sábado, 5 de junho de 2021

I Ching



Num dos muitos diálogos que tive o desprazer de ter quando ainda estava no Facebook, caí no erro de dizer que, de quando em vez, lançava o I Ching e logo um músico-poeta que pertencia a um grupo de filosofia que se encontrava em fase de desintegração, como era costume, e sem eu lhe pedir, disse de imediato a sua opinião: que se tratava de auto-sugestão. Nascido com e do Taoísmo, este Livro das Mutações, com milhares de anos, foi assim resumido numa penada por quem se achava digno de um grupo de filosofia. Foi mais um contributo para me afastar de certos meios. Comparar este Livro de Mutações a um simples lançamento de búzios, porque foi isso que aconteceu, é não entender nada daquilo que nós ainda estamos a tentar entender graças ao grau de complexidade que este Livro comporta. Já não falo dos estudos feitos, e são vários calhamaços, em torno deste tema que é muito mais do que uma simples imagem de alguém que, centrado sobre si mesmo, em época juvenil, quer saber como lhe vai correr o futuro. Até porque, neste livro, o futuro está sempre em movimento, como tão bem disse o Mestre Yoda da Guerra das Estrelas. 
Tive várias experiencias com este livro e, das mais impressionantes foi a da saída, por quatro vezes consecutivas, do mesmo hexagrama e da mesma mutação (que redirecciona para outro hexagrama). Tive esta e muitas outras experiências cujas probabilidades são de uma para 64, o número dos hexagramas. A história da auto-sugestão parte do princípio de que não é a mente que faz mover a matéria, ao contrário do que à primeira vista pode dar a entender. Quando o filósofo-músico teceu o seu comentário, quis dizer que, consoante o hexagrama que saísse, assim eu me comportaria, ou seja, o acaso do exterior iria ditar o meu comportamento. É tudo ao contrário. Com milhares de anos, com a sabedoria chinesa aprimorada ao longo desses anos, nada poderia ser menos verdadeiro. Quando se lançam as moedas, há uma ligação mental e corporal com as moedas e, ainda assim, não é tudo. A nossa mente pode estar mais ou menos ligada ao eixo do mundo, da vida, do nosso ser. Se estiver pouco ou nada ligada, o resultado irá ser exactamente produto desse afastamento, se se encontrar mais em sintonia com esse eixo, o resultado irá estar mais de acordo com esse eixo fundamental que liga o céu e a terra e é por isso que lançar uma moeda do I Ching não é um acto tão simples como se pensa. A cara ou coroa, o Yin ou o Yang, dependem do nosso estado interno. A ideia de "auto-sugestão" serve a quem vive num mundo de sugestões como aquele com que se divertem certos seres que se pensam iluminados no Facebook, julgando-se assim mestres, orientadores ou simplesmente predadores de ideias alheias ; o mundo filosófico e esotérico em Portugal está cada vez mais povoado desses seres nauseabundos incapazes da criatividade plena, mesmo que dedilhem uma guitarra. Também já inventei muitas músicas para o gravador e não me sinto superior por isso e não me atrevi nunca a dizer, nem no início, que o I Ching era uma mera auto-sugestão: uma cultura milenar merece mais respeito do que isso. O I Ching, perece-me ser um fenómeno com várias vertentes, desde a física, passando pela mental, até à espiritual. Não sendo uma oração, nem uma meditação, requer, porém, alguma coisa disso e não é um sistema fechado, mas sim, muito mais aberto do que fechado, daí chamar-se o Livro das Mutações e não o Livro das Repetições, até porque, segundo a Tradição, nada se repete, não só porque na natureza não há repetições (isso é para o mundo dos geómetras e dos matemáticos que não conseguem ultrapassar o número, mesmo quando lhe dão uma carga simbólica: o grande perigo destes é não apreenderem a Unidade), como porque "a água de um rio só passa uma vez pelo mesmo sítio" e daí que o Universo esteja disposto em Cascata como indicou Solazaref o que, aliás, pudemos constatar... e, tendo constatado esse facto, nele tudo corre para e nessa cascata sem fim que é o avesso corporal porque "descarna" os eventos e o Todo revelando a sua Luz fluindo. Mas, voltemos ao I Ching. A sintonia com o eixo irá aproximar a nossa escuta das palavras do I Ching, não da certeza dos eventos futuros, mas sim, de uma maior preparação para os mesmos. Não são os eventos em si que são descritos, é a nossa preparação para eles que é relatada o que, à boa maneira chinesa, parece paradoxal: como nos podemos preparar para aquilo de que não temos a certeza? Se tudo é mental, a resposta reside aí. Para atingir esse grau de preparação para o que mentalmente irá acontecer e que se derramará na plena existência desse acontecimento é necessária essa sintonia com o eixo. E essa é a mais difícil de conseguir. Este é um dos graus mais complexos do I Ching. O mais simples, acessível e funcional é ir escutando as palavras do Sábio (personagem que aparece frequentemente no I Ching), sem questionar muito, mas ouvindo-o com o coração. Isto remete para a relação mestre-discípulo: sem questionar muito, ou seja, confiando nas suas palavras que são apenas um eco de uma das nossas facetas e que aparecem descritas no Livro. Já Guénon dizia que o Mestre é uma mera projecção do Discípulo pelo que se depreende que, não há coisa mais difícil do que se ser Discípulo. No Oriente, ser-se Discípulo é já um estatuto, ao contrário do que se passa nos nossos meios esotéricos onde a palavra Mestre é logo solta da boca para fora sempre que alguém mostra alguma erudição (como se esta fosse garante do que quer que seja...), devemos, aliás, ter mais mestres por metro quadrado do que discípulos, o que é pena porque é no Discípulo que se encontra o Mestre. Evidentemente que não poderemos deixar de falar na ambivalência dos símbolos e na sua multi-significação. Se era assim no Ocidente antigo, era assim também no Oriente arcaico. Um símbolo nunca tem só um significado, nem nunca é apenas só positivo ou negativo. Isto se for, de facto, um símbolo e não um sinal. Só agora, numa época de eruditos que se pensam mestres é que se assiste à leitura dos símbolos de forma dogmática, senão mesmo fanática, muitos deles formatados por uma religiosidade nervosa, assoberbados por um espírito de "missão", essa sim, quantas vezes, produto de auto-sugestão...

