domingo, 31 de março de 2019

Visões




A variedade de visões obriga-nos a não dar demasiada importância a uma só.
A ideia de evolução impede a ideia de simultaneidade mas não chega a impedir, nem pode, a existência de simultaneidade senão ninguém tocava piano.

sábado, 30 de março de 2019

As Rotas





Louis Charpentier no seu livro “Santiago de Compostela – Enigma e Tradição” [Minerva ed. 1971], levanta a hipótese, entre outras coisas que vai sugerindo, que existia uma rota de França até Santiago de Compostela mais antiga e, de certa forma, paralela à posterior. Diz, na página 182, apontando a data de 1025 que “É nessa altura que se organizam os Caminhos de S. Tiago em França que estão na origem da quantidade de mosteiros, de pousadas, de hospitais que sabemos. É esse excesso mesmo que nos revela o verdadeiro objectivo da peregrinação a Compostela. São caminhos de construtores. Sem dúvida que vemos aí desfilar penitentes, místicos, ladrões de estrada e peregrinos, mas os construtores seguem em frente, não como penitentes nem como místicos, mas como construtores, como aprendizes, candidatos à iniciação.”

A ideia é que, o caminho era, ele mesmo, uma fonte de aprendizagem do ofício de construtor, as paragens nesse caminho, locais de ensino e o culminar, perto do oceano Atlântico, o Ocidente, corresponderia ao ensino adquirido de uma vez por todas, ou seja, a mestria na arte. Pode ler-se nitidamente, nestas linhas, a separação entre o misticismo e a iniciação. Há uma rota pré-definida de saber. A pé-definição de uma rota de sabedoria nada tem a ver com a concepção de destino, noção passiva e apropriada ao misticismo, passivo e de uma outra ordem de ideias. Daquilo que o texto fala é dos “candidatos” à iniciação, o que pressupõe, naturalmente, um acto voluntário e objectivo na decisão da tomada desse caminho. Quando olhamos para trás há sempre um destino (como a pescada que antes de ser já o era), quando olhamos para a frente há uma candidatura à iniciação. Retirar a capacidade de improviso dos deuses é diminuí-los…

António Telmo chamou a atenção para a existência de duas matérias-primas distintas, a madeira (elemento vegetal) e a pedra (elemento mineral) situando o primeiro como tendo sido o original, o mais arcaico. A ordem não é tão importante assim, mas o efeito é. A precisão necessária à pedra não apela directamente à improvisação, ao gesto solto. O elemento vegetal incita ao acompanhamento dos ritmos da própria natureza aliando o improviso ao rigor. Obriga a uma interiorização da natureza, a tal ponto, que se possa reproduzi-la libertando-lhe o espírito. Na pedra, é o rigor da medida e do número (presentes desde o desenho inicial que é pensado até ao peso, textura, e características da massa e espaço ocupado por essa massa) que permite o reflexo sonoro e visual do espírito. Ele surge-nos por reflexo e pelo espaço que permite a circulação do éter.  No elemento vegetal, ele surge-nos pelo éter em si e, como tal, surge-nos como uma substância concreta, ou na substância concreta, mais exactamente. A pedra funciona por vibração, o elemento vegetal por fusão. Ambas se efectuam no espaço. Na pedra a geometria é visível, no elemento vegetal fica invisível, camuflado pela beleza que é a pele da natureza. Mas uma pele que se funde com o éter quando este é liberto por via desse acompanhamento desse ritmo e comportamento da natureza. É a própria natureza que responde infundindo a sua própria substância secreta no corpo, activando, por sua vez a substância secreta que há no corpo. O som da pedra pode fazer o mesmo em conjunto com o magnetismo. As linguagens são, porém, diferentes, até porque as rotas são também diferentes. Numa a rota de aprendizagem está pré-definida, como o caminho de Santiago, e daí a sensação que dá de haver destino. As construções são pensadas, pré-estabelecidas, com o elemento vegetal, e como há fusão com o próprio percurso da natureza, a essência da “candidatura” que é uma eleição pré-estabelecida mas cujo o desfecho, como “eleição” pode ocorrer ou não, essa sensação de destino fica “atordoada” e revela-nos que a interiorização dos ritmos da natureza, mesmo sendo cíclicos, como aliás são, nos conduz à sintonia perfeita que existe entre nós e a figura geométrica da espiral, mais de acordo com o determinismo que se casa com a vontade. António Telmo não errou ao falar do elemento vegetal como sendo o original como matéria prima e, sendo o original, será o que está mais perto da fonte. A Tradição há-de integrar tanto os ciclos como os “saltos quânticos”. Há mutações que são produto da técnica e da repetição dessa técnica e há outras que funcionam simplesmente porque a sintonia existiu. O elemento vegetal permite o discorrer do aleatório, abre ali uma porta à imprevisibilidade que é um dos atributos do Espírito Santo. A instantaneidade é a sobreposição de muitos elementos e de muitos contextos e a instantaneidade é a fusão. E dentro da fusão há aquela reviravolta que é a criação. Um ponto. Um único ponto em que ela se dá. Que René Guénon diz não ter dimensões… No entanto, para dizer a verdade, qualquer Arte possui esta capacidade. Tanto a Arte da Pedra como a Arte do elemento vegetal. Se a geometria está mais exposta na pedra, e menos no elemento vegetal, onde se encontra camuflada, a linguagem, por sua vez, está mais exposta no elemento vegetal e menos na pedra, ou seja, a geometria obriga à demonstração por via da linguagem, o elemento vegetal, no qual a linguagem é explícita, obriga apenas à presença, porque a presença funciona no plano da instantaneidade.

