sábado, 9 de janeiro de 2016

A Louca Pressa e a Grande Aventura da Alma



A louca pressa que existe tanto na imediata adopção das vestes como na imediata adopção das atitudes (e estas ainda mais preocupantes porque provindas do mundo das ideias num imediatismo aflitivo, perto de um teatro descarnado, como se os homens fossem substituídos por marionetas), leva, no primeiro caso, ao discurso e à visão do mundo única e exclusivamente materialista – foi talvez esse o erro marxista, a adopção das vestes - e se este primeiro caso permite a desilusão e o ter de arrasar tudo para tudo iniciar outra vez, já o segundo, permite a ilusão prolongada, que acaba, mais tarde ou mais cedo, igualmente numa desilusão ou naquilo a que comummente se chama de crise existencial e, também ela, à imagem e semelhança do que a provocou, prolongada no tempo.
No mundo do espírito não há, nem adopção de vestes nem adopção de ideias porque ele se comporta como um organismo vivo. O que há, verdadeiramente é uma transmutação. Nada é adoptado, tudo é transformado. É nele que a alma é susceptível de ser conhecida. E conhecida de que forma? Imaginemo-la exactamente com os mesmos sentidos que o corpo tem só que amplificados por força da luz do espírito.
Por aqui se vê que, tanto a adopção das vestes, como a adopção de ideias, ambas recusam a aventura da alma, erro supremo nos nossos dias, provocando diálogos de surdos. A aventura da alma far-se-á sempre nua da adopção de vestes e ideias porque das duas uma, ou há um “choque tremendo” provindo do destino que a faz ver isso, ou já nasce assim espontaneamente e susceptível de ir criando as suas vestes e as suas ideias. É nesse sentido que os criadores, os criativos, se “puxam” a si mesmos. Colocam a alma à frente dos bois que são (numa pressa natural, esta sim, porque é conferida pela sua própria natureza intimamente ligada tanto ao destino sem livre arbítrio como ao destino com livre arbítrio consoante os casos e muitas das vezes convivendo ambos lado a lado....) e colocando-a assim, desbravam o caminho, sem que se dêem conta, evidentemente, ou são se dão conta a determinados momentos desse caminho e, a esses momentos, breves, chamamos de revelação, não sendo isso nada menos do que a revelação de uma determinada condição, também ela situada no tempo e no espaço com a felicidade de se entender o ponto da situação. Quando António Telmo aponta o seguinte facto: “a revelação do culto não pode ser histórica. O oculto só se revela à alma” [António Quadros e António Telmo – coordenação de Mafalda ferro, Pedro Martins e Rui Lopo – edições Labirinto das Letras, 2015, pág. 201], aponta o dedo em várias feridas e  na mesma página acaba magistralmente o texto de evocação a António Quadros com a seguinte frase “Os António Sérgios continuam aí.” aquilo em que se pode ficar a pensar é: Onde? Onde andam eles? Na dispersão das vestes e ideias adoptadas e nunca criadas ou sendo percepcionadas pelo insuflar dos “choques” do próprio destino. Creio que passar ao lado da poesia/filosofia portuguesa é o mesmo que passar ao lado da iniciação, ou antes, de parte da sua possibilidade que é a de ir entendendo e ir sabendo explicar, o que se vai passando. Toda a dinâmica do percurso iniciático dos nossos maiores poetas, Camões e Pessoa, foi feita a par e passo com a língua portuguesa e esta teve para eles a tripla missão de transmissão, de criação e de revelação. A louca pressa procura “fora” o que está dentro, no exterior o que dentro do nosso país vive, e coloca ídolos de vestes e ideias no lugar da alma portuguesa. Evidentemente que não se nasce neste país por acaso, até para alguns, não se vem ter a ele por acaso. Mas é necessário perceber esse “acaso”. Quando estamos no meio de um “acaso”, estamos finalmente nus, livres para criar a partir dele e aí começa a grande aventura da alma.
 
(Cynthia Guimarães Taveira)


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