 
 

A estupidez





A democracia vestiu-os a todos com as cores políticas e colocou-lhes umas lentes através das quais só conseguem ver o mundo a preto e branco. Aos mais bravos, colocaram uma lentes ou pretas ou brancas, de maneira que nem os contornos chegam a ver. É certo e sabido que os arquitectos neste país andam a fazer casas compulsivamente pintadas de preto, cinzento, branco e vermelho. Estão a preparar o terreno para a guerra. É vê-las nascerem como flores selvagens na paisagem campestre. Um bom indício do que se passa. Pensávamos nós que estas novas vestimentas, acompanhadas pelas devidas lentes com que se enxerga o mundo, fossem apenas para a arraia miúda que acredita em tudo aquilo que ouve, mas nem nos tínhamos dado conta, que essa arraia, já há muito estava a invadir os supermercados e tinha comprado romances de mistérios históricos inspirados em chaves do areeiro esotéricas, e que essa mesma arraia, tinha invadido as palestras e publicações e que andava agora nessa roda viva, a fazer ela mesma, livros e palestras de encantamento das massas. Posto isto, é notícia, que toda a sociedade, se vestiu com os tons com que os arquitectos pintam as casas horribilis e se pavoneiam com a última verdade-exclusiva que conseguiram pescar na Internet. Mas não são apenas estes novos-ricos-do-esoterismo-e-da-cultura a fazerem o seu passeio diário e higiénico, prolongado no tempo e na avenida, com o seu mais recente caniche, ora preto, ora branco, emproado e de penteado mantido a laca-viral-chinesa-que-a-culpa-é dos-amarelos-que nos deixaram-a-preto-e-branco [sic pela metade da boca de uma aluna de 12 anos entontecida pelas observações do pai-arraia-miúda-a-comentar-o-jornal-da-hora-de-jantar], também os da velha guarda não resistem ao desfile, esses, acompanhados por galgos à procura de vítimas na sua caçada que já vai longa, de troféus que os hão-de levar às portas do céu que é puro e sem gays, nem mulheres que não sejam virgens, tal qual o seu ini-amigo muçulmano. Quer de um lado, quer do outro, fazem a vontade ao clima cinzento da antiga União Soviética e da Alemanha Nazi. Spielberg, na lista de Shindler, acertou em cheio nas cores, filme a preto e branco, apenas pontuado por um apontamento de um vermelho mortiço, indicativo do sangue e da tragédia. A insensibilidade estética é sempre um indício de que as coisas não correm bem. Olhamos para isto e cultivamos flores para que a alma não se conspurque no pantanal sem conversa possível que nos cerca. E vamos encenando a nossa ditadura pessoal, feita para nós, alta-costura de um único cliente, e vestimo-nos de flores, de dourados, de prateados, de almas mais próximas dos anjos e deixamos o lixo ao que é do lixo. As nossas lentes são outras, e sempre foram e nunca pensámos que o mundo chegasse a isto. Pelo menos tão depressa. E que fazer senão admitir que a vida é breve mas não a estupidez?

sexta-feira, 4 de junho de 2021

Décimo primeiro mandamento

"Todas as chaves"? A sério? Todinhas, inhas, inhas? Espectáculo!

