sábado, 18 de julho de 2020

Praceta de Cima e Praceta de Baixo



Durante a infância, adolescência e parte da idade adulta, morei na Praceta de Cima.  A avenida era comprida e tinha duas Pracetas, a de Cima e a de Baixo. A Praceta de Cima era conhecida como a Hollywood e era para onde convergiam os miúdos, não só da avenida e da praceta, mas até mesmo vindos de outras paragens, da Alameda, da Barão de Sabrosa e da Av. De Roma. Era afamada. E bem-afamada. Os putos eram engraçados e muito vivos. Sempre fui reservada e observava-os da varanda. Ir brincar para a rua era o seu dia a dia. Lembro-me de lhes dar banho de mangueira num dia de muito calor. Alguém foi buscar a mangueira e o meu irmão trouxe-a até ao terceiro andar onde vivíamos, colocou-a na torneira da cozinha, passou-me a mangueira para a mão e desceu enquanto eu a fazia descer pela varanda. Ainda hoje se lembram daquele banho fenomenal. Era também a praceta das alcunhas, todos tinham uma. O meu irmão era o “come tudo” porque um dia ia a sair do café da praceta a comer um gelado e viu que os “mais velhos” o estavam a chamar. Em poucos passos, devorou o gelado com medo de ficar sem ele. Foi aí que ganhou a alcunha de “come tudo”. Até eu não me livrei de ser a “super-mulher” por ter cabelos pretos e olhos azuis. Os putos saltavam à fogueira na noite de S. João para pânico dos pais que ficavam a tremer à janela, impotentes com a vivacidade dos miúdos: “Nós molhamo-nos antes de irmos. Oh mãe, deixa lá…” e lá iam. Chegou a haver o Jornal da Praceta feito pelo filho de um jornalista, que lá morava, tinha a alcunha de “30” e todos colaboravam, até com banda desenhada. Quando apareceu a moda dos surfistas, alguns aderiram logo a ela, em plena Lisboa, tinham pranchas, cabelo à tigela e oxigenavam o cabelo com um produto para a prancha para ficarem loiros. Mas tarde, depois de verem o filme “breakdance”, alguns começaram a fazer aquelas danças, também para desespero dos pais que pensavam que os seus filhos iriam partir ossos no contorcionismo.  Nasceram dois grupos, o dos surfistas e o dos breakdancers, andavam ao despique, mas, como tinham crescido em democracia, um dia resolveram fazer eleições para ver quem ganhava. Eram eleições feitas apenas pelo gosto da vitória. Foi assim que encheram as paredes dos prédios da praceta com fotocópias a dizer “Vota no Cayola”, “Vota no capa-negra” e por aí fora. Quem não achou muita piada foi um vizinho que se queixou na esquadra e foi ver os putos com nove, dez, onze anos e mais velhos, escoltados pela polícia a limparem paredes por entre o riso mal disfarçado dos guardas. Um dia resolveram roubar a abelha Maia a seguir a um deles ter entrado no café, ter retirado um gelado da arca do café, de o comer todo ainda dentro do café e de ter saído saciado com a prova de fogo, sem pagar. Os outros, riram-se e alguém teve a ideia de roubar as moedas da Abelha Maia onde as crianças se sentavam a ouvir “Lá num país cheio de cores”, enquanto a abelha, andava para baixo e para cima como se estivesse num rodeo. Pelo puro gozo, à frente de todos, conseguiram tirar a caixa e levar as moedas. Ainda hoje contam a história entre eles. Não tinha sido pelo dinheiro, que lhes deve ter rendido algumas guloseimas, mas pelo desafio. Quando o “peida de chumbo” se esqueceu da carrinha de fruta em frente à mercearia, não teve sorte nenhuma. À noite houve uma batalha campal de fruta na praceta por entre os dois lados do arvoredo que dividia a praceta em duas metades. Amanheceu, nesse dia, com o perfume da fruta na praceta e com os destroços de guerra. O padeiro também não tinha sorte nenhuma nalgumas noites longas de Verão, quando, esquecidos do tempo, os putos, às tantas da manhã, depois de uma madrugada de conversa, sentiam fome. O padeiro morava no meu prédio e distribuía pão indo numa a bicicleta pela comunidade. Guardava o pão quentinho na cave do nosso prédio. Os miúdos madrugadores, aproveitavam a primeira saída de bicicleta do homem, desciam à cave, e retiravam dez papos-secos que comiam alegremente com manteiga que alguém ia buscar a casa. Os putos eram giros e com várias alcunhas. “O bobo”, o “atacado”, o 30”, o “capa-negra”, o “sintomas” (que mais tarde foi médico), o “Jó Canibal”, o “Coelho” (que era o “Borrego” também), o Mabé, o Testarrosa, o Testas, a Maria Ganzada, o “Petroleiro”, o Cramalheira, o Rui Gordo, a La Femme Public, o Personas…  o universo dos putos era variado, criativo e bastante inocente. A Praceta de Cima era assim e todas estas histórias são verdadeiras. Até o facto de existir uma Praceta de Cima cheia de vida e uma Praceta de Baixo apagada e sombria.

Na Praceta de Baixo, não se passava nada. Era uma Praceta triste e sem árvores.  Sem vida.

Só mais tarde soube que havia lá umas moscas mortas que tentavam imitar a todo o custo os putos da Praceta de Cima. Também criaram alcunhas, mas foi para fugir à polícia. A “Pititi”, o “Jaguar”, o “Labutes”, o “Baixinho”, o “Alforreca”, o “Pargo” nunca pertenceram a Hollywood. Nem lhes chegavam aos calcanhares. Os putos tinham graça, estes não têm graça nenhuma.  


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