Do símbolo ao sinal
Cynthia Guimarães Taveira
Nesta queda da civilização assiste-se à passagem progressiva do espaço quase infinito da visão simbólica do real à finitude imediata do sinal. Da viagem pelos vários reflexos, sentidos, adquiridos e emitidos pelo símbolo, passamos progressivamente para o entendimento imediato de um sinal, reduzido a um único reflexo, a um único sentido, sem que este tenha sido produto da aquisição duma pluralidade de teias semânticas, mas sim da simplificação e da redução de vários sentidos, num único vector, frequentemente traduzido no caminho que vai da acção à reacção imediata.
Da mesma forma que o mito passou de “história verídica” a uma “falsa história”, assim as dimensões simbólicas, em que o ser se movia num espaço e tempos plásticos, passaram à instantaneidade de um momento fixado nos limites de um espaço; há uma espécie de substituição do cinema pela fotografia; do movimento e fluxo temporal nasceu o instantâneo fotográfico; a inversão é marca da nossa época; a vida engana o tempo, cristaliza-o numa série de secções, numa esquizofrenia que ultrapassa a doença mental naquilo que tem de excepção e marginal para se tornar a normalidade.
O medo do tempo e da morte resulta numa série de fragmentos fotográficos sem continuidade entre si, podendo ser analisados separadamente; o relativismo superou-se na impossibilidade de não mais ser necessária a relação entre elementos iguais dentro de vários contextos. O contexto substituiu o elemento, este é apenas um produto daquele, já nada é per si. O contexto é absorvido pelo elemento, e o elemento é um produto deste. O elemento é a contemporaneidade absoluta. O relativismo, em ultima instância, é o absolutismo do eu e dá uma relevância extraordinária a um dos símbolos arcaicos do hermetismo, o Uroboro, no qual os extremos, efectivamente, se tocam. Esta é a marca das ideologias: o individuo nada é fora de uma ideologia, porque de uma forma macabra a ideologia se vai alimentar do individuo e só assim se mantém viva, e o indivíduo, por sua vez, só tem existência, valor, utilidade, se nascido dentro de uma ideologia. E tudo isto se passa instantaneamente. Poder-se-ia dizer que a lua está morta, pois já não há um reflexo, por pálido que seja, do próprio indivíduo. A ideologia é o indivíduo, como a cauda pertence à boca do Uroboro. O reflexo, a reflexão não mais é necessária. O reflexo dos espelho, que pode retorcer, distorcer, inverter fica na esfera do ausente. Narciso não necessita mais de um espelho pois afinal só conhece uma realidade: a sua. Ao iniciar viagem para dentro do espelho, de alguma forma, retirou-lhe a utilidade. Não é necessária reflexão, pois esta passou ao estatuto do imediatismo.
Deu-se a passagem da espada ao tiro. A espada com os seus artífices, os seus rituais, as suas memórias, os seus mitos, as suas sugestões, os gestos dançados precisos a que obrigava, é substituída pelo dígito no gatilho de uma pistola desenraizada, sem artífices sábios que a tivessem elaborado, sem ritos nem mitos, memórias, sugestões ou gestos de sabedoria adquirida por gerações. Instantaneamente dá-se um tiro. A vida tem o valor semelhante ao da morte. Um valor nulo. Só representável nessa instantaneidade. O tempo é vencido, aniquilado e o espaço superado. A memória torna-se desnecessária perante um instantâneo espacio-temporal. Há hoje uma forma de Zen sem a perfeição do gesto. A história e o tempo afundam-se no oceano do momento. Os gestos imperfeitos repetem-se num esgotamento dos minutos, a auto-flagelação desta civilização é tão sincera como um mestre budista ao erguer uma flor no instante de um gesto perfeito. Daí o engano, o perigo e a miséria humana.
