sexta-feira, 8 de maio de 2015

O sorriso da Palavra





Serei vale, sombra e solidão,
serei palavras completas demais,
exaustas em si,
nas quais, encontrais o desejo,
o apelo, a asa d’ouro que cobiçais...
 
Serei vale e discussão,
sombra das tristes certezas,
solidão das almas sem memória,
Adamastor de impérios desistidos...
 
Potentemente fazendo tremer a vossa ira,
poderão, até, puxar os cabelos,
revolver-se naquela náusea nocturna
do horror do sabor a nada,
poderão ver vivo o vosso inferno,
erguido diante de vós...
 
Vale, sombra e solidão, sentir-se-ão
tristes, de farrapos arrastados nas ideias,
tontos aplaudindo o vosso circo,
esguichando assombros
de quem teme a criação que não for
o apelo, a asa d’ouro que cobiçam...
 
(Oh, pequenos deuses somos
em palavras menores,
e grandes se falamos
do esplendor, da glória, da luz)
 
Revolve-se-vos as entranhas,
entre o acordo e o desacordo,
entre o juiz e o arguido,
entre vós e essa balança,
à qual não dão um pontapé
Por tudo tentar em vão...
 
Toda a verdade tem de vir,
mas que não venha
em fúria escarlate, ou venha,
mas que não seja ruiva, ou seja,
mas que não tenha sardas, ou tenha,
mas que não levante a mão esquerda
ou a tenha erguida
como prova da capaz imensidão do gesto...
 
Ou então, que venha  mansa ou não,
cuidadosa, e seja Beatriz,
assim, leve, ligeira, ou não,
de olhos redondos, de criança, ou não,
que ela não levante a voz, ou grite,
para que a verdade seja mais mansa, ou alta,
mas se pague com a morte...
 
Que venha pura e inocente, ou não,
ainda que magoe no dizer, sempre,
ainda que seja vale, sombra e solidão,
ainda que vos faça morrer...
 
Nada é assim, vos digo,
não há poeta que não omita!
Todos eles cantam e são flautistas,
todos dão a imagem que imaginam que imaginam,
todos eles enganam para poderem segredar!
 
Até no vómito, e nas palavras duras,
até nos escombros de uma guerra,
até nas manchas que expõem,
são o engano da palavra!
 
Toda a realidade é essa e mais um pouco,
toda a verdade desnuda,
só ao ouvido é dita...
 
Todas as palavras são vestes,
daquilo de que vós,
se se aproximarem,
e, ao despirem,
não acreditam.
 
Só ao ouvido
e sem som,
nesse silêncio
de cada um,
longe de cada um,
no distante horizonte,
que é só memória e mais...
é dita aquela,
que ao cair,
acesa e erguida,
vos dá o dom, ou não.
 
 
(Cynthia Guimarães Taveira)

quinta-feira, 7 de maio de 2015

Aos portugueses:



Se não cantarmos o mar, ele não nos dá glória.


(Cynthia Guimarães Taveira)

Pequena diferença




Entre ti e essa onda do mar,
não há diferença nelas,
apenas a pequena que há,
no que trazes dos navios,
no que trazes na memória,
nos destroços de naufrágios,
nas horas vingadoras,
e noutras vigilantes,
e em todos os sonhos em mar alto,
e nas estrelas dos navegantes,
e nas promessas das ilhas tidas.
Entre ti e essa onda
que de tão cristalina e pura,
límpida de nada e de ar,
lisa, sem imagem, nem memória,
só sal, só vida, só luz,
deixo que se chegue a mim,
e me envolva em espuma,
nesse azul de todos eles,
sucedendo-te em transparências.
Entre ti e essa onda,
dista só essa diferença que não sabes,
e por, não saberes que a trazes,
sem dar por isso, trazendo-a, a fazes.
 
 
(Cynthia Guimarães Taveira)

quarta-feira, 6 de maio de 2015

Só lá



Antes tivesse sido uma visão,
uma miragem,
uma alternativa à realidade.
Antes tivesse sido uma revelação,
mas nada fui,
nada, como a aparente vacuidade
transparecendo de um lago parado
 
Movia-me no silêncio,
movia-me no silêncio,
que nunca ouviste.
Movia-me e via-te,
espreitando,
o insuspeitado por ti.
 
