quarta-feira, 31 de março de 2021

A Dama da noite



 


A música, a escrita, a pintura, o teatro, como meios para a representação simbólica de imutáveis princípios, requerem o silêncio inicial, caldo primordial onde reinam todos os sons, formas, cores, gestos e palavras. Mas há, pelo meio, e no teatro e na música, isso é bem visível, diversos regressos a esse som primevo. São os chamados silêncios no teatro, pausas na música, a inspiração necessária na leitura quando o ar enche os nossos pulmões e chega a um limite no qual há uma paragem, leve, subtil, onde as palavras seguintes repousam. E, na pintura, nesses intervalos em que o todo subsiste, essa ausência de definição, essa imaterialidade, estende-se por toda a tela sob a forma da calor, mesmo que as cores sejam frias. A pintura é uma obra a quente, não por utilizar o fogo concreto e visível, como o da metalúrgia, mas pela sua existência etérea, invisível mas presente por entre as moléculas dos pigmentos. É sabido, em teatro, que um bom actor é aquele que sabe suspender o tempo no silêncio, aquele que marca a passagem definitiva do teatro ao rito, o que caminha do exterior para o interior, para o arcaísmo da sua arte que é sempre um arcano. É nesse sentido que a arte, para além da elevação natural que produz a quem dela usufrui e só usufrui por identificação, sem essa identificação não há fruição possível, consegue, nessas pausas, tocar o mistério sagrado da própria vida. Essa aproximação ao mistério é sempre uma aproximação à mudez da cor, ao negro profundo, à imensidão de que o cosmos é apenas um símbolo, a toda a luz contida na negritude que o cosmos suaviza em azul profundo, pontuado por estrelas e planetas dessas estrelas. Todo o símbolo é também uma eufemização de um mistério absorvente, uma transição visível, para esse grande silêncio onde elevadas criaturas calam o gesto seguinte. São elevadas porque subsistem nesses intervalos mudos, por entre sons, cores, formas, gestos, palavras, flores da vida, e cuja raiz reside no mais profundo subsolo que é o cosmos. 

segunda-feira, 29 de março de 2021

Comentário ao texto "Os Novos Teratomas: uma análise do paganismo reconstruído à luz do pensamento de René Guénon"

 


Como é que Gilberto Lascariz, um forte opositor das religiões abraâmicas, continua a utilizar termos como Tradição Pagã ou Intuição Gnóstica? Tanto o termo “paganismo” como o “Gnosticismo” foram utilizados pelos cristãos. As paelhas de termos e de conceitos, misturam-se alegremente e quem não está preparado pela leitura atenta da obra de René Guénon (que é um todo e não apenas os livros traduzidos para português), espalha-se ao comprido ao interpretar o texto de Lascariz, “Os Novos Teratomas: uma análise do paganismo reconstruído à luz do pensamento de René Guénon”, apresentado no seu bloque pessoal (http://www.gilbertolascariz.com). No entanto, é bom saber que Lascariz se interessou pela “Crise do Mundo Moderno”, obra de René Guénon. Se ler toda a obra, terá surpresas, sobretudo se largar definitivamente termos como “pagão” ou “gnose” que, nos dias que correm (e já antes dos dias que correm), dão origem a uma enorme confusão, isto se o intuito de Lascariz for mesmo o de alertar para o “politicamente correcto”, para o “multiculturalismo” e para os movimentos das minorias marginais das políticas pós-marxistas. Termos como “paganismo” ou “gnosticismo”, pela confusão que suscitam, são um manjar, não dos deuses, mas dos homens. Para quem é politicamente correcto na sua defesa do multiculturalismo e dos movimentos das minorias marginais das políticas pós-marxistas o termo “paganismo”, serve o multiculturalismo e o termo “gnosticismo” serve o politicamente correcto, vejamos, por exemplo, a ideia cristã segundo a qual há uma transição em qualidade, um melhoramento, uma evolução, do Antigo para o Novo Testamento. Este é o exemplo máximo daquilo a que chamo os “ditadores tolerantes”, uma tolerância que esconde a pior das intolerâncias, a tal agressividade passiva com base na ideia de que houve acesso a mais conhecimento, tão gnóstica… esta ideia. Mas o termo “gnóstico”, provindo do grego, remete para alguém ou para algo capaz de conhecer e daí que dê para tudo. Serve a todos, outra coisa não se espera numa época sem elite. Bem vistas as coisas, qualquer pessoa pode ser capaz de conhecer, mas poucas abandonaram o termo gnóstico, porque quando isso acontece, então sim, temos elite. Poderei dizer que este texto de Lascariz é uma leitura com duas lentes sobrepostas: uma, à luz do pensamento de René Guénon e outra, à luz de termos induzidos pelo cristianismo quando utiliza termos de substituição pelos termos de Guénon. Creio que não são necessárias tantas dioptrias, uma basta. Também a mim já me aconteceu perder uma dioptria. Literalmente. E agora vejo melhor.


