quarta-feira, 14 de agosto de 2019
No segredo dos deuses
A minha mãe sempre me disse que os burgueses gostavam de ter um artista de estimação.
Dantes, aos burgueses, por via do seu desejo de ascensão social à aristocracia, isso dava-lhes para o mecenato.
Com a queda da aristocracia, a esses mesmos burgueses de hoje, dá-lhes para nem sequer saberem reconhecer o que é um artista. A sua aristocracia são as "quotas de mercado".
O Estado, por seu lado, também quer ser burguês e, por isso, também tem os artistas que pensam ser artistas de estimação e que o são conforme as quotas e os mercados. Ao dar relevância a um artista, não se interessa por aquilo que é a arte, a cultura, a história e muito menos pela essência do que caracteriza um artista. Ao dar relevância a um artista dá relevância, ainda que o negue, à projecção do próprio Estado no mercado, nas quotas de mercado, nos "valores" de mercado. Perante isto o que existe é uma desintegração da própria sociedade. Com a queda da noção de aristocracia também os artistas, que o são de facto, caem em desgraça e sobrevivem apenas através de um balão de oxigénio que é a origem divina da sua arte que vão fazendo em segredo dos homens, que já nada sabem e no segredo dos deuses, os únicos que sabem o segredo.
domingo, 11 de agosto de 2019
Jóia de luz (título retirado de uma canção de Paulo Gonzo)
Conheci uma pessoa espantosa. Para ela o mundo era concreto e definido. Depois, quando lhe apetecia, brincava e dizia que não era. E tudo passava a ser como um sonho, cheio de símbolos e sentidos. Depois, ria-se, dizia que era a brincar e voltava logo para o mundo concreto e definido. E depois, depois, a seguir, nem o mundo concreto e definido, nem o sonho, nem os sentidos vários das coisas. Dava de repente um salto no ar. Erguia as asas e voava tão alto e tão concretamente que era impossível dizer que o mundo era concreto e definido e que os sonhos, os símbolos e os sentidos vários, fossem a única verdade. Ia lá acima e trazia a jóia. Descia, mostrava-ma e dizia: "Fui lá acima buscá-la para ti". E revelava-me assim toda a minha vida concreta e definida e todos os sonhos desse momento, numa jóia única e precisa, todas as suas faces estavam em harmonia e não havia dúvidas sombrias que toldassem a luminosidade dessa jóia. Era absolutamente incrível esse vôo e ainda mais incrível eram essas jóias com que fui erguendo um palácio, um castelo, uma casa, uma cabana... Ao longo dos anos. Pedra a pedra. Jóia a jóia. E, em volta delas cresceu de livre vontade o mais espantoso jardim, com trepadeiras cheias de personalidade e flores que saltavam para os pés das pessoas só para chamarem a atenção. Conheci uma pessoa espantosa capaz de me levar pelo caminho construído por mim, passo a passo, quase por instinto. Quem disse que os sonhos não têm também eles véus? Não é só o mundo concreto e definido que os tem. Essa pessoa rompia os véus todos, os de baixo e os de cima. Quando voltava, com o presente, eu, por dias, ficava suspensa a reparar na jóia. A observá-la, a confirmar a sua pureza, o seu calibre, o seu peso, o seu corte. Mas era sempre mais do que qualquer jóia que tivesse visto no mundo concreto e definido ou nos sonhos. Ficava entalhada em mim para sempre depois de muito a contemplar. E não havia nada, nem a força do mar, nem o vento, nem os maus instintos que a pudesse deslocar nem sequer um milímetro. À minha volta o jardim cresceu para todas as direcções como se quisesse explorar o espaço numa dança. Danço nele como uma criança, penso nele como uma adulta e vou para além dele como uma fada. Depois, vôo até lá acima e retiro as gotas-jóias que já estão polidas e brilhantes e dou-as a quem as vê.