Provavelmente a Terceira Vaga, descrita por Alvin Tofller como sendo a da tecnologia e que acabou enraizando o homem em fios e fusíveis, em electricidades dogmáticas, é apenas a causa natural de uma Vaga, ou de uma Era em que a “des-simbolização” crescente tenha sido elaborada pela administração e imposição de Ideologias nascidas, ainda de que uma forma inconsciente, na Revolução Francesa. O aparecimento da Ideologia quebra a visão do tempo cíclico, pois com as Ideologias quebra-se o ciclo das gerações ininterruptas: velho, homem, jovem, criança. Resta apenas uma Ideia, traduzida num único líder, ou num único apelo. O conhecimento da história trouxe a mais valia do conhecimento de que as ideologias (sempre traduzidas em regimes políticos), são substituíveis, e que estas utilizam parte do símbolo, fragmentam-no num número reduzido de significados, pois só assim consegue sobreviver. O nascimento das ideologias coincide com o progressivo desaparecimento de uma Era simbólica, que só pode existir com a noção de um tempo cíclico ou espiralado (como é o caso das Religiões dos Livros e a sua noção de Telos, o fim do Tempo). Porque a ideologia se fixa num único ponto. Deus morre para dar lugar a uma ideologia. Todas as ideologias contêm em si o germe da morte, uma vez que a perfeição é, afinal, alcançável, o paraíso está perto, e a estagnação num limbo de felicidade é o seu verdadeiro propósito.
Tudo se passa no mesmo lugar e num único tempo: uma tentativa de usurpação da ideia de imortalidade, que não se restringe a uma qualquer cidade proibida fechada nos muros, mas que se abre a todas as cidades. A visão da imortalidade pode ser assim a visão da morte “em vida”, uma vez que toda a criatividade desemboca, no seu mais profundo íntimo, num beco sem saída, acaba mal vista e mal vinda num lugar que se entende como sendo “já perfeito”. Esse lugar são todos os lugares (assim o determina a globalização -- nova ideologia em ascensão). A visão poética do mundo, a mesma onde se move o símbolo, só pode existir com a noção de distância temporal espacial. O tempo estando mais curto pelo estreitamento das distâncias (qualquer pessoa em 24 horas pode dar a volta ao mundo, ou em menos de um minuto pode telefonar para qualquer parte) resultou numa “fuga para a frente”, na tentativa da sua disseminação. O tempo é fonte de terror (como tão bem nos chamou a atenção Mircea Eliade) e, no entanto, precioso. Se o símbolo do centro teve a importância que teve na Idade Média, como Jerusalém a alcançar após uma série de peregrinações e provações, ou se esse centro estava em Deus, também difícil de alcançar, ou se esse Centro estava no equilíbrio procurado nas filosofias orientais, hoje existe uma poli-morfologia de centros. Não há mais a percepção de um só centro, mas de vários e, em simultâneo, as distâncias e o tempo encurtam cada vez mais. O resultado, por mais paradoxal que possa parecer, é a ausência de centro. Tudo se move num único ponto (um ponto não é o Centro, o ponto marca apenas um lugar, o Centro representa todas as potências latentes e concentradas), tudo existe dentro de uma única realidade, e essa realidade é o sinal. Instantâneo, próximo e facilmente acessível, compreensível, imediato e vazio. O próprio relativismo só faz sentido dentro de um único ponto. Para lá dele não há relativismo possível, nem visão poética ou simbólica, porque para além do sinal não há nada. E o relativismo existente dentro desse universo fechado e paralisado é o próprio vazio. Como vazia acaba por ser uma sala multicultural, fundindo as culturas a pouco e pouco, acabando com as diferenças, as distâncias, caminhando rapidamente para esse zénite de autocombustão e desaparecimento. Vazio que invade todas as esferas do ser e que se traduz pela falta de encantamento, de deslumbramento, uma visão da velhice mais perto do cadáver do que da criança. Mas será esta a realidade?
Enquanto não formos compostos por uma aglutinação de electrónica e bactérias vivas, como já vem sendo o sonho dos novos líderes das tecnologias (desconhecendo, por certo, o símbolo do Golem), ainda poderemos pensar e sentir como seres humanos e não como seres híbridos que já vêm vindo, misturas explosivas de impulsos electrónicos e corações naturais que pulsam. Aliás, o privilégio desta época é que poderemos, ainda, ser humanos, porque o que aí virá serão robots, uma outra existência longe de nós. Que nos resta senão essa expectação que é a de sermos humanos, independentemente dos alinhamentos deveras suspeitos dos telejornais? Para sermos humanos necessitamos do símbolo, tanto como da água que compõe o corpo. A resposta não está nas teorias complicadas dos córtex cerebrais, ou das psicologias aplicadas a todas as frustrações das vidas. Está simplesmente em recuperar toda a dimensão simbólica latente dentro das culturas e dos seres. Sem essa dimensão simbólica somos o instrumento preferido de uma ideologia qualquer, que escolhe apenas uma fatia da enorme circunferência do simbólico para melhor manipular as massas. Porque é assim.
