Se não acreditássemos nos ciclos, tudo estaria irremediavelmente perdido. Não é uma questão de crença, mais precisamente, é uma questão de evidência. Houve duas alturas nas quais, com uma intensidade em demasia, o planeta nos apareceu doutra forma. Uma vez, lendo um livro de Bill Bryson, "Uma breve História de Quase Tudo", logo no início quando a terra nos surge ainda desabitada, com vulcões e fogos e também vendo o filme "A Máquina do Tempo" baseada na obra homónima de H. G. Wells, no qual uma espécie de cenário nos evocou a mesma sensação, a de sermos capazes de um outro olhar, onde o mundo surge como uma terra de ninguém, entregue apenas aos elementos, uma solidão estranha que transmitia um misto de selvageria emergente sem nunca se efectivar nem no plano vegetal, nem no plano animal e muito menos humano pela simples razão de nada disso se encontrar ainda existente nesta terra que consideramos tão nossa e tão conhecida mas que é, afinal, tão pouco nossa e tão desconhecida pela incapacidade que temos de lhe conhecer todas as horas, logo a partir do seu nascimento, como é sugerido nesses dois argumentos da obras citadas e ainda na pintura de Hyeronimus Bosch. A cor de fogo e o negro, os ocres incendiados, o elemento mineral absolutamente vivo e independente de nós, meros espectadores de toda essa época que nos ultrapassa totalmente e que criaram uma espécie de ruptura, como se a nossa existência, meramente humana, fosse absolutamente dispensável nesses cenários na longa vida do planeta e evocando, inevitavelmente, uma solidão esmagadora, não nossa, mas da terra, apenas nossa por osmose. Essa capacidade de osmose com planeta ficou, nesses momentos, ainda mais forte. Na ruptura, no corte abrupto, não só entre duas épocas, mas também entre duas realidades, a nossa recente perspectiva de um planeta nosso entregue à sua própria solidão, caótica como a explosão dos seus vulcões, o céu incendiado de fogo, a terra batida e cor-de-laranja sem vivalma de flores ou árvores, animais ou fósseis e a nossa antiga perspectiva, absolutamente entranhada, de um planeta com seres vivos, nessa ruptura dizíamos, há uma identificação com os princípios da própria vida na terra, porque nela, nessas primeiras horas, nada é totalmente quieto e nada é, em definitivo, gelado. O planeta tem uma espécie de vida solitária onde a linguagem não existe ainda, apenas a vontade dos vendavais de fogo. A vontade é de tal forma soberana que agradecemos a distância que nos separa dessas Eras. Mas, nada nos diz, por causa dos ciclos, que não voltaremos a ela, a um novo princípio, desta feita, obtido pelas mãos humanas entretidas com o jogo de destruir tudo. E nada nos diz que não voltaremos a mergulhar nesses estado caótico primordial só sobrando um ou outro humano como espectador e que só poderá, evidentemente, sofrer com essa vivência. Um planeta que nos vira as costas porque lhe virámos as costas primeiro e cuja vontade renasce em vulcões e labaredas independentemente já da nossa vontade, soberano e indiferente aos humanos que o levaram aos recomeços. Este é o verdadeiro apocalipse porque desnuda, revela um início que pode acontecer a qualquer altura exactamente por causa da questão da vontade, que nos transcende, mesmo que ela tenha vindo devido aos nossos actos. Uma vontade que nos exclui, que não quer saber da nossa existência humana, que nos engole se quiser num mar de labaredas. A soberba contemporânea actual é um impedimento a esta sensação. Nela, o ser humano vence sempre quando os elementos se levantam e ditam o caminho. As hacatombes não passam de desafios e o final é sempre feliz como nos filmes. Numa altura posterior, a mesma visão me assolou, só que produto de mãos humanas que, nessa visão, já eram dispensáveis. Alguns trovões, azulados, ainda num vale, faziam adivinhar um qualquer conflito, mas, no cimo de uma montanha, uma mulher chorava enquanto observava a restante paisagem, incendiada, no céu e na terra. E o choro era baixinho, nada de gritos ou sustos. Apenas um choro que constatava não haver para onde ir. E, perante tal visão, pensamos que qualquer discussão é inútil, pequena e irrelevante. O que nos protege a nós, mas não protege os outros deles mesmos e, por outro lado, o que nos coloca, igualmente, no cimo de uma montanha sem que nada possamos fazer, em osmose com a mulher sentida. Da mesma forma que a mulher não tinha para onde ir, nós sentimos que não podemos proteger os homens de si próprios quando o caos se instala e a amnésia vigora como lei universal. E a principal amnésia talvez seja aquela que nos cala, em nós, a possibilidade de um planeta entregue a si próprio, vulcânico e iminentemente selvagem, onde a sua vontade predomina sem ninguém que possa fazer a ponte entre o céu e a terra, para que a vida, tal como a conhecemos nesta perspectiva actual, possa acontecer, no seu plano vegetal, animal e humano. É que a verdadeira matéria prima é mineral, tal como nos ensina Fulcanelli. E se formos ao início das coisas, é ela que impera, selvagem, sulfurosa, sem mão humana, ainda. Não há nada mais estranho do que imaginar isso e nada mais confrangedor e assustador do que viver isso. A mulher que o diga, no seu choro fino por entre soluços quase inaudíveis...