O que é curioso é René Guénon falar em Jardim Terrestre e em Cidade Celeste e da passagem do elemento vegetal, para o elemento mineral como ponto culminante. Imaginamos logo uma cidade com prédios ou com os tais muros com pedras preciosas, tudo muito brilhante e, sobretudo, estável e fixo (a fixação é a irreversibilidade iniciática). E esquecemo-nos de uma coisa fundamental: as plantas alimentam-se de sais minerais, de gás carbónico e da Energia do Sol. Vai buscar ao solo os sais minerais e vai mais acima buscar o restante. E, se há fusão, com o ser humano, então temos a composição da cidade celeste como qualquer coisa que é possível de existir dentro dos nossos próprios minérios. A instantaneidade é mesmo surpreendente. A cidade sobreposta ao jardim. Coincidente. Por isso é que a tábua esmeraldina é verde. E Portugal é um Jardim.

sexta-feira, 29 de março de 2019

Cada Um é Como Cada Qual



A variedade de "católicos" portugueses anda próxima da quantidade de católicos portugueses. Isto quer dizer que penso que nunca vi um católico igual a outro. Facilmente abrem a boca e dizem o que muito bem entendem, o que concordam e discordam relativamente aos dogmas da religião em que foram educados, até porque desconfiam que são voláteis.  Depois há aqueles que nem pensam nisso e outros que se dizem cristãos, simplesmente, e cuja paleta vai do mais vago cristão ao mais definido e até profundo.
O anticlericalismo é a nota dominante. O clero pode andar por aí, tudo bem, não pode é pisar determinados riscos porque à mínima coisa o povo perde todo o respeito pelos representantes do catolicismo e manda-os literalmente passear. Basta ver alguma notícias ao longo dos anos do país, de Norte a Sul, que relatam que os "populares", descontentes com o padre que lhes calhou em sorte, batem o pé, sugerindo que o padre da sua paróquia se vá embora pelo próprio pé.
Uma vez por ano lá vai um milhão, ou mais, para Fátima, porque a figura feminina é muito importante para os portugueses, mas não há, nem pode haver, um acordo entre as ovelhas que são todas negras. Mais concretamente, são todas às cores. O fundo mais intenso e cujo vento agita a chama interior da crença é a palavra liberdade. Dos dogmas, adopta-se o que se quer e como se quer ou nem sequer se adopta. E do cristianismo, em si, também.
Este tipo de liberdade é característico da nossa História desde os começos, desde a fundação do país (e é-lhe anterior) e não se encontra presente com a mesma intensidade em países como a Espanha ou a Itália. Sinceramente penso que essa diversidade é boa porque é genuína. A Inquisição fez mal ao país e ainda se notam resquícios na cultura. A delação e a bisbilhotice são alguns deles.
Mas creio ainda que a tónica portuguesa, hoje, está na liberdade de pensamento e de acção e que, o que há, é uma adesão, por vezes, e uma condescendência, noutras vezes, perante a Igreja Católica que nunca substituirá a soberania do povo face àquilo em que acredita e face àquilo que pratica. A frase muito repetida "cada um é como cada qual" define muito bem a indefinição dos portugueses face à religião proposta.

quinta-feira, 28 de março de 2019

Desculpa? Não percebi bem...