O símbolo, na sua essência, escapa à Ideologia, que normalmente só aproveita parte dele; o seu raio de acção é semelhante ao cálamo da mística sufi: a pena suprema criada por Deus para escrever o destino, o seu comprimento é o mesmo que vai do céu à terra e a sua largura estende-se de Oriente a Ocidente. Na sua variedade há inúmeros símbolos que podem, de algum modo, tentar a definição de símbolo: a moeda partida em duas metades que podem voltar a ser unidas; a saudade, símbolo de símbolo também, porque consciente da distância que vai do dizível ao indizível, do visível ao invisível, do compreensível ao incompreensível na sua totalidade, da periferia ao centro.
Qualquer dicionário de símbolos possui várias definições de símbolos; os interessados poderão consultar e tentar decifrar esse mistério que é o símbolo, porque ainda há mistérios, por mais que haja uma tentativa científica de nos obrigar a crer que tudo é cognoscível e, mais tarde ou mais cedo, compreendido, mais uma vez, na tentativa de aniquilação das distâncias.
A dimensão do mistério é uma dimensão simbólica e humana. No plano do simples sinal, um dicionário de símbolos é uma fuga ao real, pois não existe somente numa realidade mas em várias. A inversão dos símbolos é, por certo, uma marca da actualidade, e chegou a tal ponto que o símbolo, praticamente, é considerado uma fuga ao real sinalético, o único possível, em vez de ser uma viagem ou percurso para a realidade na sua multiplicidade, como o é para alguém com o pensamento simbólico intacto (se é que isso ainda é possível), e não com a actual assimbolia psíquica, que embora possa ser a incapacidade de representação e compreensão de sinais, tem como consequência a impossibilidade de simbolizar e de usar a imaginação. Para a sinalética já é necessária imaginação, para a simbologia é necessária muita imaginação, e a assimbolia é cultivada como um vírus nas estufas das ideologias.
Quando aqueles que, fascinados, mergulham a cabeça num dicionário de símbolos em busca de uma resposta ao apelo que vem do fundo da natureza humana, rapidamente constatam que há símbolos que parecem terem sido deturpados ou mesmo invertidos, virados de pernas para o ar, num mundo de ponta-cabeça, onde no seu triunfo deixa de ser a sátira para se tornar no mais sério dos problemas: onde fica a sátira hoje? Onde é que ainda é permitido um trocadilho absurdo como o das festas saturninas de riso mal contido, porque subitamente quem é escravo torna-se senhor, quem é criança bate nos pais, quem é homem passa a mulher, o animal mais fraco conduz o carro com o animal mais forte? Onde fica o mecanismo de compensação de um Carnaval? Já não há possibilidade de compensação, porque já não há espaço para margens, nem marginais. A excepção é a regra, e a regra é excepção, fora disso nada existe.
O mundo dos símbolos é um mundo de perdição, não abonando uma época na qual a obsessão do encontro consigo próprio parece reinar. Por um lado fica-se perdido, por outro, alguma coisa começa a fazer sentido, uma dupla espiral, no ADN do imaginário, ascendente e descendente. Quem descobre a dimensão simbólica descobre que está perdido e que aí ficará por muito e muito tempo. O que se procura hoje é o contrário, a ideologia reinante é a do esclarecimento, os homens querem-se esclarecidos como no século das luzes, encharcados em enciclopédias multimédia; ao invés, o símbolo imita Deus na sua aparente distância e incompreensão. Um sinal não estimula dúvidas, um símbolo suspende a verdade na sua respiração, sustém-na sem a revelar por completo. O símbolo é o maior susto moderno que podemos ter, porque joga com as ilusões que procuramos, engana-nos e esclarece-nos, e o paradoxo é a cascata natural onde mergulha.
