“Terceira Figura –
Nela está pintado e representado
um jardim cercado
de sebes onde há vários canteiros.
A meio existe um
velho carvalho oco, ao pé do qual de
um lado há um
roseiral de folhas de ouro e de rosas
brancas e
vermelhas que rodeia o dito carvalho até ao
alto, próximo dos
ramos. E junto ao dito carvalho oco
murmura uma fonte,
clara como prata, que se vai perdendo
na terra; e entre os que a procuram há quatro
cegos que a cavam
e quatro outros que a buscam sem
cavar, estando a
dita fonte diante deles e não podendo
encontrá-la,
excepto um, que a pesa na sua mão.”
Fulcanelli, “Mistério das Catedrais”
INÍCIO
Aqui e ali símbolos invencíveis. Se as memórias são
ficção, ou não, pouco importa. Nasci no jardim dos símbolos. Lá, onde tudo tem
cor e sabor e profundidade. E alma que é uma profundidade mais acima. Lá onde
tudo é o que parece e o que esconde e, mais ainda, o que nunca se alcança na
totalidade. Como é um jardim, a sua aparência é a das flores e heras trepando
ou caindo sobre os muros, árvores com copas altas e baixas, e pequenas cascatas
e lagos que variam de cor conforme o céu que se fixa nos nossos olhos. Há
flores durante todo o ano, e transbordando-o porque cada espécie tem a sua
própria Primavera. As flores são independentes do tempo convencional. E quem
nasce nesse jardim também o é. O jardim contém a marca de todos os tempos em
simultâneo, o Inverno das águas frias em pleno Verão, a amendoeira em flor
quando ainda neva cobrindo o gelo com a sua brancura quente. E o perfume do mar
salgado, tão próximo, é uma promessa de viagem além muros. O portão do jardim
onde nasci tem uma coroa e um dragão moldados em ferro forjado. É um jardim
real e divino porque o dragão é divino. E a coroa, circular, é todo o universo
conhecido, entontecido numa dança de planetas ou jóias, tanto faz. O dragão, com as suas escamas aquáticas, as
suas patas terrestres, as suas asas esvoaçantes no ar e o fogo das suas
palavras muda de elemento subtilmente e anuncia o jardim onde as palavras são
feitas de fogo. Todas elas queimam e sublimam. Nesse jardim nasce-se de uma
semente, sem grande surpresa que assim seja,
só mais tarde se pode vir a nascer de um ovo e isso não se espera que
aconteça. As aves são flores que se libertaram. Por vezes, num caminho de
pedras, por entre os galos e as galinhas que são aves que não estão muito
interessadas em voar, por entre pedaços de flores de papel que alguém se
lembrou de fazer, por entre narcisos que olham pela primeira vez para nós, lá
ao fundo, naqueles dias escuros com nuvens cinzentas, com laivos de ouro,
copiando o céu nos dias que acabam com o arco-íris, suspenso no céu, com as
cores das flores do jardim e, nessas alturas, o jardim do céu e o jardim da
terra são um só. Nasci no meio da terra a ver as flores mais velhas a crescer e
a falarem com palavras de fogo. As primeiras canções de embalar que ouvi
contavam histórias das estrelas cadentes e dos pirilampos que no jardim, à
noite, eram como elas. E depressa aprendi que o jardim dos símbolos era como o
céu. Tinha as mesmas rotas, as mesmas constelações, os mesmos planetas, as
mesmas histórias, as mesmas valsas, as mesmas músicas, as mesmas ideias, os
mesmos sonhos. Era um jardim sem filosofia porque ela não aparecia fora de nós.