sábado, 10 de agosto de 2019
Aviso à navegação
(Fotografia minha de uma parte lateral interna de uma estante da sala e que apelidei de "O Grito" por me fazer lembrar a célebre pintura de Munch)
Aviso à navegação: qualquer partilha dos textos deste blogue nas "redes sociais" é-me completamente alheia. Hoje, uma pessoa do meu círculo de amigos partilhou um texto meu de manhã, "A Presença", pelas 10 horas, enquanto dormia profundamente. Tive a sorte de dormir até às 11.30 h. Um sono dos justos. Só soube algum tempo mais tarde dessa partilha bem como de um comentário à mesma que me pareceu desnorteado obrigando-me a escrever outro texto, "Verticalidade" de seu nome, para me explicar melhor. Foram esses desnortes, entre outras coisas, que me levaram a sair das redes sociais. No meu círculo de amigos não há mandões nem mandados, daí que a partilha de hoje me fosse completamente alheia. Estou absolutamente ciente de que este blogue praticamente não é lido o que, se por um lado é frustrante por outro, faz bem a alma porque assim se evitam desnortes e des-leituras. O paradoxo é algo com que se pode viver confortavelmente. E até dormir bem, pelos vistos.
Verticalidade
Já me perguntaram porque é que não pinto apenas paisagens, ou flores. Respondi que as pessoas são essenciais. No extremo oriente onde as paisagens dominam as pinturas antigas, as pessoas aparecem em ponto pequeno como que a lembrar a nossa insignificância face à maravilha que nos rodeia. No Islamismo, a pessoa é anulada. Não interessa. É sacrilégio com as bases naquela história de que não se deve adorar imagens. Se formos lá atrás, foram os ídolos de barro, a três dimensões que foram destruídos. Um ídolo de barro é uma escultura. A pintura pode sugerir a tridimensionalidade mas ainda assim, não é tridimensional.
Pinto pessoas porque não sou nem extremo oriental, nem guardo em mim qualquer tipo de aversão à representação da forma humana. Pinto-as como as personagens principais a par com as formas da natureza. Fundo o ser humano e a natureza. Torno-os unos. Sou mais do que oriental ou ocidental. Sou primordial no sentido em que no paraíso, homem e natureza eram um. Só assim o céu se abre. É muito difícil para quem anda constantemente no plano horizontal entender a verticalidade e a verticalização. Numa época em que "ser autor", "ter nome", "pedir para ser visto", ambicionar a ser "notado" é o mais que tudo, mais até do que aquilo que se faz, ir contra esse movimento é fazer um braço de ferro invisível. Na base da criação está um impulso inexplicável. Dizem que os dons são dádivas e que devemos desenvolvê-los como as moedas. Numa época de cegos que gostam tanto de grafittis gigantes e amedrontadores como de uma pintura subtil de vinte centímetros por dez centímetros com a imagem de Veneza do século XVIII ao pôr do sol, acho piada ter de responder a perguntas destas que têm um fundo mitico-religioso (e naturalmente ideológico por detrás...), como se tivesse de provar a toda a hora a minha filiação partidária e religiosa. Sinto quase pena dessas pessoas por não verem nada nem perceberem nada do que faço. Qualquer dom só é desenvolvido em profunda e perfeita liberdade. Pinto na vertical, não dando muita importância nem à assinatura, nem ao meu nome. A posição em que pinto é deitada, escarrapachada na máxima horizontalmente para que a verticalidade surja. E surge em muitos aspectos. Um deles é a coluna vertebral muito necessária hoje no meio de cabeças confusas e corações atormentados. Pinto a amplitude humana fundida com a natureza. Não temo o ser humano assim. Ele é, o centro da natureza que reúne em si todas as capacidades que ela contém. Não é alvo de adoração mas contém em si as possibilidades de libertação. Está salvo e apto para viagem em direcção à libertação quando se funde, conhece, se conhece como natureza. É por isso que o paraíso terrestre é um jardim que espelha o celeste. Alcançar só isso já é muito difícil. A verdadeira ancestralidade é esta, não está nem no apagamento total do ser humano, não está no apagamento parcial do ser humano, está no ser humano como próprio rito da natureza e, como sabemos, o rito é superior à própria natureza e abarca-a, visualmente, confunde-se com ela... Mas não deixa de ser rito.
