Estou em birra com Portugal
E já não escrevo mais
Sou a birra de Portugal
E dele já nem quero saber
Embirro para não berrar
Porque ao berrar já escrevo
Estou em birra com estes montes
Que são só montes e não os símbolos que podiam ser
Estou em birra com este mar donde não vem barco algum
E donde não se pode sair por ser um bilhete postal para
turistas
Estou em birra com este vazio de emigrantes emigrados de si
E estes cataventos de um galo abrasador que canta a qualquer
hora
Estou em birra com esses navegantes de quinhentos que se
foram e não voltaram
Em birra com a vitória inacabada de um sonho que veio sempre
tarde e acabou esquecido
Estou neste comboio que já não anda e que se esquece num
cais de um Sodré donde restam malas vazias e atitudes frias
Não escrevo mais para poupar a tinta e o cansaço que se quer
grande e sublime sinal de muito trabalho feito investido na lapela para todos
verem o quanto somos cansadamente grandes
Estou em dívida com o futuro e nada mais e bem vistas as
coisas ele é que me deve todos os sonhos que Portugal teve para si
Não escrevo mais nem nas margens desses rios donde brotam as
memórias e os sentidos contemporâneos disfarçados de presente com cheirinho a
futurismo que já nem fresco é
Estou em dívida para com as palavras a que me recuso por não
ter paciência para que não as leiam, por já não ter paciência para quem não tem
paciência para elas.
Não escrevo e em birra vou berrando pelo caminho como uma
filha do futuro triste a quem o mais do que futuro que é seu avô não faz as
vontades e não lhe oferece pelo Natal um Portugal novo à mão de semear esses
impérios loucos de gente feliz.
Estou em plena greve da fome das palavras que já não
alimentam ninguém porque se habituaram a guloseima das imagens (que ainda por
cima são só imagens das imagens) e enchem a barriga antes de jantar como
crianças anafadas e desobedientes tornando a discoteca do seu futuro presente
na bola de espelhos onde morrerão incrustadas...
Estou completamente desagradável na minha birra de embirrar
com todos vós portuguesinhos baixos de baixas invejas, antes a alta como motor
para serem mais do que ela... mas nem isso
Somente esgares e sorrisos falsos e conversas a bichanar
como gatos vadios sem casa ou país sem alicerces que não seja a caça ao rato
que é sempre o outro.
E depois, e depois? Se o único sistema pelo qual se anseia é
o da resolução da vida, da vidinha como se ela fosse uma equação com variáveis
do mais liberal ao mais conservador.
E porque não estar assumidamente em birra depois de horas de
debates em que todos se debatem contra a teias internacionais e acabam
comidos por uma aranha que nem entendem nem chegam a ver...
Ó país que me desgraças e me tornas uma velha embirrenta,
falando pelos cantos dessa casa escura, batendo com a cabeça contra as paredes
em busca de uma visão diurna onde a praia resplandece, onde o sol agracia o
mar e devolve intactas as caravelas das esperanças apesar de todas essas
paredes ideologicamente insuportáveis como vírus propagado por gerações onde, do alto de um púlpito, todos resolvem, todos se resolvem, e todos se revolvem
nas tensões.
Não escrevo mais para não incomodar, para não vacilar, para
não antever de mais o que ninguém quer ver. Somente essa voz de noite, senão a
voz da noite, que me sibila ao ouvido, que parimos quatro filhos, como quatro
lados de um rectângulo e quatro direcções no espaço e quatro luas para navegar
e, ainda assim, do alto de seus púlpitos, ideologicamente correctos,
religiosamente perfeitos, anacronicamente assintomáticos porque não há doença,
ainda assim, ousam julgar... que a minha birra, o meu ranger de dentes, a minha
falta de nobreza e bom tom, tragam, do seu fundo ctónico, de onde nasce o céu,
toda esta insatisfação, esta inquietação a que ninguém se atreve, e me diga se
é assim ou não que desta forma fomos plantados neste planeta selvagem, e que o
pouco que tem, acima da fome e do frio, não vem, desta birra sincrónica com a
birra que os deuses têm e não desse anacronismo idiota de quem não faz birra
nem embirra por se julgar no paraíso e na eternidade que da birra dos deuses
vem.
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