Houve um tempo em que havia profetas depois... Depois isto
endureceu, então no último século, endureceu ainda mais, e restaram os poetas
nos seus acessos de loucura expedita na revelação. O afastamento da dimensão
múltipla dos homens, devido à "especialização" temática e gestual
concedida "generosamente" pelos efeitos da Revolução Industrial
conduziu-os, inevitavelmente (?), à leitura parcial das coisas, (efeitos do
trabalho sequencial fabril - febril) causando artrites (atritos) e artroses (atrasos
atrozes) - os "erres" parecem empatar a palavra... - crónicas. O
primeiro empate é óbvio: a confusão entre profecia e adivinhação que confere o
tom "irremediável" àquilo que é apenas "revelação"
subsistindo no limbo atemporal até que seja confirmado, ou não, não havendo obrigatoriedade
alguma a que os factos revelados se comprovem (quando condutores à desgraça até
é bom que nunca se cheguem a comprovar...). O segundo empate é o da confusão
entre profecia e poder (tirando os poderes proféticos cujo orgulho tende a ser
imediato), há uma leitura igualmente errónea e parcial uma vez que, no concreto
e na vida real, tais capacidades se tornam um fardo, uma permanente
marginalização de qualquer espaço social. Se estou a inventar? Não, basta ir à
História... E, por último, e tendo tais funções passado para as mãos dos poetas
(malta de esquerda leiam o Manuel Alegre anos antes do 25 de Abril e a sua
conversa com cravos - nem os homens de esquerda laicos se escapam ao dom) são,
tantas vezes, alvo de leituras erróneas e parciais, provindas de nós, leitores,
produtos de comportamentos intelectuais fabris, recolhidos em tocas ideológicas
(as ideologias são uma misturada de Revolução Industrial, Messianismo e
platonismo - a única Revelação que foi dada a Platão foi a da sua própria morte...,
o resto foram exercícios demonstrativos do mito e entender isto custa ...).
Convém então lembrar que a leitura pode ser uma forma de arte. E como? Basta
rever os princípios do rito que estão presentes na construção de uma obra de
arte (que como já referi começa e acaba na liberdade não deixando de ser um
Rito). Outro princípio é aquele que diz que o artista se transforma a si
próprio enquanto transforma a matéria prima. Outro princípio está em ir além do
mestre, "matando-o". Todos estes princípios (porque necessitamos
sempre de pontas por pegar senão cai-se no vazio vazio e não no vazio cheio - é
este o erro do budismo acelerado e importado aceleradamente, aliás, esta visão
acelerada também é produto da formatação do pensamento por via do decréscimo do
trabalho manual... E estou convicta que nas aldeias japonesas muitos sabem
disto - a elaboração de uma e uma só espada tradicional de samurais, dentro de
uma família que possuí o segredo da sua elaboração, demora mais de um ano,
todos estes princípios, dizia, podem estar subjacentes ao acto que é ler. A
qualidade não é mensurável por se mover nestas águas. O acto de ler poesia, em
voz alta ou não, é em si próprio um acto criativo. Se o autor não está ausente,
o leitor também não o está e tratando-se nós de seres holísticos (embora muito
esquecidos disso) imaginem a quantidade de possibilidades que vós, leitores,
escondem dentro de si. Fernando Pessoa fragmentou-se todinho para que um dia os
homens fossem poetas. Fragmentou-se em busca do seus leitores futuros, parte
das suas saudades, iam para aí. Pelo caminho, sabia bem, teriam revelações,
como ele as teve. Uma delas foi essa dos seus leitores futuros. Mas sabia
perfeitamente que a visão parcelar das coisas contrariava a natureza humana que
tende para o Absoluto. Então aqui em Portugal, nem se fala. E o que ele
sublinhou isso... isso e a matéria-prima que é a língua portuguesa.
(Cynthia Guimarães Taveira)
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