terça-feira, 31 de dezembro de 2019
Paisagem
Todo este mar, esta planície
renovados pelas esferas
encontram em mim
o meu mar, a minha planície
olham-me por dentro,
unem as nossas raízes
evocam as árvores que somos.
Paisagens sempre nossas,
pintadas pela vida fora
sem que delas tivéssemos sabido,
são ovais, mar, vales e colinas,
e, por dentro, amanheceres livres,
portais das antigas vozes,
pomares escondendo ouro,
azuis de navegar por entre tons
de uma melodia julgada perdida.
Não são sentimento, nem escolha
são o nosso corpo devolvido à grandeza
às sombras que nunca pensámos afastar
ao dia que fazemos acontecer.
(Cynthia Guimarães Taveira)
segunda-feira, 30 de dezembro de 2019
O Teosofismo
Havia de ser bonito uma Sinarquia de teósofos a mandar no planeta. Acabava tudo ao murro! Ainda era pior do que esta democracia cheia de fissuras por onde entra tudo. O artificialismo teosófico do séc. XIX, produto de um orientalismo, (já de si distorcido) transtornado pelo espiritismo e produto, também, da sede de poder, dá-nos a ideia das belas raízes que têm. Aliás é vê-los desde esse século até hoje, a reclamar "verdadeiros patrimónios" e aos coices com todos os que queiram o território teosófico. Houve quem saísse de lá a dizer que eram todos alucinados (ver "O Teosofismo" de René Guénon), ou quem de lá saísse e fosse formar escola para bem longe (ver Rudolf Steiner). As Sinarquias quando não são suspeitas são pouco duradouras. Imaginar uma Anarquia na qual o Homem é dono de si, é conseguir conceber a Liberdade. O problema da Teosofia é precisar sempre de "pais" e "mães", quem quer que sejam (até podem ser aldrabões encartados), para venerarem, quando a única coisa que há para venerar é Deus e a Sua Obra. A quantidade de mestres do teosofismo que existem hoje é proporcional ao cataclismo social em que o planeta vai mergulhando cada vez mais. E ainda vêm dar lições sobre o "quão vantajosa é a Sinarquia", quando já se viu que o conhecimento, hoje, pode ser qualquer coisa: desde ter o monopólio da informação, empresarial, do poder, das armas. O conhecimento nunca foi sinónimo de Poder como nos fazem crer os Sinárquicos. O conhecimento é a aproximação à Libertação, o que é bem diferente... o que há hoje é apenas poder indiscriminado, económico, político, social. As mentes retorcidas imaginam sempre o poder, nunca a liberdade. Isto é típico de pessoas que veneram pessoas. Uma idolatria antropomórfica. A confusão que geram nas pessoas é por demais. E têm e terão cada vez mais sucesso porque é nesse tipo de idolatria antropomórfica que está a raiz das ditaduras. Não é em meia dúzia de berros que alguém possa dar contra a ignorância, a tirania ou o fanatismo. O teósofos correm o risco de nem sequer saberem ler. E querem uma bela Sinarquia de gente que treslê?
O vandalismo
https://www.publico.pt/2019/12/29/local/noticia/escultura-pedro-cabrita-reis-vandalizada-leca-palmeira-1898754
Há uns meses três das minhas pinturas foram alvo de, mais do que vandaliamo, de destruição. Passou-se em Setembro. Uma mãe de filhos pegou numa pintura minha e cortou-a em pedaços e dois outros, pais de filhos, pegaram em duas pinturas minhas e colocaram-nas no lixo. Tinham sido ofertas. Nunca lhes fiz mal nenhum. Mas o ódio é o ódio e nada há fazer quando assim é. Agora vejo esta notícia. Parece uma resposta barroca. Não gosto de vandalismo. Mas também não gosto de mau gosto. Nem de vandalismo sobre a paisagem e, pelos vistos, cara. Nesta história nada se aproveita. Nem a pseudo-arte, nem o vandalismo, nem o preço da bodega. Estão bem uns para os outros. Felizmente consegui salvar duas das três pinturas. É a única coisa que se aproveita. Na minha história, claro.