Movia-me no silêncio,
sem esperar sequer,
via-te no pormenor,
acontecendo nas tuas células...
de quem viva em ti, para além de ti.
 
Via a involuntária mão estendia,
o abismal raciocínio toldando-te,
o infernal monstro cercando-te.
 
Nada poderei dizer,
porque  foi no silêncio,
do qual nunca soubeste,
nem nunca entraste,
nem pressentiste,
nem te arrepiou, 
que te vi...
E nele não corre nem uma palavra,
apenas a brisa do sentido de tudo isto,
apenas o encontro de tudo isto,
apenas o inacreditável segredo
que troco com Deus e ele comigo...
 
Antes fosses a miragem,
antes fosses a ilusão,
antes fosses a revelação súbita,
da graça da flor numa Primavera qualquer...
mas nada disso és
neste silêncio que te acolhe,
nada de irreal transportas,
nada de insubstancial,
nada de visível,
não tens nada do mundo,
porque não és do mundo,
és desse segredo dito ao ouvido,
és dessa tão próxima alma,
que colhes nas brumas ocultas
toldando a tua própria alma...
 
És o que entende,
sem saberes que és entendido,
és um secreto compenetramento,
além da oração,
és a recolha como gesto,
e nada mais podes pressentir,
se nada dessa brisa apalavrada,
no espanto daquele outro vivente em ti ,
sabes ou sequer intuis,
e não conheces,
apenas o representas,
não crendo nele,
e sendo ele...
 
(és o que já lá estando,
não está lá ainda,
que, no meu silêncio sei,
não estar já lá...)
 
Entre nós,
um abismo feito de ascensão.
Entre nós,
cada movimento
é uma dança estrelar.
Entre nós,
o espaço move-se na diferença
entre um passo de magia e a magia.
 
És a margem
do rio que sou,
pensando seres o rio que sou...
escapo-te por entre os dedos,
quando, qual narciso,
te vês transparente.
Viajo-te como um rio escorrendo
por ti, margem eterna,
como a própria vida,
sempre paralelo ao mar
e só lá, depois dessa duna
em pensamento atravessada
e nunca encontrada,
no mar feito gota a gota
a cada toque da tua mão,
onde não há navios
por não haver ilusões,
onde as tempestades,
são apenas o suporte
das nossas lágrimas,
o pôr-do-sol,
é onde a nossa luz se deita,
e as aves são a paz que lhes demos,
só lá ,onde nuvens imensas,
são o passo de magia para a magia,
vivente para além delas,
só lá, onde não há manto, nem espada
em guarda, te aguardo, guardando-te.

 
(Cynthia Guimarães Taveira)

domingo, 3 de maio de 2015

Pássaro de madeira


Há como que um espaço no tempo,
pequeno como um segredo,
um sítio que contém
a resolução no apropriado templo.
Ainda que viva no tempo,
é fora dele que vislumbra,
o momento do acrescento da verdade
a um certo engano que perdura.
É como um coração que bate,
nos escombros da desventura,
só aquele que o mesmo sonda,
aguarda no templo a investidura.
Há como que um pilar,
que não oscila, nem permite,
que as voltas do tempo ditem
nem uma, nem toda história escrita.
Dizem-nos que o destino se estende,
como janelas abertas por inquilinos,
de meia em meia hora acordam,
sem que nunca se saiba toda a rotina...
É como a folha verde,
a despontar ao santo sol,
o sol é certo e não desdiz
a semente pelo vento colhida.
Cruzam-se as vontades,
sem que haja vontade certa,
e há no entanto o sinal
de que essa cruz é feita.
Se atentos, mais do que alerta
formos lendo a poesia,
num lânguido canapé,
escuta-se a melodia antes do canto...
Se se sai do quotidiano dia
num ligeiro voo imprevisto,
inscreve-se o desabafo
que o vento teve em solo fixo.
Limita-te a ficar, então,
de braços cruzados assistindo
ao fátuo e farto sabor do tempo
que num certo instante ,em deslize,
se descai e diz: “de mim não sei, e nem existo.”


(Cynthia Guimarães Taveira)

sábado, 2 de maio de 2015

Magia



Passo, sem deixar passos na areia,
não porque seja puro espírito,
mas porque a areia não é pura matéria,
quando pensada e reinventada,
na insubmissão da palavra às leis da física.
 