É necessário o regresso ao espanto: ao espanto perante a inversão das coisas. Ao espanto menos bom de quem vê a dimensão humana escorrer pelos dedos, de quem questiona o significado que vão dando àquilo que dantes eram símbolos ricos e motores de pesquisa de vida, para passar a simples sinais de trânsito, dizendo-nos como reagir, e para onde ir. E ao espanto melhor de quem descortinou no meio do labirinto ( símbolo perdido, aliás) a força da espada e o seu significado profundo da separação das águas. Porque é que certos símbolos se transformaram em sinais? Porque é que se desvirtua, escava e se esventra a forma do seu conteúdo? O preço da simplificação é um crescente complexo de culpa por nada sabermos sobre o sentido e o significado. Uma parcela que seja. O esclarecimento resiste ao desvendamento. O primeiro não requer tempo, nem paciência, nem amor; o segundo é feito seguindo o movimento serpentino do engano e do encontro, numa aproximação enamorada da verdade. Requer relações, complexificações, dúvidas, erros, atalhos que se tornam longos caminhos e longos caminhos que revelam ser apenas atalhos. Requer que andemos de braço dado com a nossa própria vida. E isso, lamento, mas é extremamente humano e pouco robótico. Antes de atingirmos o estado de humanos fundidos com circuitos eléctricos já andamos a treinar há muito tempo a desumanização. Quando chegar a hora dos clones multifunções estaremos já suficientemente preparados para ser encaixotados para outro planeta…
Para a abertura de uma Era, de um estado de espírito, de um novo ser, é necessário que algo se rasgue, que algo se abra ou se quebre, é essa a lei da natureza, e isso, no início, exige uma espada, por mais que os pacifistas sinaléticos se exaltem por verem nela apenas um sinal de guerra e morte. Estranhamente, a espada pode ser um símbolo de vida e é necessária. Sem ela não há separação, por exemplo, da luz e das luzes. Ligada ao sacrifício (outro símbolo a reter), é ela que pode devolver o seu a seu dono, o conteúdo à sua forma, o sentido ao seu significado, e que separa o mal-entendido do bem entendido. Ela é símbolo da destruição da ignorância onde se balouçam os sinais que nos cercam. Todo o simbolismo da espada está ligado à luminosidade, ao “golpe de um raio”, à lâmina que cintila, e, se for de dois gumes, melhor, pois contém a polarização, o masculino e o feminino dentro de si, e será mais perfeita que nunca, a separar a ilusão da alusão, a dança mágica efectuada pelos símbolos numa evocação do transcendente. Não é em vão que o arcanjo do Juizo Final empunha uma espada numa mão e uma balança na outra.
Para olhar o mundo, a vida, a existência e, provavelmente, a essência de outra forma, sem dúvida, hoje, talvez mais do que nunca, é necessário acercarmo-nos do mundo com uma espada na mão. E isto não se passa ao nível mental furtivo e obsoleto dos jogos de cartas de Tarot, das conchas, búzios e cristais, que nos dão uma sensação de conforto e paz interior e, sobretudo, lucro a meia dúzia de profetas de sopas aquarianas mal confeccionadas. Isto passa-se ao nível da iniciação (embora esta seja talvez a palavra mais complexa do mundo), quase sem paz interior, única, pessoal e intransmissível, sem ordens ou seitas.
O tempo dos mestres praticamente acabou. Resta o homem e seus símbolos pois, como escreveu Fernando Pessoa, “quem tenha em si o poder de sentir pronta e instintivamente a vida dos símbolos não precisa de iniciação ritual”. Porque é da vida que se trata. A vida de todos os dias, desde a noite assaltada por sonhos impiedosos que nos espantam, deslumbram ou mortificam, até ao erguer do sol, ao sair para o mundo e darmo-nos conta que os símbolos estão lá, sempre estiveram, que não são apenas sinais de trânsito, ou sinais transcendentes de mais para o nosso simples percurso, do nascimento à morte, mas que são a viagem necessária ao interior de nós, da nossa civilização, e talvez, do nosso futuro, e se assim for, só poderemos recear o passado, como o fazem os chineses, e não o tempo que virá, uma vez que para se conhecer o passado é necessário o exercício da imaginação. Porque a iniciação não pode ser mais, hoje, senão o conseguirmos mantermo-nos acordados o mais possível, o maior tempo possível, no meio do caos e do cais desta partida constante que é a de estarmos vivos, e sempre a meio da viagem. Enquanto formos humanos, claro.
Cynthia Guimarães Taveira (23/1/2012)
Sem comentários:
Enviar um comentário