A louca pressa que existe tanto na imediata adopção das
vestes como na imediata adopção das atitudes (e estas ainda mais preocupantes
porque provindas do mundo das ideias num imediatismo aflitivo, perto de um
teatro descarnado, como se os homens fossem substituídos por marionetas), leva,
no primeiro caso, ao discurso e à visão do mundo única e exclusivamente
materialista – foi talvez esse o erro marxista, a adopção das vestes - e se este
primeiro caso permite a desilusão e o ter de arrasar tudo para tudo iniciar
outra vez, já o segundo, permite a ilusão prolongada, que acaba, mais tarde ou
mais cedo, igualmente numa desilusão ou naquilo a que comummente se chama de
crise existencial e, também ela, à imagem e semelhança do que a provocou,
prolongada no tempo.
No mundo do espírito não há, nem adopção de vestes nem
adopção de ideias porque ele se comporta como um organismo vivo. O que há,
verdadeiramente é uma transmutação. Nada é adoptado, tudo é transformado. É nele
que a alma é susceptível de ser conhecida. E conhecida de que forma?
Imaginemo-la exactamente com os mesmos sentidos que o corpo tem só que
amplificados por força da luz do espírito.
Por aqui se vê que, tanto a adopção das vestes, como a
adopção de ideias, ambas recusam a aventura da alma, erro supremo nos nossos
dias, provocando diálogos de surdos. A aventura da alma far-se-á sempre nua da
adopção de vestes e ideias porque das duas uma, ou há um “choque tremendo”
provindo do destino que a faz ver isso, ou já nasce assim espontaneamente e
susceptível de ir criando as suas vestes e as suas ideias. É nesse sentido que
os criadores, os criativos, se “puxam” a si mesmos. Colocam a alma à frente dos
bois que são (numa pressa natural, esta sim, porque é conferida pela sua
própria natureza intimamente ligada tanto ao destino sem livre arbítrio como ao
destino com livre arbítrio consoante os casos e muitas das vezes convivendo
ambos lado a lado....) e colocando-a assim, desbravam o caminho, sem que se
dêem conta, evidentemente, ou são se dão conta a determinados momentos desse
caminho e, a esses momentos, breves, chamamos de revelação, não sendo isso nada
menos do que a revelação de uma determinada condição, também ela situada no
tempo e no espaço com a felicidade de se entender o ponto da situação. Quando
António Telmo aponta o seguinte facto: “a revelação do culto não pode ser
histórica. O oculto só se revela à alma” [António Quadros e António Telmo –
coordenação de Mafalda ferro, Pedro Martins e Rui Lopo – edições Labirinto das
Letras, 2015, pág. 201], aponta o dedo em várias feridas e na mesma página acaba magistralmente o texto
de evocação a António Quadros com a seguinte frase “Os António Sérgios
continuam aí.” aquilo em que se pode ficar a pensar é: Onde? Onde andam eles? Na
dispersão das vestes e ideias adoptadas e nunca criadas ou sendo percepcionadas
pelo insuflar dos “choques” do próprio destino. Creio que passar ao lado da
poesia/filosofia portuguesa é o mesmo que passar ao lado da iniciação, ou
antes, de parte da sua possibilidade que é a de ir entendendo e ir sabendo
explicar, o que se vai passando. Toda a dinâmica do percurso iniciático dos
nossos maiores poetas, Camões e Pessoa, foi feita a par e passo com a língua
portuguesa e esta teve para eles a tripla missão de transmissão, de criação e
de revelação. A louca pressa procura “fora” o que está dentro, no exterior o
que dentro do nosso país vive, e coloca ídolos de vestes e ideias no lugar da
alma portuguesa. Evidentemente que não se nasce neste país por acaso, até para
alguns, não se vem ter a ele por acaso. Mas é necessário perceber esse “acaso”.
Quando estamos no meio de um “acaso”, estamos finalmente nus, livres para criar
a partir dele e aí começa a grande aventura da alma.
(Cynthia Guimarães Taveira)
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