sexta-feira, 9 de agosto de 2019
A Presença
Há muitos anos, andava eu talvez no décimo segundo ano, lembro-me de passar num jardim perto de casa que não tinha grande graça mas que, por aquela altura, um arbusto muito grande, com cerca de três metros, arredondado na sua forma geral, tinha florido. Tinha tantas flores brancas que o tornavam muito mais branco do que verde. Estava a aproximar-me dele e a achá-lo muito bonito quando, sem mais nem menos, a minha visão se alterou, e aquilo que vi foi a visão interna dele. Era feito de energia, de uma energia incrível, que pulsava e cintilava. Nunca mais me esqueci dessa re-velação acompanhada por uma extrema alegria que parecia fazer parte de toda aquela vida que era pura energia. Mas tarde, percebi que certas pinturas, obras de arte, pintadas no "antigamente" pareciam exalar calor, um calor inexplicável. Esse ritmo vegetal, que é um autêntico ritmo que produz ou é produzido pelo movimento, encontra-se no pulso quando desenhamos e deixamos a mão voar, não de maneira totalmente aleatória, mas com uma atenção a um equilíbrio que se manifesta imediatamente, com algo de repentista nele. Há como que a compreensão de que o ritmo vegetal tem origem nessa energia que é a própria vida a palpitar. Mais tarde, trabalhei com flores e fizeram-me entender que nunca deveríamos largar esse movimento que as próprias flores nos transmitiam. Admirei e admiro obras de arte autênticas feitas com flores e que respeitam esse movimento que vem de dentro delas. Mas, ainda a aprender, fiz a pergunta: mas o que se passa com as minhas pinturas que parecem sempre fotografias que apanharam um ritual a meio? Porque é que não faço pessoas a correr, ou levanto os vestidos com uma rabanada de vento?
A resposta tinha a ver com essa energia interna, muito oriental. A energia da maior parte das pinturas parecia vir de dentro e não propriamente do movimento físico das personagens ou das vestes. Apenas a vegetação cumpria essas curvas e pseudo-assimetrias tão características do reino vegetal. O verdadeiro movimento era interno. Não era um vendaval nem uma correria. Quando expunha, coisa que agora não faço porque não me apetecer andar a pedinchar, "inscrever-me" e, muito menos, a "esperar" por uma resposta que nunca vem, quando expunha, dizia, os sítios onde vendia mais era em consultadorias e escritórios de advogados e aí, vendia praticamente tudo. Se expunha num restaurante as vendas eram nulas rondando uma obra por cada exposição, quando rondava... Perguntei-me sobre isso e percebi o que se passava. Era o tempo e a energia. Parecia algo quase "Einsteiniano". O tempo tinha a ver com a habituação. As pessoas que trabalhavam nesses locais habituavam-se aos quadros e já não queriam ficar sem eles. A energia tinha a ver com a companhia. Os quadros estavam internamente vivos. A vida captada a meio de um ritual estático qualquer. Habituadas à companhia, as pessoas já não se queriam afastar deles. Os restaurantes eram locais de passagem rápidos. As energias eram repostas pela comida. As pessoas sentiam-se acompanhadas por outras pessoas.
A contemplação é um alimento e uma companhia. E, quando acontece, essa energia, que é o próprio movimento da vida, faz-nos sentir a Presença. É assim que os ícones são Presenças, autênticas, separadas de nós, das nossas opiniões, da nossa intelectualidade ou da nossa falta de atenção. São Presenças para além de nós e connosco.
E muitas pinturas fazem-nos sentir isso.
Nunca me esqueci do que vi nesse arbusto grande e branco: a interioridade da matéria. O contra-peso da visão parada desse arbusto que, embora bonito, guardava em si algo ainda mais belo. O mistério da própria vida.
terça-feira, 6 de agosto de 2019
O mundo:
O mundo:
Esquerda e direita
Progressistas e conservadores
Conservadores e crentes
Descrentes e robóticos
Pró-Israelitas e conservadores
Conservadores e anti-semitas
Racistas e multiculturalistas
Moderados e progressistas
Anti-islâmicos e cristãos radicais
Pro-ideologia das identidades e conservadores
Conservadores moderados e liberais
Maçons e católicos
Comunistas e socialistas
Fascistas e democratas
Republicanos e democratas
Feministas e femininas
Católicas conservadoras e rameiras
Pró-colonizaçao de Marte e defensores do ambiente
Negacionistas das alterações climáticas e cientistas
Vegetarianos e carnívoros
Ricos e pobres
Remediados e amnésicos
Fundamentalistas islâmicos e polícias
Serviços secretos e servidores
Hackers e juízes
Demiurgos e comentadores
Centro esquerda e centro direita
Ideólogos e contra-ideólogos
Pagãos e cristãos
Pagãos-cristãos e conservadores católicos
Catolicismo e seitas
Evangelistas e bruxos
Orientalistas e Ocidentalistas
Celticistas e africanos
Perenalistas sem Julius Évola e Perenalistas com Julius Évola
Deus e o Diabo
Anjos e fadas
Grandes empresas e grandes causas
Saudosistas e actores de saudosistas
Sebastianistas e enjoados de Sebastião
Pessoa e Teixeira de Pascoaes
Silenciosos e extrovertidos...