Não aparecia num livro para ler, nem nas palavras escritas por quem tinha
ouvido o filosofo a falar. Aparecia em nós. E eramos nós, os habitantes desse
jardim, que a fazíamos, ou não, acontecer. Em união. Porque todos estávamos
unidos, mesmo quando estávamos longe, mesmo quando ainda não sabíamos que já
nos conhecíamos desde sempre. Porque esse jardim é eterno. E quem nasce nele, é
dele. Vive na sua eternidade. Mesmo que não se lembre dela, nem saiba que
nasceu no jardim dos símbolos. Nada está morto ou morre nele. A criação é
constante, mesmo que não saibamos que estamos a criar, mesmo que a tarde seja
passada a ver as carpas que vivem no tanque, que são todas diferentes umas das
outras, nadando de um lado para o outro, à procura da carpa perfeita, como nós
fazemos com quando as contemplamos. Há sempre alguém a construir um muro ou a
abrir um novo caminho, deitando um muro ao chão. Há sempre alguém que
transporta um saco de terra num carrinho de mão ou regressa nele com um grande
peru, direito e digno, que não balança com o oscilar das rodas, atravessando o
jardim na sua carruagem real, perante a visão alterada dos que por ele passam e
o vêem como um súbito rei, só pela sua pose e pelo seu porte. As noites frias
nunca são completamente frias porque estamos juntos. E as estrelas, mesmo que
não se vejam, são lembradas pelas palavras de fogo que fazem brilhar a água dos
lagos. As tormentas podem vir sob a forma de cascatas e de choro, mas são
sempre cristalinas. Dizem que quem entra no inferno nunca mais ninguém de lá
sai. Mas quem nasce no jardim dos símbolos, sempre lá esteve, mesmo antes de
nascer. Nesse jardim, não se entra. É-se de lá, como se respira o ar, como se
ri, como se grita, como se corre por entre as árvores que estão dentro de nós,
ou se põe uma flor numa jarra porque ela é da cor do nosso humor. É tudo de
repente, nele, até o descanso, é repentino e vem não se sabe muito bem de onde,
talvez porque alguém tenha parado a olhar o profundo vale até à montanha mais
acima, e isso tenha influência em nós, talvez porque algum ganso descanse sobre
uma pata e adormeça a sua cabeça por entre as suas penas, que são as nossas e,
por isso, nós adormecemos também. O tempo é todo de repente, como aqueles
músicos de jazz que nunca sabem muito bem para onde vão, mas vão e vão pelo som
fora, brotando notas como os alimentos da cornucópia da abundância. O orvalho
pela manhã reflecte, de um lado o sol, do outro a nossa face. Confundem-se, não
sabemos muito bem onde começa o sol e onde acabamos nós; nós que somos a gota
de orvalho também. Para não nos perdermos, olhamos na direcção do coração uns
dos outros. Só para termos a certeza e não nos enganarmos na filosofia que
criamos ou nos símbolos que adoptamos naquele momento. Quando não nos apetece
pensar, olhamos para longe, numa direcção estranha, como se estivéssemos a ver
um anjo ou alguém a acenar ao longe, ou talvez olhemos para um ponto indefinido
no espaço onde já não há palavras, nem imagens e fiquemos aí a pairar como uma
gotícula de pó ao sol. E como neste jardim, tudo é criação, só se pode
encontrar este jardim por acaso, no ocaso dos dias normais que findam, onde não
há jardim nem se sente a sua falta. E ninguém sabe onde fica o acaso. É o local
mais misterioso do mundo. E o mais permanente e eterno dele. Está sempre a
nascer, sem parar, como um sol que só se levanta e nunca se põe. Está sempre a
ascender, a abrir-se como uma flor, a desabrochar como uma planta, a eclodir
como um ovo, a voar como um pássaro, a explodir como um sol, a expandir-se como
o universo, a cantar como um cantor, a dançar como um príncipe, a filosofar
como um rei, a palrar como uma criança, a crescer como uma montanha, a escrever
como um poeta, a pintar como um pintor, a correr como um coelho, a jorrar como
a fonte, a bater nas rochas como o mar, a girar como os planetas, a semear como
o camponês, a pescar como o pescador, a contemplar como o sábio… o acaso fica
no mais profundo e secreto lugar do universo onde nada é encoberto e as coisas
são o que parecem, o que escondem e mais ainda, o que nunca se alcança na
totalidade. O jardim é circular, como o céu. Perfeito. Nasci no Jardim Perfeito
dos Símbolos. E só o pássaro pode ir além dele, em direcção ao que não se
alcança na totalidade, como esse perfume do mar, adivinhado do outro lado do
muro, perfume a sal, a vida, à próxima onda que nunca sabemos como vai ser,
jardim do mar, mar do jardim, mar plantado à beira do jardim … … … céu plantado
à beira do mar… … … ovo do mundo … … … ganso … … … cisne … …. … curva … … … na estrada … … … no jardim dos
símbolos perfeitos o silêncio é a voz a sibilar num silêncio maior que, por sua
vez, ecoa num silêncio ainda maior … quanto mais profundamente entramos nele,
mais as palavras parecem fogo, nesse jardim, mais os gestos são ondas do mar onde
alguém se banha, ou descansa, não se sabe bem porquê, talvez porque alguém
tenha parado a olhar o vale estendido…
ou um pássaro novo tenha nascido e tenha vindo pedir alimento, piando
alto, fazendo estremecer o silêncio com o seu piar de fogo e os seus limites de
seda, os desse jardim, balancem na brisa dos profetas sem tempo como o jardim
perfeito dos símbolos onde nasci e nunca morri por causa da curva da cornucópia
infindável, cascata da abundância, alegria do mundo.