segunda-feira, 12 de julho de 2021

Andorinhas



   Portugal continua na sua marcha progressista na qual se confunde conforto com tudo o que é bom. Temos um país com cientistas formados cujo trabalho no interior do país é difícil, temos muitos especialistas, funcionários, muitas pessoas interessadas no futebol e nas telenovelas, muita cultura, esta cada vez mais estranha e uma juventude muito parecida com as de outros países, nos seus vícios e preocupações, tão parecida que poderiam ter nascido aqui ou noutro sítio que não faria diferença alguma. Agora com o Covid, ficámos mais a sós. O meu diário íntimo é feito de outras matérias, daquelas que não interessam a ninguém ou, quando interessam, como no filme o "Pai Tirano", é como se dissessem sistematicamente "Ai que engraçado", palavras que, quando o filme foi feito, tinham graça porque não queriam dizer nada e as pessoas riam-se da parvoíce (o mesmo que dizer da pequenez), agora o "Ai que que engraçado" foi substituído pelo "Muito interessante", mas a pequenez é a mesma. De maneira que se torna difícil expôr seja o que for e sentir que algum efeito havemos de ter em alguém. A política continua inclassificável e cada vez pior, as desigualdades prosseguem no seu passo regular de há centenas de anos e ainda bem que tenho três ninhos de andorinha todos juntos nas paredes exteriores da casa, como um T4 para andorinhas, onde três casais delas resolveram viver este Verão. Entretenho-me a vê-las e a ver a sua persistência, desde a construção dos ninhos - nunca tinha visto três ninhos de andorinhas colados uns aos outros - até à forma como dançam em redor deles para alimentar as crias. O sentimento mais comum, ao longo do dia, é o da ausência de tudo e apenas as andorinhas parecem fazer algum sentido. E, está bem, também as plantas da varanda que me parecem ter nascido um pouco loucas, à semelhança das pessoas, flores gigantescas que nascem de repente e ficam espetadas como bandarilhas na diagonal, umas roseiras indecisas relativamente ao seu estado, ora recusando-se a dar rosas, ora deixando-as brotar sem mais nem menos, sem sintonia nenhuma com as do jardim. Já olhei para a a varanda e me perguntei se não estaria ali a humanidade inteira, concentrada em três ou quatro metros, ora espevitada, ora murcha, ora colorida, ora resistente, ora desistente. Lá as vou regando e afasto os pensamentos sobre a humanidade: regar a humanidade seria responsabilidade a mais, mas, secretamente, continuo a pensar que é muito provável que ela esteja na minha varanda, clamando por água e adubo, zangando-se ou florescendo. A vantagem de escrever é a de que podemos lembrarmo-nos de tudo e tudo fica bem num texto, basta compô-lo minimamente bem e as coisas até se articulam umas nas outras. Por vezes, até as mais improváveis, como o facto de poder ter a humanidade inteira numa varanda. Posto isto, ao país, continua a não existir um objectivo que vá além do que fazer com o dinheiro europeu e a grandeza tem de ficar nas entrelinhas porque se não estiver lá, então, estamos para aqui a fazer coisa nenhuma a não ser gastar o dinheiro da Europa. Essa grandeza tem de estar verdadeiramente nas entrelinhas, dissimulada, um pouco como aquelas pessoas que dizem não acreditar em Deus e a quem é dito, em jeito de reposta: "Mas Deus acredita em ti". Penso que o mesmo se passa com Portugal que já não acredita grande coisa nos planos divinos para ele, mas os planos divinos acreditam nele e escondem-se por entre as linhas da pequenez que constituí a turba lusitana que se dirige em massa para onde é mandada, seja futebol, novelas, Big Brothers ou partidos políticos. Por vezes, dá para ver a grandeza em pequenos gestos, é só uma questão de olhar poético que é sempre mais astuto do que os outros olhares, e, noutras alturas, espreita a vontade divina, que sorri sempre como um anjo, entre frases do texto da História. Valha-nos isso e as andorinhas desassossegadas, Bernardas Soares da nossa alma. O desassossego é a brisa de Elias que passa, ou antes a brisa que passou para Elias. Foi-lhe oferecida. Uma homeopatia da alma: uma pequena porção de desassossego, curou a fúria do profeta que queria ver Deus nas tempestades. Afinal, estava nas entrelinhas e nas andorinhas. Ainda há quem as tenha feitas em barro pintado e brilhante, de vários tamanhos, em bandos, colocadas nas paredes externas das casas, lembrando os ciclos e as estações, para que isso não seja esquecido, mesmo no Inverno quando elas já cá não estão e ficam, assim, nas entrelinhas.

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