sexta-feira, 9 de agosto de 2019

A Presença


Há muitos anos, andava eu talvez no décimo segundo ano, lembro-me de passar num jardim perto de casa que não tinha grande graça mas que, por aquela altura, um arbusto muito grande, com cerca de três metros, arredondado na sua forma geral, tinha florido. Tinha tantas flores brancas que o tornavam muito mais branco do que verde. Estava a aproximar-me dele e a achá-lo muito bonito quando, sem mais nem menos, a minha visão se alterou, e aquilo que vi foi a visão interna dele. Era feito de energia, de uma energia incrível, que pulsava e cintilava. Nunca mais me esqueci dessa re-velação acompanhada por uma extrema alegria que parecia fazer parte de toda aquela vida que era pura energia. Mas tarde, percebi que certas pinturas, obras de arte, pintadas no "antigamente" pareciam exalar calor, um calor inexplicável. Esse ritmo vegetal, que é  um autêntico ritmo que produz ou é produzido pelo movimento, encontra-se no pulso quando desenhamos e deixamos a mão voar, não de maneira totalmente aleatória, mas com uma atenção a um equilíbrio que se manifesta imediatamente, com algo de repentista nele.  Há como que a compreensão de que o ritmo vegetal tem origem nessa energia que é a própria vida a palpitar. Mais tarde, trabalhei com flores e fizeram-me entender que nunca deveríamos largar esse movimento que as próprias flores nos transmitiam. Admirei e admiro obras de arte autênticas feitas com flores e que respeitam esse movimento que vem de dentro delas. Mas, ainda a aprender, fiz a pergunta: mas o que se passa com as minhas pinturas que parecem sempre fotografias que apanharam um ritual a meio? Porque é que não faço pessoas a correr, ou levanto os vestidos com uma rabanada de vento?
A resposta tinha a ver com essa energia interna, muito oriental. A energia da maior parte das pinturas parecia vir de dentro e não propriamente do movimento físico das personagens ou das vestes. Apenas a vegetação cumpria essas curvas e pseudo-assimetrias tão características do reino vegetal. O verdadeiro movimento era interno. Não era um vendaval nem uma correria. Quando expunha, coisa que agora não faço porque não me apetecer andar a pedinchar, "inscrever-me" e, muito menos, a "esperar" por uma resposta que nunca vem, quando expunha, dizia, os sítios onde vendia mais era em consultadorias e escritórios de advogados e aí, vendia praticamente tudo. Se expunha num restaurante as vendas eram nulas rondando uma obra por cada exposição, quando rondava... Perguntei-me sobre isso e percebi o que se passava. Era o tempo e a energia. Parecia algo quase "Einsteiniano". O tempo tinha a ver com a habituação. As pessoas que trabalhavam nesses locais habituavam-se aos quadros e já não queriam ficar sem eles. A energia tinha a ver com a companhia. Os quadros estavam internamente vivos. A vida captada a meio de um ritual estático qualquer. Habituadas à companhia, as pessoas já não se queriam afastar deles. Os restaurantes eram locais de passagem rápidos. As energias eram repostas pela comida. As pessoas sentiam-se acompanhadas por outras pessoas.
A contemplação é um alimento e uma companhia. E, quando acontece, essa energia, que é o próprio movimento da vida, faz-nos sentir a Presença. É assim que os ícones são Presenças, autênticas, separadas de nós, das nossas opiniões, da nossa intelectualidade ou da nossa falta de atenção. São Presenças para além de nós e connosco.
E muitas pinturas fazem-nos sentir isso.
Nunca me esqueci do que vi nesse arbusto grande e branco: a interioridade da matéria. O contra-peso da visão parada desse arbusto que, embora bonito, guardava em si algo ainda mais belo. O mistério da própria vida.

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