Os novos "Santos" indignados
As mães de todos nós e os especialistas em política/futebol que não hesitam em estar quatro horas ou mais a falar-nos do seu "valor", brindaram-me com a indignação depois do texto "galos e galinhas". Existe a indignação "choque" muito apta à espécie galinácea, até pelo nome e existe a outra, lenta, severa, difusa e não menos implacável que é a da verborreia alimentada por quatro horas ou mais. O coro de protestos foi elaborado por "Santos" tolerantes, a pasta amorfa do "amor" (com letra muito pequenina), falando nas virtudes dos galos e das galinhas, tendo por trás o "amor universal" espalhado a quatro ventos como se o tivessem para dar e vender. Não há coisa mais enjoativa do que um santo fabricado nas redes sociais. Os cara-de-livro que se estão Absolutamente nas Tintas para os Outros, em vez de se indignarem com a Total falta de curiosidade dos galos e das galinhas, só pensam nos ovos do devir que porventura irão gerar e donde aparecerão mais galos e galinhas e nada mais. Mas aqui por estas bandas, que são outras e com outra linguagem, pouco santificada pelo neo-espiritualismo requentado, a coisa teve efeito. Depois da minha indignação, dois galinhos, muito bonitos e diferentes, despertaram e perceberam a mensagem. Assim, alteraram o comportamento. Deixaram as galinhas em casa e vieram cumprir o seu dever de gratidão e aprendizagem. Foi pena a ausência das galinhas, mas não se pode ter tudo... quanto aos "santos" indignados, aproveitaram logo a ocasião do texto para exibir as suas penas tolerantes de maneira a inflamarem mais público de admiração e quisá provocarem um "êxtase colectivo" (como vi escrito num jornal local a propósito da Passagem de Ano organizada pela autarquia), à boa maneira das massas nascidas da barriga da propaganda. A minha gratidão nunca irá para eles mas sim para os dois galos que deixaram de o ser quando se aperceberam do que andavam a fazer e ainda para quem um dia berrou muito comigo por saber que só assim se faria ouvir.
domingo, 29 de dezembro de 2019
Não digo que...
Não digo que não seja o que penso
O que ouço no espelho do universo
Mas se penso e ele brilha e treme
Sorve o que penso sem pensar
O que ouço no espelho do universo
Mas se penso e ele brilha e treme
Sorve o que penso sem pensar
Todas as curvas dele são as minhas
Nada do que pensou pensar é falso
A via láctea é o meu abraço
O som do mar o meu espaço
Nada do que pensou pensar é falso
A via láctea é o meu abraço
O som do mar o meu espaço
E porém, em todas as esquinas
A escuridão das sombras
Vêem o que pensam que penso
Só por me verem ao passar
A escuridão das sombras
Vêem o que pensam que penso
Só por me verem ao passar
Se de boquilha, a escaldante
Se de chinelos, a emigrante
Se a rir, o choro escondido
Se a chorar, uma gargalhada errante
Se de chinelos, a emigrante
Se a rir, o choro escondido
Se a chorar, uma gargalhada errante
Nada do que penso o universo pensa
Só reflecte a luz do meu pensar
Se pensasse o que deveras penso
Não haveria trevas sem estrelas
Só reflecte a luz do meu pensar
Se pensasse o que deveras penso
Não haveria trevas sem estrelas
Por onde não consegue pensar
(Cynthia Guimarães Taveira)
sábado, 28 de dezembro de 2019
Galos e galinhas
O mundo está um deserto invadido por galos e galinhas. Os galos são os homens que cantam de galo e estragam as conversas. As galinhas, por sua vez, são intensas em qualquer convívio. As estuporadas, no meio de uma conversa sobre filmes, livros ou o que seja que ainda haja de interessante no mundo, começam, como quem não quer a coisa, a falar da "educação" e da "escola" e num abrir e fechar de olhos desbobinam a repisada conversa na qual aparece sempre a vírgula "os meus filhos", e cujo discurso subreptício é sempre o mesmíssimo: "sou uma grande merda intelectual mas sou uma óptima mãe". Não há Natal nem reunião familiar que não fique estragada com os dois espécimes. Aos galos, falta o intelecto porque senão não se "armavam" em donos da capoeira, qualquer que seja (política ou futebolística - todos gostariam de ser comentadores televisivos destes temas), a elas, ninguém lhes diz que se são "uma grande merda" intelectual, nunca poderão vir a ser as super-mães que se auto-especulam. Quanto muito são mãezinhas... E a verdade é que estragam qualquer conversa, todos eles, transformam tudo num enorme filme de quatro horas visto e revisto e de série B. Quando me dou conta que estou numa capoeira (e não apenas num galinheiro), encolho-me toda. Desvio o olhar, ou fico com ele fixo e com um sorriso estupidamente compreensivo (que se está absolutamente nas tintas), chego a cantar para dentro. Sinto-me como nas aulas do secundário, a contar os minutos para sair dali para fora. Quem me vir com esse sorriso fica já a saber que "quero lá saber" se és tu que "dominas" a situação politico-futebolística, ou se és tu a mãe de todos nós. Sinceramente, há coisas mais interessantes no mundo e mais animais. A paranóia das capoeiras é que não; tenho para mim que elas exercem um estranho fascínio nalguns seres. Fora de qualquer brincadeira, encontrei várias pessoas na vida, e isto é factual, não é ironia nem tem duplo sentido, que quando começam a falar de galinhas e de galos não param. O olhar altera-se, fica entre o hipnotizado e o distante, as palavras saem mais lentamente, arrastadas, como se quisessem permanecer naquele mundo cheio de romance eternamente. Falam das galinhas com uma ternura infinita. Ficam suspensos. Descrevem o galinheiro, a capoeira, os problemas que tiveram com o ataque dos cães ou das raposas, a forma como algumas morreram e de como curaram as feridas das feridas. O Tantum amarelo. Os pensos. A recuperação. Ou o que comem. Como andam. Como estão. Enfim, uma intimidade que nem sequer têm com a família. Um fascínio. Uma mútua sedução. Fico de boca aberta a ver o espectáculo quase libidinoso, dos sentimentos que alguns humanos nutrem pelos galos e galinhas. Depois, vou a uma qualquer reunião familiar. E percebo porquê. É o célebre e antiquíssimo conhecimento por "identificação". Que pode dar para tudo... E para o torto. E estragar conversas que deviam caminhar pelos trilhos do que ainda não sabemos e não por essa identificação patética com os galináceos. Eu prefiro pentear macacos. É mais divertido e mais franco. Às vezes não há pachorra para o subconsciente das gentes.