Décimo primeiro mandamento:

Não farás marketing e a tua alma será salva.

 E assim vão os neo-templários em Portugal e, provavelmente, no restante mundo. É uma alegria. E um êxito. Neo-templários superstar. Mais um pouco ainda ganham o disco rachado de platina, quiçá d'oiro ou de diamante! 

Conseguem o milagre de, pela capa, se ver o conteúdo. Com resmas e resmas de estudiosos e logo havia de calhar este! E sem cruz!



 

Ah, fadistas!



Constato uma certa inoperatividade do ser e um certo cantar ao despique. Se pensar Portugal como uma casa de fados, daquelas selvagens, na Madragoa dos ausentes, na Mouraria dos carentes, e na Alfama dos dependentes, então, tudo faz sentido. Os xailes negros proliferam disfarçados de design e as voltas das reviravoltas dos linguajares fáceis são torturas nas ruas tortuosas da intelectualidade. Ah, fadista que te levantaste e brindaste ao fado, escorregadio como o vinho, antes de abrires a boca e grasnares sobre as penas da nação. Volta e meia o público aplaude emocionado e a noite faz subir o vapor do álcool tornado sangria pelos tormentos da gaseificada e efervescente matilha saudosa dos tempos idos. Ide, ide a correr como cavalos até ao campo da batalha mas depois não cantem o "menino de sua mãe" e não chorem lágrimas de crocodilo... Esta intelectualidade balofa que diz declarar guerra às ideias, inimigo fácil e invisível, sedenta é doutras guerras, que disfarçam com punhos de renda, e penas de escritor. Querem tanto sangue como o fado quer vinho. 

 

Bonecos


As más recordações dos poetas

São dispostas lado a lado

São bonecos sentados em prateleiras

Olhando a janela fechada

De onde vêem um prado

Ouvem os passos da casa

E encolhem-se em si 

Ouvem os risos em flor

Julgando-os lá fora

E não o perto que estão

Da divisão decorada a dor

Tombam a cabeça e dormem

E esquecem o pôr do sol

Que para elas se põe...

As más recordações dos poetas

Perdem a cor e ganham pó

São almas desertas, perdidas e sem dó


(Cynthia Guimarães Taveira)






(Cynthia Guimarães Taveira)




 

quinta-feira, 3 de junho de 2021

Bullying


 Fui vítima de bullying uma vez no Colégio Moderno por ter colocado um elástico no meu cabelo indomesticável em vez de uma bandelete. Fecharam-me na casa de banho e toca de humilhar. Mais tarde, o mesmo aconteceu com uma vizinha minha uns dois anos mais velha do que eu em casa dela. Tinha lá ido por convite da sua irmã que saiu por algum tempo e fiquei dentro de casa com uma "avariada" que só descansou quando me viu a chorar convulsivamente. Dessa vez foi a saia de xadrez o motivo da chacota. Depois, ao longo dos anos, sempre que voltava da escola, um grupo de cinco ou seis de vizinhas, quando me viam ao fundo da rua, preparavam-se sempre para embirrar comigo com dizeres : 'Lá vai a super-mulher", e risinhos, e embirrações, sem me conhecerem, a não ser de vista. Durou até ao dia, em que eu já farta de atravessar a avenida para não passar por elas, resolvi descer no lado do passeio onde elas se encontravam, e, ao ouvir o primeiro comentário e virei-me à pancada. O irmão mais velho de uma delas apareceu, separou-nos e deu um tal raspanete às parvas que elas nunca mais me incomodaram. Depois, no liceu, lembro-me de ter sido apedrejada, subitamente, sem explicação, por uma série deles, dez ou mais, com pedregulhos numa zona da escola com árvores e terra batida. Lembro-me apenas de ter subido a escada, lavada em lágrimas, sem compreender o porquê de me terem agredido. Foi tão violento que me tornei anti-social naquela escola e, por dois anos, continuei a ouvir insultos. Lembro-me uma vez, no autocarro para a escola de, à saída, me ter virado à pancada contra uma que me insultou só porque sim. Tivemos de ser separadas por pessoas que iam a passar na rua. Só senti paz quando a direcção dessa escola, depois de uma conversa com a minha mãe, decidiu que o melhor lugar para mim era a António Arroyo, escola para artistas. Lembro-me de entrar lá e de me sentir no paraíso. Ninguém, absolutamente ninguém, comentava o meu aspecto, a forma como era, a forma como me vestia. Sentia-me livre e entre os meus. A arte a resgatar-me e a fazer-me descobrir as palavras portuguesas, a História da Arte, com  professores óptimos que me incentivaram. Foi maravilhoso. O mais estranho foi aquilo que se passou comigo já quarentona. A mesma cena de bullying passou-se num lugar onde isso seria altamente improvável e as consequências foram devastadoras. Quando pensava que já me tinha visto livre de tudo o que era bullying, eis que acontece de novo com  gente "culta", numa casa de "cultura". E de novo fui resgatada por artistas. De novo me salvaram. E como isto aconteceu, se me perguntassem o que diria, se pudesse, às gentes do bullying, diria apenas que são fracos, sejam um, dois, três, quatro, cinco ou seis ou mais a fazer o serviço de humilhação. São fracos e tristes. E não temos nada a ver uns com os outros. A arte será sempre superior a essa gente. E acolhe-me nos seus braços. Essa gente é produto deste mundo. A arte, os artistas, são produto de um mundo superior que lhes está absolutamente vedado. De resto, desejo-lhes as maiores felicidades, aquelas a que têm direito dentro das suas limitações e que são muitas.

