andamos, tão longe desses passeios quase sem nexo, nem amarguras nem desventuras. Quando tudo se torna uma prova, nada é provado e nada é provável também... nem as boas notícias de te encontrar assim, de novo, longe de tudo isto, sem livros nem citações, nem emblemas que nos ponham em sentido. Se havia dantes, um dantes todo inteiro, sem ontem nem depois, nem amanhã que o volvesse do milagre desse momento? Oh, se havia e há esse “dantes” em que não era necessário crer para se ser... tudo acontecia no acaso do acaso, no desenrolar livre do tempo, sem a mácula do ex-libris, sem a assinatura do artista, sem a autenticação da obra, sem o timbre da exactidão das crenças. Se guardo todos esses de “fora de onde vim”, e tu vieste também? Oh se guardo, na esfera dos ausentes, na melancolia dos pacientes e, sobretudo, na imensidão dessas paisagens que nos obrigavam a cruzar o olhar e a torná-lo num só. Se te lembro, assim, sem sombra de uma aguarela terrestre que te escondesse do vero sentido da larga visão, da sapiência dos fortes, do amor dos intocáveis, do abraço tão forte que era um laço... não, não te lembro.  Só te sei assim. Só te quero assim, já sem memória das palavras que escrevi e nunca deveria ter escrito para não sobrecarregar o teu olhar, nas promessas que elas são, nas formas que tomam, para não te tornar pesado como o mundo, nas grelhas dele e equilíbrios estratégicos que são só a maldição de quem nunca esteve de fora porque nunca de lá veio... se te lembro assim? Deixo o sorriso triste descarnado e aguardo, como quem não ousa procurar aquilo que não se procura, nem se constrói, nem se talha a foice de ideias, apenas surge, nessa curva da estrada, sem nevoeiro, sem nada, só possível de nascer de novo por não haver memória antiga, sequer, que te assista, quando te vir, em novo berço, em nova hora, em pleno Inverno e esquecido dele.

 

(Cynthia Guimarães Taveira)