domingo, 26 de fevereiro de 2023

O JARDIM DOS SÍMBOLOS I

 


O JARDIM DOS SÍMBOLOS

 

 

 

 

“Terceira Figura – Nela está pintado e representado

um jardim cercado de sebes onde há vários canteiros.

A meio existe um velho carvalho oco, ao pé do qual de

um lado há um roseiral de folhas de ouro e de rosas

brancas e vermelhas que rodeia o dito carvalho até ao

alto, próximo dos ramos. E junto ao dito carvalho oco

murmura uma fonte, clara como prata, que se vai perdendo

 na terra; e entre os que a procuram há quatro

cegos que a cavam e quatro outros que a buscam sem

cavar, estando a dita fonte diante deles e não podendo

encontrá-la, excepto um, que a pesa na sua mão.” 

 Fulcanelli, “Mistério das Catedrais”

 

 

 

 

 

 

INÍCIO

 

 

Aqui e ali símbolos invencíveis. Se as memórias são ficção, ou não, pouco importa. Nasci no jardim dos símbolos. Lá, onde tudo tem cor e sabor e profundidade. E alma que é uma profundidade mais acima. Lá onde tudo é o que parece e o que esconde e, mais ainda, o que nunca se alcança na totalidade. Como é um jardim, a sua aparência é a das flores e heras trepando ou caindo sobre os muros, árvores com copas altas e baixas, e pequenas cascatas e lagos que variam de cor conforme o céu que se fixa nos nossos olhos. Há flores durante todo o ano, e transbordando-o porque cada espécie tem a sua própria Primavera. As flores são independentes do tempo convencional. E quem nasce nesse jardim também o é. O jardim contém a marca de todos os tempos em simultâneo, o Inverno das águas frias em pleno Verão, a amendoeira em flor quando ainda neva cobrindo o gelo com a sua brancura quente. E o perfume do mar salgado, tão próximo, é uma promessa de viagem além muros. O portão do jardim onde nasci tem uma coroa e um dragão moldados em ferro forjado. É um jardim real e divino porque o dragão é divino. E a coroa, circular, é todo o universo conhecido, entontecido numa dança de planetas ou jóias, tanto faz.  O dragão, com as suas escamas aquáticas, as suas patas terrestres, as suas asas esvoaçantes no ar e o fogo das suas palavras muda de elemento subtilmente e anuncia o jardim onde as palavras são feitas de fogo. Todas elas queimam e sublimam. Nesse jardim nasce-se de uma semente, sem grande surpresa que assim seja,  só mais tarde se pode vir a nascer de um ovo e isso não se espera que aconteça. As aves são flores que se libertaram. Por vezes, num caminho de pedras, por entre os galos e as galinhas que são aves que não estão muito interessadas em voar, por entre pedaços de flores de papel que alguém se lembrou de fazer, por entre narcisos que olham pela primeira vez para nós, lá ao fundo, naqueles dias escuros com nuvens cinzentas, com laivos de ouro, copiando o céu nos dias que acabam com o arco-íris, suspenso no céu, com as cores das flores do jardim e, nessas alturas, o jardim do céu e o jardim da terra são um só. Nasci no meio da terra a ver as flores mais velhas a crescer e a falarem com palavras de fogo. As primeiras canções de embalar que ouvi contavam histórias das estrelas cadentes e dos pirilampos que no jardim, à noite, eram como elas. E depressa aprendi que o jardim dos símbolos era como o céu. Tinha as mesmas rotas, as mesmas constelações, os mesmos planetas, as mesmas histórias, as mesmas valsas, as mesmas músicas, as mesmas ideias, os mesmos sonhos. Era um jardim sem filosofia porque ela não aparecia fora de nós. Não aparecia num livro para ler, nem nas palavras escritas por quem tinha ouvido o filosofo a falar. Aparecia em nós. E eramos nós, os habitantes desse jardim, que a fazíamos, ou não, acontecer. Em união. Porque todos estávamos unidos, mesmo quando estávamos longe, mesmo quando ainda não sabíamos que já nos conhecíamos desde sempre. Porque esse jardim é eterno. E quem nasce nele, é dele. Vive na sua eternidade. Mesmo que não se lembre dela, nem saiba que nasceu no jardim dos símbolos. Nada está morto ou morre nele. A criação é constante, mesmo que não saibamos que estamos a criar, mesmo que a tarde seja passada a ver as carpas que vivem no tanque, que são todas diferentes umas das outras, nadando de um lado para o outro, à procura da carpa perfeita, como nós fazemos com quando as contemplamos. Há sempre alguém a construir um muro ou a abrir um novo caminho, deitando um muro ao chão. Há sempre alguém que transporta um saco de terra num carrinho de mão ou regressa nele com