O mundo está um deserto invadido por galos e galinhas. Os galos são os homens que cantam de galo e estragam as conversas. As galinhas, por sua vez, são intensas em qualquer convívio. As estuporadas, no meio de uma conversa sobre filmes, livros ou o que seja que ainda haja de interessante no mundo, começam, como quem não quer a coisa, a falar da "educação" e da "escola" e num abrir e fechar de olhos desbobinam a repisada conversa na qual aparece sempre a vírgula "os meus filhos", e cujo discurso subreptício é sempre o mesmíssimo: "sou uma grande merda intelectual mas sou uma óptima mãe". Não há Natal nem reunião familiar que não fique estragada com os dois espécimes. Aos galos, falta o intelecto porque senão não se "armavam" em donos da capoeira, qualquer que seja (política ou futebolística - todos gostariam de ser comentadores televisivos destes temas), a elas, ninguém lhes diz que se são "uma grande merda" intelectual, nunca poderão vir a ser as super-mães que se auto-especulam. Quanto muito são mãezinhas... E a verdade é que estragam qualquer conversa, todos eles, transformam tudo num enorme filme de quatro horas visto e revisto e de série B. Quando me dou conta que estou numa capoeira (e não apenas num galinheiro), encolho-me toda. Desvio o olhar, ou fico com ele fixo e com um sorriso estupidamente compreensivo (que se está absolutamente nas tintas), chego a cantar para dentro. Sinto-me como nas aulas do secundário, a contar os minutos para sair dali para fora. Quem me vir com esse sorriso fica já a saber que "quero lá saber" se és tu que "dominas" a situação politico-futebolística, ou se és tu a mãe de todos nós. Sinceramente, há coisas mais interessantes no mundo e mais animais. A paranóia das capoeiras é que não; tenho para mim que elas exercem um estranho fascínio nalguns seres. Fora de qualquer brincadeira, encontrei várias pessoas na vida, e isto é factual, não é ironia nem tem duplo sentido, que quando começam a falar de galinhas e de galos não param. O olhar altera-se, fica entre o hipnotizado e o distante, as palavras saem mais lentamente, arrastadas, como se quisessem permanecer naquele mundo cheio de romance eternamente. Falam das galinhas com uma ternura infinita. Ficam suspensos. Descrevem o galinheiro, a capoeira, os problemas que tiveram com o ataque dos cães ou das raposas, a forma como algumas morreram e de como curaram as feridas das feridas. O Tantum amarelo. Os pensos. A recuperação. Ou o que comem. Como andam. Como estão. Enfim, uma intimidade que nem sequer têm com a família. Um fascínio. Uma mútua sedução. Fico de boca aberta a ver o espectáculo quase libidinoso, dos sentimentos que alguns humanos nutrem pelos galos e galinhas. Depois, vou a uma qualquer reunião familiar. E percebo porquê. É o célebre e antiquíssimo conhecimento por "identificação". Que pode dar para tudo... E para o torto. E estragar conversas que deviam caminhar pelos trilhos do que ainda não sabemos e não por essa identificação patética com os galináceos. Eu prefiro pentear macacos. É mais divertido e mais franco. Às vezes não há pachorra para o subconsciente das gentes.
Palavra
(Desenho de Cynthia Guimarães Taveira)

Em conversa com uma amiga constatámos que não temos profissão e que somos olhadas por algumas pessoas como algo estranho e até desprezível. Ela com o curso de engenharia agrícola que nunca exerceu e eu com o curso de antropologia, ainda menos. Se fossemos a julgar as pessoas pelo currículo acabávamos a rir por sabermos que não é o currículo que faz uma pessoa como uma andorinha não faz a Primavera. Por outro lado, se fossemos escrever tudo o que fizemos, um caderno bem grosso não chegava. No mesmo dia, outra amiga, cujo nome antigo significa "Palavra," pediu-me para voltar a pintar. Está bem, eu pinto. Pinto para ficarem as pinturas por aqui, nas divisões da casa, porque o mundo não me quer, só os amigos. Depois de um ano agarrada aos livros a estudar intensamente, a "Palavra" pede para que regresse aos pincéis e sei que em seguida, os pincéis me hão-de pedir para regressar à palavra. E andamos nisto desde sempre. Não tenho é currículo. Quem não tem currículo não tem nada de nada. Mas tem muito de muitas coisas inclassificáveis. Algumas são visíveis apenas para quem quer ver. Outras são absolutamente invisíveis. Mas que las hay, las hay.


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