Não me trazem as ondas do mar, o teu sabor. O sal desta vida é demasiado intenso e apaga os perfumes outros que reservas em ti. Longe vão esses caminhos sem fronteiras, sem donos, esse espaço sem fim, essa curva no tempo tão imensamente esvoaçante. Todas as partes do corpo parecem sentir a Saudade. Procuramos novas do nosso amigo que é outro tempo e outra luz. Saudade, sempre com o seu manto longo, arrastando os nossos seres, olhando sempre mais além, sem que consigamos adivinhar-lhe o rosto. Só a sentimos, agitada, tomando-nos, elevando-nos, e largando-nos com suavidade neste mundo frio. A tristeza cai como uma noite imprevista. Somos selos e fomos selados pela Saudade. Não há segredo mais bem guardado e mais exposto do que o de a sentir em volta de nós, respirando, sorrindo, chamando. Se a sentimos viva é diáfana, se a sentimos morrer, é este frio do mundo tomando o seu lugar. Não alcançamos o seu percurso pelas estrelas neste mar de cristalinas rochas. Que lugar é esse, nela, no seu seu seio, bem no centro dela, animando-a para que nos anime e ela animando-nos para que não a esqueçamos. Que lugar este, para além dos limites do mundo agreste e frio, onde nos encanta com o seu mistério feito do mistério de todas as coisas? Que centro de nós atinge, que centro nela nos acolhe? Vem vê-la com o seu longo manto, com os seus cabelos em cascata e segue-a com o olhar em direcção ao futuro que é só dela. Adivinha-lhe os gestos e nos sonhos coloca-lhe uma grinalda de flores e ouro. E nos sonhos dança com ela, pela noite triste e imprevisível, até ser dia. Até ser o Dia. Faz tudo isto enquanto percorres essa noite fria e cala essa viagem e oculta essa dança ainda que o teu coração transborde dela, e seja ferida aberta e que não seja outra coisa. Não durmas, dança e transforma o teu silêncio num brilho no olhar. Por ela, estás desperto.
terça-feira, 19 de setembro de 2023
Por ela
segunda-feira, 18 de setembro de 2023
A lista de supermercado
O povo diz que é ter a cabeça na lua, mas não concordo. É ter a cabeça no sol. Há qualquer coisa de anómalo quando se passeia pelo supermercado com uma lista de compras numa mão e um carrinho para as levar no outro e, em simultâneo, pensar nos mistérios da vida, querer entendê-los, ali mesmo, por entre prateleiras com manteigas e peças de carne penduradas à espera de serem esquartejadas para um jantar qualquer. O pensamento divide-se entre o frigorífico e as estrelas com a mesma compenetração. Ainda muito cedo deu-se uma percepção da estranheza de se estar vivo à mesa de um restaurante e, desde aí, o quotidiano não mais foi comum, perdeu a inocência de ser apenas quotidiano e ganhou tonalidades que lhe são estranhas, como se houvesse uma invasão de extraterrestres que não permitisse mais a vida normal e o diálogo passasse a ser com outras vozes para além da senhora brasileira da caixa que sorri com gentileza e estende o talão escrito com palavras e números como se essa fosse uma proclamação firmemente impressa de uma verdade. Navegamos a olhar o sol e a nossa pele reflecte a terra que nos rodeia. Deixamo-nos embutir pela demanda visionária e pelo sonho e concluímos filosoficamente uma refeição quando contemplamos o pôr-do-sol, o grande acto mágico da natureza. Somos avatares de nós mesmos, como sombras triplas: a que somos, a que o sol projecta nesta areia fina e a outra que a terra faz de nós em direcção ao sol. Triplo eclipse onde algures, num qualquer ponto da geometria descritiva reside um quarto rosto que não vemos e que não se eclipsa. Tens a cabeça no sol, vives na lua e resides na terra.
domingo, 17 de setembro de 2023
Diogo Vaz Pinto
É absolutamente compreensível que haja um sentimento de indignação face ao problema do exercício de aproveitamento que se tem feito tanto com a obra como com a figura de Fernando Pessoa, no entanto, tanto a forma como o faz como as razões que Diogo Vaz Pinto apresenta para essa indignação são, no mínimo, bizarras. Parece o autor ter transbordado após a gota de água que foi a publicação numa revista de mais uns versos do Poeta, tornando-se esse acontecimento em notícia no jornal Observador e, enraivecido, coloca as mãos no teclado, sob o domínio de um espírito juvenil, revolucionário e vingativo e escreve um texto no jornal Sol, em pleno mês de Agosto, numa plena manhã no qual revela a sua fúria, perdendo as estribeiras e confundido tudo, a ver:
A notícia publicada pelo Observador sobre a publicação de um inédito do Poeta supracitado numa revista literária é referida como “espécie de publicidade” a essa mesma revista. Bem, se os jornais portugueses tivessem uma secção dedicada à publicitação gratuita de notícias sobre revistas literárias isso queria dizer que haveria potenciais leitores de revistas literárias e potenciais leitores de livros. Que todos os males fossem estes.
