domingo, 20 de dezembro de 2015

Birra




Estou em birra com Portugal

E já não escrevo mais

Sou a birra de Portugal

E dele já nem quero saber

Embirro para não berrar

Porque ao berrar já escrevo

Estou em birra com estes montes

Que são só montes e não os símbolos que podiam ser

Estou em birra com este mar donde não vem barco algum

E donde não se pode sair por ser um bilhete postal para turistas

Estou em birra com este vazio de emigrantes emigrados de si

E estes cataventos de um galo abrasador que canta a qualquer hora

Estou em birra com esses navegantes de quinhentos que se foram e não voltaram

Em birra com a vitória inacabada de um sonho que veio sempre tarde e acabou esquecido

Estou neste comboio que já não anda e que se esquece num cais de um Sodré donde restam malas vazias e atitudes frias

Não escrevo mais para poupar a tinta e o cansaço que se quer grande e sublime sinal de muito trabalho feito investido na lapela para todos verem o quanto somos cansadamente grandes

Estou em dívida com o futuro e nada mais e bem vistas as coisas ele é que me deve todos os sonhos que Portugal teve para si

Não escrevo mais nem nas margens desses rios donde brotam as memórias e os sentidos contemporâneos disfarçados de presente com cheirinho a futurismo que já nem fresco é

Estou em dívida para com as palavras a que me recuso por não ter paciência para que não as leiam, por já não ter paciência para quem não tem paciência para elas.

Não escrevo e em birra vou berrando pelo caminho como uma filha do futuro triste a quem o mais do que futuro que é seu avô não faz as vontades e não lhe oferece pelo Natal um Portugal novo à mão de semear esses impérios loucos de gente feliz.

Estou em plena greve da fome das palavras que já não alimentam ninguém porque se habituaram a guloseima das imagens (que ainda por cima são só imagens das imagens) e enchem a barriga antes de jantar como crianças anafadas e desobedientes tornando a discoteca do seu futuro presente na bola de espelhos onde morrerão incrustadas...

Estou completamente desagradável na minha birra de embirrar com todos vós portuguesinhos baixos de baixas invejas, antes a alta como motor para serem mais do que ela... mas nem isso

Somente esgares e sorrisos falsos e conversas a bichanar como gatos vadios sem casa ou país sem alicerces que não seja a caça ao rato que é sempre o outro.

E depois, e depois? Se o único sistema pelo qual se anseia é o da resolução da vida, da vidinha como se ela fosse uma equação com variáveis do mais liberal ao mais conservador.

E porque não estar assumidamente em birra depois de horas de debates em que todos se debatem contra a teias internacionais e acabam comidos por uma aranha que nem entendem nem chegam a ver...

Ó país que me desgraças e me tornas uma velha embirrenta, falando pelos cantos dessa casa escura, batendo com a cabeça contra as paredes em busca de uma visão diurna onde a praia resplandece, onde o sol agracia o mar e devolve intactas as caravelas das esperanças apesar de todas essas paredes ideologicamente insuportáveis como vírus propagado por gerações onde, do alto de um púlpito, todos resolvem, todos se resolvem, e todos se revolvem nas tensões.

Não escrevo mais para não incomodar, para não vacilar, para não antever de mais o que ninguém quer ver. Somente essa voz de noite, senão a voz da noite, que me sibila ao ouvido, que parimos quatro filhos, como quatro lados de um rectângulo e quatro direcções no espaço e quatro luas para navegar e, ainda assim, do alto de seus púlpitos, ideologicamente correctos, religiosamente perfeitos, anacronicamente assintomáticos porque não há doença, ainda assim, ousam julgar... que a minha birra, o meu ranger de dentes, a minha falta de nobreza e bom tom, tragam, do seu fundo ctónico, de onde nasce o céu, toda esta insatisfação, esta inquietação a que ninguém se atreve, e me diga se é assim ou não que desta forma fomos plantados neste planeta selvagem, e que o pouco que tem, acima da fome e do frio, não vem, desta birra sincrónica com a birra que os deuses têm e não desse anacronismo idiota de quem não faz birra nem embirra por se julgar no paraíso e na eternidade que da birra dos deuses vem.

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