sábado, 10 de agosto de 2019
Verticalidade
Já me perguntaram porque é que não pinto apenas paisagens, ou flores. Respondi que as pessoas são essenciais. No extremo oriente onde as paisagens dominam as pinturas antigas, as pessoas aparecem em ponto pequeno como que a lembrar a nossa insignificância face à maravilha que nos rodeia. No Islamismo, a pessoa é anulada. Não interessa. É sacrilégio com as bases naquela história de que não se deve adorar imagens. Se formos lá atrás, foram os ídolos de barro, a três dimensões que foram destruídos. Um ídolo de barro é uma escultura. A pintura pode sugerir a tridimensionalidade mas ainda assim, não é tridimensional.
Pinto pessoas porque não sou nem extremo oriental, nem guardo em mim qualquer tipo de aversão à representação da forma humana. Pinto-as como as personagens principais a par com as formas da natureza. Fundo o ser humano e a natureza. Torno-os unos. Sou mais do que oriental ou ocidental. Sou primordial no sentido em que no paraíso, homem e natureza eram um. Só assim o céu se abre. É muito difícil para quem anda constantemente no plano horizontal entender a verticalidade e a verticalização. Numa época em que "ser autor", "ter nome", "pedir para ser visto", ambicionar a ser "notado" é o mais que tudo, mais até do que aquilo que se faz, ir contra esse movimento é fazer um braço de ferro invisível. Na base da criação está um impulso inexplicável. Dizem que os dons são dádivas e que devemos desenvolvê-los como as moedas. Numa época de cegos que gostam tanto de grafittis gigantes e amedrontadores como de uma pintura subtil de vinte centímetros por dez centímetros com a imagem de Veneza do século XVIII ao pôr do sol, acho piada ter de responder a perguntas destas que têm um fundo mitico-religioso (e naturalmente ideológico por detrás...), como se tivesse de provar a toda a hora a minha filiação partidária e religiosa. Sinto quase pena dessas pessoas por não verem nada nem perceberem nada do que faço. Qualquer dom só é desenvolvido em profunda e perfeita liberdade. Pinto na vertical, não dando muita importância nem à assinatura, nem ao meu nome. A posição em que pinto é deitada, escarrapachada na máxima horizontalmente para que a verticalidade surja. E surge em muitos aspectos. Um deles é a coluna vertebral muito necessária hoje no meio de cabeças confusas e corações atormentados. Pinto a amplitude humana fundida com a natureza. Não temo o ser humano assim. Ele é, o centro da natureza que reúne em si todas as capacidades que ela contém. Não é alvo de adoração mas contém em si as possibilidades de libertação. Está salvo e apto para viagem em direcção à libertação quando se funde, conhece, se conhece como natureza. É por isso que o paraíso terrestre é um jardim que espelha o celeste. Alcançar só isso já é muito difícil. A verdadeira ancestralidade é esta, não está nem no apagamento total do ser humano, não está no apagamento parcial do ser humano, está no ser humano como próprio rito da natureza e, como sabemos, o rito é superior à própria natureza e abarca-a, visualmente, confunde-se com ela... Mas não deixa de ser rito.
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