O mundo: agora é só ir colocando a cruz em cada par e achar a contradição imediata, mais tarde ou mais cedo, na grande escada, mas façam o favor de se definir, embora seja tarefa impossível, ou tapam os pés com o lençol ou tapam os ombros.
Poema amarelo
São rendas
De nada vale dizê-los
Se por tê-los
Pelo dia,
de novo, são vividos
Estávamos todos vestidos de amarelo
E foi contada a História dos primórdios do Egipto
E da Península Ibérica
Mas antes de tudo isso, estávamos nós
Vestidos de amarelo
Unidos por sermos imunes
À picada do escorpião
Tão próximos e tão longínquos
Tão certos
Pelo dia de novo tudo repetido
E ouvi alguém dizer:
Preferem a ausência da natureza
A ausência da Arte
E sobretudo, preferem a ausência
Do que não entendem:
O improviso.
Esta semente aqui guardada
É única no mundo
Ao ficar perdida num vão de escada
Os degraus que se seguem
São de madeira cansada e gasta
Quebrada em breve
Ou mais acima ou mais abaixo
A semente cai, e germina
Mesmo que aparentemente perdida
Da mesma maneira que há um fosso
Entre ricos aldrabões e pobres verdadeiros
Há um fosso entre a ignorância
E a sabedoria nessa semente
Vistos de longe,
São como cães
Procurando a cauda
Repetições sem fim...
Mas no sonho
Sem tempo
E verdadeiro
A serenidade
Era a frustração da ignorância
E a Virgem a única
Que sabia...
Porque mantenho o silêncio
Se me pedem que fale?
E porque falo se me pedem o silêncio?
Por causa desse amarelo vivo
Amarelo-ouro
Dessa Heliópolis
Semente sempre eterna
Aviso
Que da injustiça tudo sabe.
Aviso
Que devolve a justiça
Com a forma de uma serenidade
Impossível de capturar...
Aviso
Que Portugal parece subir
Mas desce sempre
Que perde uma semente
Num vão de escada
E que os degraus
Gastos e cansados
Que se seguem
Cedem à ausência de peso
Por ser tudo demasiaso leve
Sem natureza
Sem arte
Sem verdade
Sem improviso
Posso avisar
A partir desse sonho
Amarelo ouro
Imune ao escorpião
Quando saio de um lugar
Por ter sido perdida num vão de escada
Esse lugar cede
Apodrece
E cai
Como uma sombra que não indica a luz...
Já vi arrependimento
Mais do que em Madalena
Por o dela serem lágrimas de vida...
Mas o vosso
É daquele que suplica baixinho
Para que a semente germine
Só por dizerem que há uma ausência...
Se o disserem por sentirem
Se essa ausência for notada
Se não existir natureza, nem arte,
Nem improviso, nem verdade
Se só não percebem nada
A sombra, treva sem luz
Engolir-vos-á
Se sentirem uma ausência
Uma espécie de germe da Saudade
Que é coisa demasiado grande para vós
Então regressam como andorinhas
Se for ouvida
Essa súplica murmurada...
Se for rendilhada...
Se for verdade
Lá onde os solitários se encontram
Nessa Atlântida tardia
Amarelo-ouro
Fundo do mar azul
O orvalho celeste
Desce sobre vós
Entre vós e essa semente
Perdida num vão de escada
E vos unirá
Reunirá
De novo
Num rendilhado
Firme
Pesado
E transparente
Por onde o sol brilha.
Mas só de quem
Esse murmúrio
For ouvido.
Subscrever:
Mensagens (Atom)