terça-feira, 23 de março de 2021

A Saúde Mental


Se os portugueses se sentissem calmos, tranquilos e alegres com a pandemia e o distanciamento social, aí sim, estariam com problemas de saúde mental. A isto chama-se "inversão das coisas". Neste Carnaval sem fim à vista, já ninguém repara neste tipo de informação cujo objectivo é fazer crer que aquilo que é absolutamente normal é uma anormalidade e vice-versa. 









 

sábado, 20 de março de 2021

Os elefantes


Até os mais satisfeitos com o mundo, os que diziam que estávamos muito bem, os que apregoavam que estávamos no bom caminho, os que não duvidavam da evolução para eles bem visível, os que soltavam "yupiiis" pelo avanço civilizacional, com a pandemia, vejo-os agora cabisbaixos, a desencantar a perda de valores do baú para onde tinha sido atirada e arrumada no fundo da cave, a estremecer com as faltas de certezas relativamente ao avanço científico e que legitimavam a superioridade da modernidade, a acordarem com a ressaca das pré e pós vacinas, a virarem a agulha no seu discurso tão optimista quanto falso embora fossem, e disso não há dúvidas, extremamente verdadeiros nas suas crenças (quase religiosas, mas normalmente ateias) num presente melhor do que qualquer outra época devido à entrada por ele adentro de um futuro que se podia contemplar com os próprios olhos e tocar com as próprias mãos. As semelhanças com a segunda metade do século XIX e princípios do século XX, são assustadoramente parecidas até na crença de que a guerra é coisa fácil e até boa e que matou vários milhares de iludidos nas trincheiras havendo quem a deseje por se julgar num filme. Agora, andam às arrrecuas, passo a passo, em câmara lenta para ver se ninguém repara na voltinha do jogo de cintura. Se uma memória de elefante incomoda muita gente, duas memórias de elefante, incomodam muito mais. 
 

quinta-feira, 18 de março de 2021

Rui Rio, ris de quê?

 


O problema de alguns maçons saírem da linha não é um problema dos partidos políticos, é um problema da Maçonaria. O espírito está acima da matéria. Desta feita, não há razão nenhuma para a tal "transparência" (hilariante) que quer publicitar quem é ou não maçon. Antes de prestar contas a um partido, um maçon presta contas a si próprio e à Maçonaria que teoricamente deveria fazer parte dele (prestando contas a si próprio está instantaneamente a prestar contas à organização a que pertence), assim, só mesmo da cabeça de um profano vir querer inverter as coisas e colocar a política (matéria) acima do espírito. O problema da Maçonaria não punir os malfeitores no seu seio é um problema intrínseco à própria sociedade secreta. Relativamente à Opus Dei, o espírito não está presente, nem em semente (virtualidade) nem em crescimento (porque é sempre insustentável como qualquer fanatismo o é) e, por isso, a revelação de quem pertence ou não à Opus Dei, em última instância, torna-se pertinente apenas para a medicina tanto no campo da psiquiatria como no campo da medicina geral (parece que se auto-flagelam) e, em gravidade superior, em último caso, torna-se pertinente a nível jurídico (quando o fanatismo se permite esbarrar com a lei), tudo muito materialista, portanto. Posto isto, Rui, vá estudar. 