Passo pela palavra porque a sei,
como a graça de uma garça,
que uma vez dita e sentida
nas fibras do coração,
passa a etapa, larga e total,
daquela outra que vem,
no silêncio da compreensão.
 
Passa então a palavra por nós,
e uma vez dita, passando,
por essa outra que vem,
no silêncio da compreensão,
torna-se verdade e acredita,
que de toda a matéria que há,
nenhuma é mais real.


(Cynthia Guimarães Taveira)

quarta-feira, 29 de abril de 2015

Tédio


Morro de tédio aqui. Todas as aldeias são cortinas na janela com olhos do lado de dentro. Todas escutam e exigem em surdina. Todas as aldeias são o perpétuo descontentamento de serem apenas olhos com cortinas rendadas, de bonitos rendados, de tão bonitos rendados, rendados lindos, vendando os olhos...
Morro de tédio na aldeia do mundo... morro devagar, obedecendo às cortinas, aos olhos por detrás das cortinas. Todas as aldeias estão desertas. Todas são apenas uma emergência. Todas são silêncios à espera que os sinos dobrem: pelo fogo, pela morte.
Todas são iguais, todas são o mundo.
Todo o mundo é um vasto tédio, infame quase, dessacralizado, ossificado, coisificado.
Só um corvo espreitou hoje. Voo directo em direcção a mim. Sei bem que não era um corvo. Era um símbolo apenas. Até os símbolos ficam apenas no tédio das aldeias vindos direitos a nós. Todos os símbolos são meros espelhos de nós. Todas as aldeias nem símbolos chegam a ser: são um desenrolar cansativo das virtudes e dos defeitos humanos.
Toda a paisagem é uma tela em branco. Serve só para isso no seu silêncio. Todos os mestres, Albertos Caeiro morrem, por isso Fernando Pessoa o matou tão cedo. Todas as paisagens não são novidade no branco que são. Todas elas são um novo início, um perpétuo e entediante novo início.  Todas as telas em branco somos nós, no nosso tédio criativo. Todo o tédio criativo é feito para calar as paredes demasiado brancas, toda a escrita é escrita para calar as não palavras. A eternidade do mundo consiste nisto. O amor, é impossível. Porque preenche demais, porque frustra a criação. O amor quere-se sempre pela metade... metade dele chega, porque quando vem inteiro mata. Ninguém quer amar porque ninguém quer morrer. Todas as aldeias são o tédio do amor pela metade. Todo o mundo fica pela metade, é sempre um gomo da laranja única, do fruto que não se prova. Nada se prova, no fundo, nas aldeias.  Tudo é provado como provação, nada é provado como amor. Todas as aldeias do mundo e todo o mundo que é aldeia, é a tela branca do início... na eternidade que imita, paralelamente a ela. 
Todos os gritos são iguais às aldeias no tédio que são.  Todas as palavras escritas são apenas um grito disfarçado de generosidade. A opção certa de não gritar e ir escrever é tão entediante como as aldeias. Toda a arte é um cocktail. Um tchim-tchim feito no tédio para não se morrer de tédio. O que interessa é não morrer: nem de tédio, nem de amor. E o mestre morre para que isso seja possível, morrendo em nós é porque é nascido em nós, numa profunda e entediante incorporação que é a morte dele para que todos os inícios sejam possíveis no desenrolar cósmico, e tendo tédio não possamos morrer, e tendo amor não possamos morrer. Todas as aldeias são a morte aparente da aldeia que já está morta, da paisagem pré-fabricada que nos eleva à nova criação.  A criação existe para calar o mundo que fala demais e cria de menos numa espécie de equilíbrio entediante.

(Mas extra a tudo isto tu vieste e disseste-me que o amor mata e revigora. É só de ti que tenho saudades. Tão transbordantes como do amor que me deste. É só de ti que sei dizer alguma coisa que não seja um tédio. É só no que me deixaste que posso conviver comigo. É só nessa prova de amor irrefutável, que guardei como um laço, que ousei um dia, dizer, que existes. És só tu que és a eternidade. É só a ti que guardo, que calo e não entrego, para não matar ninguém. )
(Cynthia Guimarães Taveira)