um grande peru, direito e digno, que não balança com o oscilar das rodas, atravessando o jardim na sua carruagem real, perante a visão alterada dos que por ele passam e o vêem como um súbito rei, só pela sua pose e pelo seu porte. As noites frias nunca são completamente frias porque estamos juntos. E as estrelas, mesmo que não se vejam, são lembradas pelas palavras de fogo que fazem brilhar a água dos lagos. As tormentas podem vir sob a forma de cascatas e de choro, mas são sempre cristalinas. Dizem que quem entra no inferno nunca mais ninguém de lá sai. Mas quem nasce no jardim dos símbolos, sempre lá esteve, mesmo antes de nascer. Nesse jardim, não se entra. É-se de lá, como se respira o ar, como se ri, como se grita, como se corre por entre as árvores que estão dentro de nós, ou se põe uma flor numa jarra porque ela é da cor do nosso humor. É tudo de repente, nele, até o descanso, é repentino e vem não se sabe muito bem de onde, talvez porque alguém tenha parado a olhar o profundo vale até à montanha mais acima, e isso tenha influência em nós, talvez porque algum ganso descanse sobre uma pata e adormeça a sua cabeça por entre as suas penas, que são as nossas e, por isso, nós adormecemos também. O tempo é todo de repente, como aqueles músicos de jazz que nunca sabem muito bem para onde vão, mas vão e vão pelo som fora, brotando notas como os alimentos da cornucópia da abundância. O orvalho pela manhã reflecte, de um lado o sol, do outro a nossa face. Confundem-se, não sabemos muito bem onde começa o sol e onde acabamos nós; nós que somos a gota de orvalho também. Para não nos perdermos, olhamos na direcção do coração uns dos outros. Só para termos a certeza e não nos enganarmos na filosofia que criamos ou nos símbolos que adoptamos naquele momento. Quando não nos apetece pensar, olhamos para longe, numa direcção estranha, como se estivéssemos a ver um anjo ou alguém a acenar ao longe, ou talvez olhemos para um ponto indefinido no espaço onde já não há palavras, nem imagens e fiquemos aí a pairar como uma gotícula de pó ao sol. E como neste jardim, tudo é criação, só se pode encontrar este jardim por acaso, no ocaso dos dias normais que findam, onde não há jardim nem se sente a sua falta. E ninguém sabe onde fica o acaso. É o local mais misterioso do mundo. E o mais permanente e eterno dele. Está sempre a nascer, sem parar, como um sol que só se levanta e nunca se põe. Está sempre a ascender, a abrir-se como uma flor, a desabrochar como uma planta, a eclodir como um ovo, a voar como um pássaro, a explodir como um sol, a expandir-se como o universo, a cantar como um cantor, a dançar como um príncipe, a filosofar como um rei, a palrar como uma criança, a crescer como uma montanha, a escrever como um poeta, a pintar como um pintor, a correr como um coelho, a jorrar como a fonte, a bater nas rochas como o mar, a girar como os planetas, a semear como o camponês, a pescar como o pescador, a contemplar como o sábio… o acaso fica no mais profundo e secreto lugar do universo onde nada é encoberto e as coisas são o que parecem, o que escondem e mais ainda, o que nunca se alcança na totalidade. O jardim é circular, como o céu. Perfeito. Nasci no Jardim Perfeito dos Símbolos. E só o pássaro pode ir além dele, em direcção ao que não se alcança na totalidade, como esse perfume do mar, adivinhado do outro lado do muro, perfume a sal, a vida, à próxima onda que nunca sabemos como vai ser, jardim do mar, mar do jardim, mar plantado à beira do jardim … … … céu plantado à beira do mar… … … ovo do mundo … … … ganso … … … cisne … …. …  curva … … … na estrada … … … no jardim dos símbolos perfeitos o silêncio é a voz a sibilar num silêncio maior que, por sua vez, ecoa num silêncio ainda maior … quanto mais profundamente entramos nele, mais as palavras parecem fogo, nesse jardim, mais os gestos são ondas do mar onde alguém se banha, ou descansa, não se sabe bem porquê, talvez porque alguém tenha parado a olhar o vale estendido…  ou um pássaro novo tenha nascido e tenha vindo pedir alimento, piando alto, fazendo estremecer o silêncio com o seu piar de fogo e os seus limites de seda, os desse jardim, balancem na brisa dos profetas sem tempo como o jardim perfeito dos símbolos onde nasci e nunca morri por causa da curva da cornucópia infindável, cascata da abundância, alegria do mundo. 


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