Estou à espera de um pedido de desculpas por parte dos portugueses em relação a mim. Antes disso não há D. Sebastião para ninguém. Nem Quinto Império, nem coisíssima nenhuma. E esse pedido de desculpas, já que gostam tanto de burocracia, parecem os indianos pós império inglês com a mania dos papéis, tem de vir devidamente descriminado. Não é pedir desculpas para o ar. É dizer porquê. Uma lágrima ou outra também é bem-vinda. Portam-se abaixo de cão e depois querem festinhas? Podem começar. Estou à espera.

O Cavalo Lusitano



Àquele que tinha os olhos entre o verde, o cinzento e o azul, tal qual o mar, em seus humores, e que tinha com as suas mãos, construído uma porta no meio da floresta, por onde passava, entrava e saía sempre que queria, de um domínio invisível para o outro (todos os domínios são invisíveis), encontrei-o certa manhã. Tinha regressado ao labor. Daquele que nos leva o corpo todo e nos obriga a um certo silêncio e donde surge a expressão mais viva do mundo, que é quando a ele se acrescenta o nosso próprio mundo interior. Pareceu-me que tinha regressado dos mortos, coisa impossível porque nunca esteve morto. Era daqueles que se perpetuavam por serem originários de um certo planeta, invisível, claro, onde a criação jorra sem parar. Tinha o corpo forte, suado, as olheiras de quem passou a noite toda no labor mais alto de que pode ser dado aos humanos.
Já vos disse que a presença se pega aos lugares onde estamos? Habitualmente diz-me que fulano de tal deixou uma marca. Normalmente é uma marca visível. Um lenço esquecido, uma moldura virada em determinada direcção. Mas não é a isso que me refiro. É à presença extensiva. As paredes ecoam as palavras de quem esteve junto delas por muito mais tempo do que se imagina. E isto é apenas o mais baixinho. Até porque é um som audível. Refiro-me à presença que enche os espaços que nos parecem vazios mas que pode ser vista, ouvida, sentida e entendida. Ele era desse tipo. Saía mas tudo ficava com as suas mãos a tocar os objectos, as paredes até ao telhado onde se via o seu olhar de águia sobre a paisagem. O lema desse tipo de gente é a liberdade. Porque só com ela conseguem e podem construir uma porta numa floresta que separa domínios invisíveis. Digo isto com uma alegria tremenda. Enche-me o coração. Dalila Pereira da Costa que, para além de mística, dava um pezinho de dança noutros reinos ainda maiores, escreveu uma vez, por causa do cantar dos pássaros, que estes cantavam a alegria do mundo e que o fundo do mundo era a alegria. Evidentemente que foi por senti-la , a alegria, assim tão dentro dela, que pôde dar um pezinho de dança noutros reinos que ficam além e aquém da mística. Os místicos ficam demasiado presos ao que vêem e ao que ouvem. Ficam ali parados e estáticos e até deixam de ouvir os pássaros porque este mundo se eclipsa quando estão assim. Mas quando escreveu estas palavras num livro qualquer (consultem que estou com preguiça de ir à procura) vi logo um vestido de baile todo debruado com jóias e via-a grande e esgotada de dançar, como se tivesse sido esse o seu labor. Podem dizer que isto é só literatura. Quem fala assim pensa sempre que a literatura é uma grande mentira. Mas não é. Os olhos dele têm mesmo essa cor, e nesse dia vi que tinha resolvido atravessar a porta só porque lhe apeteceu. Este só porque lhe apeteceu até faz impressão à vista nos dias d'hoje. As pessoas sabem lá o que é isso, o "apetecimento". O apetecimento não tem nada a ver com o "querer" nem com o "dever". Tem lá o bichinho do desejo que é coisa que a vontade desconhece por ser totalitária e o dever ainda menos por ser coisa democrática. O "apetecimento" é aristocrático, muito diferente. E lá estava ele assim, cansado, esgotado, grande, suado só porque lhe apeteceu acrescentar "algo" ao que já havia. E pelo caminho ainda viajou para um tempo recuado onde também o contemplei a contemplar esse tempo que o contemplava a ele. Penso que isto é demasiada liberdade para aquilo a que estão habituados. Sei bem que andam sempre encavalitados ou no cavalo do querer ou no do dever. E o cavalo nem conta. No apetecimento o cavalo conta. Porque também ao cavalo apetece... O cavalo é livre, óbvio. O cavalo lusitano é o cavalo de sela mais antigo do mundo. O primeiro a entrar em sintonia com o cavaleiro. Os outros vieram depois. Por isso é que são dois: o do querer e o do dever e significam a dualidade. O primeiro é único. Apeteceu-lhe. E sem ele não há arte de bem cavalgar a toda a sela.

