O PAVÃO COLORIDO
Alguém imitava o pavão no jardim e grasnava como os
corvos. O canto do pavão era acompanhado pela dança do cantor que não exibia
penas, mas sim flores. Verdes e azuis com laivos dourados. Tinha pegado nas
flores e tinha-as pintado para se parecerem com as cores de um pavão. Tinha-as
depositado em jarras cilíndricas grandes e negras, o que dava aos arranjos
florais uma ideia de brilho na noite como são algumas visões dos místicos,
embora ele não soubesse disso nem conhecesse nenhum místico pessoalmente. O
pavão, no cimo do tronco da árvore deixava cair o seu manto azul, verde e
doirado como se fosse uma noite prometida. Os pavões e os místicos traziam
sempre noites prometidas e, se o vento passava, trazendo a ausência de amor, o
seu canto e o seu manto eram maiores e mais pesados que o vento e não se
desviavam do seu caminho, que era o mesmo que o do universo, onde não há ventos
nem vendavais entre os astros, apenas esse desejo erótico que os aproxima e os
repele. Pensei que o pavão estava inquieto, mas era o cantor que o imitava. O
pavão estava sossegado e revelava a forma do universo em cascata a todos os
presentes com a tranquilidade de um deus com histórias suficientes para várias
mitologias ou com mitologias suficientes para várias histórias. Se o universo
era à discrição, as mitologias também o eram. E nas penas de um pavão podemos
ver tudo. A começar pela beleza dos olhos mil, se fechados e, se abertos em
leque, dez mil; universo contraindo-se e expandindo-se, olhos fechando-se e
abrindo-se, aceitando a noite e o dia, o sonho e o outro sonho que dizem ser a
realidade. Íris como nós, ou energias concentradas, ou onde universos paralelos
se encontram, ou onde todo o sonho é realidade e toda a realidade um sonho,
cauda aberta pela força erótica, grasnar ou canto semelhante ao do corvo quando
inicia a grande obra, ou quando o príncipe visita a cidade prometida e entra
nos seus jardins, sem saber que é príncipe deles, como o pavão não sabe que é o
príncipe da beleza, um e outro, príncipe e pavão, o início da bem aventurada
criação. O cantor imitava o grasnar do pavão enquanto segurava o caule de uma
flor, em parte verde, em parte azul, e a folha-asa de corvo brilhante ao sol,
dourada ao sol, e dizia, ainda sem saber que era príncipe: “A minha infância
foi uma mágoa”, grasnava, “… e por isso, deu-se o acaso do Jardim”. A lágrima e
a palavra de fogo em ebulição no jardim mais secreto e mais escondido do mundo…
que se encontra por acaso, e pelo passado, e sempre para além das mágoas da
infância, mais para além ainda das alegrias da infância, ainda mais distante
que o nascimento, no centro da própria vida, a eternidade.
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