Vim de fora, quando ainda não havia livros nem citações e
nos conhecíamos só por nos conhecer. Não havia a carga do saber e havia tudo
por saber. Vim de fora, de um outro círculo do céu, longe destes homens talhados
a foice de ideias... há, lembro-me, não havia ideias sequer, havia a procura
dela, da grande ideia e o que sorríamos nesse procurar. Saudade? Ah, mas toda,
toda sem igual. Nada disso outra vez encontrado... se andamos tristes? Oh, se
andamos, tão longe desses passeios quase sem nexo, nem amarguras nem
desventuras. Quando tudo se torna uma prova, nada é provado e nada é provável
também... nem as boas notícias de te encontrar assim, de novo, longe de tudo
isto, sem livros nem citações, nem emblemas que nos ponham em sentido. Se havia
dantes, um dantes todo inteiro, sem ontem nem depois, nem amanhã que o
volvesse do milagre desse momento? Oh, se havia e há esse “dantes” em que não
era necessário crer para se ser... tudo acontecia no acaso do acaso, no
desenrolar livre do tempo, sem a mácula do ex-libris, sem a assinatura do
artista, sem a autenticação da obra, sem o timbre da exactidão das crenças. Se
guardo todos esses de “fora de onde vim”, e tu vieste também? Oh se guardo, na
esfera dos ausentes, na melancolia dos pacientes e, sobretudo, na imensidão
dessas paisagens que nos obrigavam a cruzar o olhar e a torná-lo num só. Se te
lembro, assim, sem sombra de uma aguarela terrestre que te escondesse do vero
sentido da larga visão, da sapiência dos fortes, do amor dos intocáveis, do abraço
tão forte que era um laço... não, não te lembro. Só te sei assim. Só te quero assim, já sem
memória das palavras que escrevi e nunca deveria ter escrito para não
sobrecarregar o teu olhar, nas promessas que elas são, nas formas que tomam,
para não te tornar pesado como o mundo, nas grelhas dele e equilíbrios
estratégicos que são só a maldição de quem nunca esteve de fora porque nunca de
lá veio... se te lembro assim? Deixo o sorriso triste descarnado e aguardo,
como quem não ousa procurar aquilo que não se procura, nem se constrói, nem se
talha a foice de ideias, apenas surge, nessa curva da estrada, sem nevoeiro,
sem nada, só possível de nascer de novo por não haver memória antiga, sequer,
que te assista, quando te vir, em novo berço, em nova hora, em pleno Inverno e
esquecido dele.
(Cynthia Guimarães Taveira)
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