quinta-feira, 28 de março de 2019

O Cavalo Lusitano



Àquele que tinha os olhos entre o verde, o cinzento e o azul, tal qual o mar, em seus humores, e que tinha com as suas mãos, construído uma porta no meio da floresta, por onde passava, entrava e saía sempre que queria, de um domínio invisível para o outro (todos os domínios são invisíveis), encontrei-o certa manhã. Tinha regressado ao labor. Daquele que nos leva o corpo todo e nos obriga a um certo silêncio e donde surge a expressão mais viva do mundo, que é quando a ele se acrescenta o nosso próprio mundo interior. Pareceu-me que tinha regressado dos mortos, coisa impossível porque nunca esteve morto. Era daqueles que se perpetuavam por serem originários de um certo planeta, invisível, claro, onde a criação jorra sem parar. Tinha o corpo forte, suado, as olheiras de quem passou a noite toda no labor mais alto de que pode ser dado aos humanos.
Já vos disse que a presença se pega aos lugares onde estamos? Habitualmente diz-me que fulano de tal deixou uma marca. Normalmente é uma marca visível. Um lenço esquecido, uma moldura virada em determinada direcção. Mas não é a isso que me refiro. É à presença extensiva. As paredes ecoam as palavras de quem esteve junto delas por muito mais tempo do que se imagina. E isto é apenas o mais baixinho. Até porque é um som audível. Refiro-me à presença que enche os espaços que nos parecem vazios mas que pode ser vista, ouvida, sentida e entendida. Ele era desse tipo. Saía mas tudo ficava com as suas mãos a tocar os objectos, as paredes até ao telhado onde se via o seu olhar de águia sobre a paisagem. O lema desse tipo de gente é a liberdade. Porque só com ela conseguem e podem construir uma porta numa floresta que separa domínios invisíveis. Digo isto com uma alegria tremenda. Enche-me o coração. Dalila Pereira da Costa que, para além de mística, dava um pezinho de dança noutros reinos ainda maiores, escreveu uma vez, por causa do cantar dos pássaros, que estes cantavam a alegria do mundo e que o fundo do mundo era a alegria. Evidentemente que foi por senti-la , a alegria, assim tão dentro dela, que pôde dar um pezinho de dança noutros reinos que ficam além e aquém da mística. Os místicos ficam demasiado presos ao que vêem e ao que ouvem. Ficam ali parados e estáticos e até deixam de ouvir os pássaros porque este mundo se eclipsa quando estão assim. Mas quando escreveu estas palavras num livro qualquer (consultem que estou com preguiça de ir à procura) vi logo um vestido de baile todo debruado com jóias e via-a grande e esgotada de dançar, como se tivesse sido esse o seu labor. Podem dizer que isto é só literatura. Quem fala assim pensa sempre que a literatura é uma grande mentira. Mas não é. Os olhos dele têm mesmo essa cor, e nesse dia vi que tinha resolvido atravessar a porta só porque lhe apeteceu. Este só porque lhe apeteceu até faz impressão à vista nos dias d'hoje. As pessoas sabem lá o que é isso, o "apetecimento". O apetecimento não tem nada a ver com o "querer" nem com o "dever". Tem lá o bichinho do desejo que é coisa que a vontade desconhece por ser totalitária e o dever ainda menos por ser coisa democrática. O "apetecimento" é aristocrático, muito diferente. E lá estava ele assim, cansado, esgotado, grande, suado só porque lhe apeteceu acrescentar "algo" ao que já havia. E pelo caminho ainda viajou para um tempo recuado onde também o contemplei a contemplar esse tempo que o contemplava a ele. Penso que isto é demasiada liberdade para aquilo a que estão habituados. Sei bem que andam sempre encavalitados ou no cavalo do querer ou no do dever. E o cavalo nem conta. No apetecimento o cavalo conta. Porque também ao cavalo apetece... O cavalo é livre, óbvio. O cavalo lusitano é o cavalo de sela mais antigo do mundo. O primeiro a entrar em sintonia com o cavaleiro. Os outros vieram depois. Por isso é que são dois: o do querer e o do dever e significam a dualidade. O primeiro é único. Apeteceu-lhe. E sem ele não há arte de bem cavalgar a toda a sela.

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