Único

https://youtu.be/xy8Zk9j_qqE



Terra, sonho, corpo, índio
Sensual, cobra, pedra preciosa
Fundo, terra, corpo, esguio,
Força, ritmo, memória, índio
Voz, água, fonte
Sensual, rolando, pedra
Penas, dança, doçura
Brilho, corpo, suor
Ombros rectos, pernas
Olhos fundos
Único, índio, todo
Voz estendida no horizonte
Todo vivo, chama, jóia
Palavra, olho, tudo num
Corpo dado, exposto
Dom, rebelde, graça
Amor, doçura, música
Sensual, nú, nosso
Único, semente, sémen
Homem, mulher, força
Único, tudo num
Choque, penas, aves,
Índio, graça, luz
Som, pedra, mato
Água, voz, cascata
Transparente, mistério
Tudo num, dor, amor,
Visão, arte, sensual
Nú, verde, negro
Branco jóia, pele
Suor, tudo num
Único
Que
Amo
Todo
Princípio
Fim
Grande
Mágico
Explosivo
Amo
Tudo
Nele


Em vez disso


Estive mesmo, mesmo para escrever um poema mas em vez disso fui fazer um arranjo de flores porque só onde não há tempo nem espaço o arranjo de flores é igual à poesia. Isto das flores deve-se ao ovo. O ovo que contém a gema e a clara e no qual as crianças desenham cabeças sorridentes pela Páscoa. Quando fui às flores tropecei num coelho que por ali estava e lembrei-me que era Primavera. Depois, no jardim, lembraram-me dessa história do ovo. O caminho de volta serve sempre para juntar as coisas na nossa cabeça. E pensei, a sério que pensei escrever um poema. Um poema que abanasse o gnósticos que herdaram os defeitos todos dos gregos e dos romanos depois do que ouvi no jardim. Mas não quis. Não vale a pena falar do paraíso e do quanto de infernal há para além da cerca que o cerca com caracóis, lentos e babados a trepar por ela. Antes fazer um arranjo de flores do que me chatear com os ordinários dos gnósticos que apregoam raminhos de violeta, com os pés descalços numa eterna pobreza que se sobrealimenta a si própria. Depois do que ouvi, da cabeça desenhada por crianças no ovo, peguei nas margaridas, cor de tijolo e amarelo torrado e cortei-lhes as pontas dos caules para poderem beber água fresca, tirei-lhes as folhas de baixo para não ficarem a nadar em água e coloquei-as numa jarra vertical. As pontas dos caules são cortadas quando estão secas ganhando uma nova raíz se misturadas com terra e as folhas não devem ficar inundadas em lágrimas. Mas isto é uma linguagem inacessível ao gnosticismo. Os gnósticos detestam flores. E adoram ser venerados em vez delas. São incapazes de perceber quando uma raiz está seca. São incapazes de as fazer rejuvenescer. Não admira que estejam mal. E maldispostos também. O arranjo ficou lindo.