terça-feira, 28 de fevereiro de 2023

O JARDIM DOS SÍMBOLOS III

 



O PAVÃO COLORIDO

 

Alguém imitava o pavão no jardim e grasnava como os corvos. O canto do pavão era acompanhado pela dança do cantor que não exibia penas, mas sim flores. Verdes e azuis com laivos dourados. Tinha pegado nas flores e tinha-as pintado para se parecerem com as cores de um pavão. Tinha-as depositado em jarras cilíndricas grandes e negras, o que dava aos arranjos florais uma ideia de brilho na noite como são algumas visões dos místicos, embora ele não soubesse disso nem conhecesse nenhum místico pessoalmente. O pavão, no cimo do tronco da árvore deixava cair o seu manto azul, verde e doirado como se fosse uma noite prometida. Os pavões e os místicos traziam sempre noites prometidas e, se o vento passava, trazendo a ausência de amor, o seu canto e o seu manto eram maiores e mais pesados que o vento e não se desviavam do seu caminho, que era o mesmo que o do universo, onde não há ventos nem vendavais entre os astros, apenas esse desejo erótico que os aproxima e os repele. Pensei que o pavão estava inquieto, mas era o cantor que o imitava. O pavão estava sossegado e revelava a forma do universo em cascata a todos os presentes com a tranquilidade de um deus com histórias suficientes para várias mitologias ou com mitologias suficientes para várias histórias. Se o universo era à discrição, as mitologias também o eram. E nas penas de um pavão podemos ver tudo. A começar pela beleza dos olhos mil, se fechados e, se abertos em leque, dez mil; universo contraindo-se e expandindo-se, olhos fechando-se e abrindo-se, aceitando a noite e o dia, o sonho e o outro sonho que dizem ser a realidade. Íris como nós, ou energias concentradas, ou onde universos paralelos se encontram, ou onde todo o sonho é realidade e toda a realidade um sonho, cauda aberta pela força erótica, grasnar ou canto semelhante ao do corvo quando inicia a grande obra, ou quando o príncipe visita a cidade prometida e entra nos seus jardins, sem saber que é príncipe deles, como o pavão não sabe que é o príncipe da beleza, um e outro, príncipe e pavão, o início da bem aventurada criação. O cantor imitava o grasnar do pavão enquanto segurava o caule de uma flor, em parte verde, em parte azul, e a folha-asa de corvo brilhante ao sol, dourada ao sol, e dizia, ainda sem saber que era príncipe: “A minha infância foi uma mágoa”, grasnava, “… e por isso, deu-se o acaso do Jardim”. A lágrima e a palavra de fogo em ebulição no jardim mais secreto e mais escondido do mundo… que se encontra por acaso, e pelo passado, e sempre para além das mágoas da infância, mais para além ainda das alegrias da infância, ainda mais distante que o nascimento, no centro da própria vida, a eternidade. 


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