A cigana, D. Jekyll e Mr. Hyde


Vi uma fotografia antiga de uma cigana que ainda era miúda no início do século XX. Tinha chegado aos 100 anos. Nessa fotografia, aparecia descalça e suja, rodeada de terra e sabe-se lá o que mais. Ainda há muito poucos anos, os suecos, quando vinham a Portugal e bebiam a nossa água, ficavam mal da barriga e nós, em simultâneo, ao beber a água da torneira marroquina, ficávamos iguais aos suecos, agarrados à barriga. A cada povo, seu sistema imunológico relativamente à água e quem diz à água, diz a outras coisas. Ainda há poucos meses escrevi neste blogue que qualquer dia estávamos iguais ao índios americanos quando os europeus lá chegaram e lhes ofereceram o vírus da gripe, para os corpos deles totalmente desconhecidos, dádiva mortal para o seu sistema imunológico e para a sua robustez física. A cigana durou à custa de uma imunidade natural. Penso que não terá levado qualquer vacina. Isto para dizer que o perfeccionismo científico, em último grau não só é impossível como acaba por ter o efeito exactamente ao contrário daquilo que foi desejado. A medicina, quando peca, peca por excesso. E é o que pode acontecer. O facto de ter sucesso nalgumas doenças não quer dizer que o padrão de doenças infectocontagiosas seja todo igual. Há vírus mais ousados que outros relativamente à mutações e nunca haverá vacinas para todas as mutações. É a mesma coisa do que seguir o encalço de Dr. Jekyll, e não deixar o Mr. Hyde andar à solta e pagar pelos seus próprios erros ou adaptar-se às circunstâncias da vida, esperando que este fique um pouco mais tranquilo com a idade. O Dr. Jekyll, esse irá ser sempre um Dr. Jekyll, convencido que é Deus e que com uma seringa, salva a humanidade inteira quando ao invés, anda a aniquilá-la. Já tinha advertido, logo nos começos da pandemia que qualquer dia e por este andar, não sobreviveremos sozinhos a uma gripe normal. Já faltou mais. A transdisciplinariedade continua a fazer falta: ela demonstra que o equilíbrio é composto por pequenos desequilíbrios. A tentativa de equilibrar à força e de uma só vez origina um grande desequilibro e a reposição do equilíbrio acaba por levar muito tempo e por ser muito mais difícil. Estes princípios adaptam-se até na sociedade ou na política… mas sinceramente, já nem me ralo muito uma vez que ninguém me ouve, nem lê. Resta-me cruzar os braços e ver o barco afundar-se e mandá-los a todos para o raio que os parta o que se torna redundante porque já lá estão.

domingo, 14 de março de 2021

Omisso




 

Já lá vão as horas, os anos e os danos e, se assim não fosse, tudo estaria parado em ruínas, feridas abertas e mesmo sendo belas, lembrariam a distância dos lugares por onde nunca andámos e isso fere. Obriga-nos a imaginar, quando não queremos imaginar nada. Queremos lá estar nesses lugares, sem a memória dessas ruínas. Os domingos e feriados foram eleitos para que o tempo parasse e nesse tempo não houvesse ruínas. Uma espécie de tempo elevado acima da multidão e dos afazeres, mas nunca houve um domingo igual a outro e os feriados, múltiplos e de diferentes formas, são a procissão, sem remédio, das nossas memórias. Horas, anos e danos, partem na sua viagem pelo tempo e com eles, os lânguidos domingos de ângulos de luz e os feriados das memórias distantes que imaginamos. No calendário há, de certeza um dia omisso, desconhecido por excesso de beleza e que os nossos sentidos não podem captar sem que haja horas, anos e danos...