O impossível


A pedido de várias famílias aqui deixo a minha opinião, que vale o que vale, ou seja, uma vez diluída na opinião de milhões, vale nada. Ainda assim aqui vai. Há uns anitos, andava eu ainda no carrocel desenfreado da feira e fogueira de vaidades que é o Facebook quando me atrevi a deixar longos comentários sobre a minha opinião acerca do que se deveria fazer com a Educação (leia-se Ensino) no nosso país. Esses comentários foram lidos por alguns professores que logo se apressaram a dizer que tais propostas eram impossíveis de realizar. Anitos mais tarde, alguém me veio dizer que o Ministério da Educação queria rever todo o processo educativo porque, se não o fizesse, a escola acabaria. Na verdade, já quase ninguém quer ser professor. Sofre-se muito. Sofrimento é mesmo o termo. Não faço a mínima ideia se algumas "revisões" do processo educativo que o ministério deseja coincidem com as minhas propostas. As minhas opiniões relativamente a isso, diluíram-se,  numa primeira fase, em conjunto com todas as outras, numa espécie de pasta amorfa e inútil e, numa segunda fase, depois da minha saída do Facebook, diluíram-se nos registos kármicos do próprio planeta, num vórtice sem fim, em direcção aos abismos. 

Neste momento a polémica é sobre as Redes Sociais e o que pode ou não ser dito nas mesmas. Para as famílias que mostraram o desejo de saber a minha opinião, aqui vai: Acabem-se com as redes sociais. Tive a ousadia de dizer isto em voz alta e logo levei o tabefe: "Ah! Então, tu pensas que para se acabar com o bulling (maus tratos, em português), deveriam acabar com as escolas." Respondi que não, que o Facebook não era uma escola de coisa nenhuma. É um local virtual para onde se despejam opiniões, estilo vómito compulsivo. Apenas isso. Já fui viciada nisso, já saí dessa dependência, já fiz o desmame e encontro-me bem, muito obrigada. Comparar o Facebook à Escola é de quem tende a confundir a Sociedade inteira com o Facebook. Não é verdade. A sociedade pode viver sem o Facebook já o contrário, não acontece. E quem diz Facebook, diz qualquer outra rede social. O cinema tem o seu papel na formatação de cabeças, tal como o Facebook, mas tem uma pequena e fundamental diferença: permite que a Arte Aconteça ou possa acontecer. O Facebook é sempre uma imagem rarefeita de tentativas falhadas disto e daquilo, inclusivamente da arte. Não há Arte nenhuma no Facebook. Há uma imitação vazia dela (quando há...). A escrita pode aparecer em qualquer lugar, até na areia molhada, escrita com um pau que a onda há-de levar. Um post sobre Klint não é arte porque não é a feitura da obra, apenas a observação dela, e nem sequer ao vivo é... dito isto, chamem-me as várias famílias o que quiserem. A opinião delas sobre a minha opinião é tão válida como a minha e no vazio se esvai e evidentemente que muitas opiniões acham "impossível" o término das redes sociais. No entanto, a minha consciência está tranquila. O dessossego está sempre cá, porque a minha alma é artística. Isto para as famílias que confundem "dessossego" com "consciência": as duas querem-se como vieram ao mundo, uma naturalmente desassossegada, outra, naturalmente tranquila.  Muito boa tarde.