Em seguida, Diogo Vaz Pinto cita Cesariny, o mesmo que escreveu “Tanto Pessoa já enjoa” e que, embora este se queixe da falta de espaço para a diversidade, sempre teve o seu lugar assegurado no salão do meio literário entrando pela porta, tantas vezes facilitista, do surrealismo. Parece-nos sim, que esse autor sofria de uma certa inquietação própria dos talentosos inseguros. Indica o escrevinhador do artigo, após este breve apontamento sobre a indignação de Cesariny, e esta parte é muito importante como veremos, que Zenith aponta para o facto de estes versos de Pessoa em causa, na sua forma, corresponderem a um determinado formato poético vindo da Pérsia não sem antes ser esta pequena composição de Fernando Pessoa apelidada pelo cronista de Verão como “breve e banal”, adiantando que o Observador nem reproduz nem se pronuncia sobre os versos em questão talvez para não estragar a surpresa comparando esta atitude às séries de streaming que alimentam espectadores passivos. Talvez tenha alguma razão, mas não parece ser grave a existência de uma notícia sobre uma publicação de uma Revista. E eis, então, que o especialista em poesia lança uma lança.... em África quando nos remete para um poema (?) escrito pelo mexicano Fabio Morábito e que segundo o seu juízo literário bem poderia passar como tendo sido escrito por Pessoa através de um dos seus heterónimos e passamos a citar o brilhante “poema”: “Pedem-me sempre poemas inéditos./ Ninguém lê poesia/ mas pedem-me poemas inéditos./ Para a revista, o jornal, a performance,/o encontro, a homenagem, o sarau:/ um poema, por favor, mas inédito./Como se soubessem de cor o que escrevi./ Como se estivessem cheios da minha poesia/ e precisassem agora de algo inédito./ A poesia é sempre inédita, disse o poeta no poema,/ mas eles ignoram-no porque não lêem poesia,/ só pedem poemas inéditos.” Gostaríamos de afirmar que este poema de Fabio Morábito é prosa e não poesia e nem sequer tem grande qualidade. E gostaríamos de perguntar a Diogo Vaz Pinto qual seria o heterónimo de Pessoa de sua escolha para o contemplar com esta prosa que de verso só tem a forma? Não encontramos nenhum, nem sequer aquele que à primeira vista seria o mais adaptado: Álvaro de Campos, fervente em pouca água, mas que nos leva na sua vertigem em espirais até ao céu. Poder-se-ia dar o caso de encontrar tal mexicano por entre os semi-heterónimos e figuras criadas pelo poeta aos quais se pudessem atribuir estas linhas, mas o mesmo se passaria com as quadras de Aleixo ou alguns versos de Sophia de Mello Breyner. A Grandeza de Pessoa é evidente e variada. E se “A poesia é sempre inédita”, não percebemos a indignação à volta destas linhas de Pessoa. Perante os versos mexicanos, os versos portugueses do nosso grande poeta, são, segundo Diogo Vaz Pinto, uma desilusão e prossegue numa sumptuosa descrição do comportamento que se tem face aos grandes mestres da poesia para que o efeito teatral de apresentação de uma nova “tortura diária do lugar-comum (...) nos provoque agora a sensação de uma epifania qualquer”. Não contente com isso, ainda nos fala da poesia de Pessoa como utilizando recorrentemente a organização de “um percurso recomplicado por meio de uma série de abstracções, produzindo um efeito de profundidade e uma espécie de melodia e sageza no tom, sem chegar a dizer nada, apenas glosando um mote há muito empalhado... " sendo isto "...um dos efeitos retóricos mais comuns na mais estafada das poesias. O problema só se põe devido à monumentalização da Obra e da própria figura de Fernando Pessoa”. É, natural, dizemos, nós, pois a obra de Fernando Pessoa é monumental e a sua figura, impõe respeito: sacrificar a vida pela obra é, de facto, obra! Quanto à técnica que o cronista tenta descrever de forma rebuscada e que se resumia apenas em psíquico-labiríntica (muito à imagem do próprio cérebro, aliás) e ao facto de referir a sua banalidade e a sua falta de conteúdo, diremos apenas que é a opinião do cronista, em dias de hoje, diluída em tantas outras neste imenso turbilhão de colecções de 15 minutos de opinião.
Indigna-se também, e une-se a Alexandre O'Neill nessa indignação, com o culto ao Poeta, mais prolixo e duradouro do que o próprio acto de ler os seus poemas, cita-o nessa união, mas cujo tom é mais o de um lamento sobre esse culto do que propriamente a crítica a Pessoa que é inexistente nessa citação. Que se diferencie, por favor, o culto ao poeta da qualidade da poesia, algo que Diogo Vaz Pinto não faz, utilizando o culto para diminuir a obra do cultuado, chegando mesmo a afirmar algo, isso sim, anedótico, que o culto “torna impossível ler e avaliar com algum critério a infinidade de textos que escreveu, tantos tão desnecessários que deveria haver mais cuidado sempre que se cede à tentação de dar mais outro à estampa”. Contemplamos assim, nestas palavras, aquela pena antiquíssima, não tanto como a noite, mas, ainda assim, com considerável idade, que escreveu o Índex e mais tarde, fénix renascida, passou pelas mãos da Censura, apenas pintando os “papéis com tinta” com aquilo que era conveniente na altura. Estas novas gerações parecem ter nascido com um ditador sempre pronto a saltar... Enfim, alonga-se mais ainda, Diogo Vaz Pinto, como pioneiro na denúncia da bastardia de Pessoa, evoca Negreiros cuja contemporaneidade a Pessoa lhe permitiu a rebeldia de abrir os reposteiros de veludo pesado e vitoriano e arejar a casa da poesia. Se Negreiros abriu um reposteiro, Pessoa abriu o outro e a vanguarda entrou pelo avarandado em forma de raio de luz iluminando a Tradição... que se encontrava calmamente sentada a beber chá e a fazer acontecer tudo à sua volta, mas isto são outros tantos que Diogo Vaz Pinto desconhece, e, ao evocar Negreiros, alonga-se na sua tontura “despessoada” (todos aqueles que têm falta de Pessoa) e afirma que os gestos de reconhecimento tapam a obra dos poetas e também as vergonhas de um país (para isso cita O´Neill) que não soube reconhecer o poeta enquanto era vivo e toma nos braços Pessoa como vítima da ferocidade com que alguns se açambarcam com “bolsas, viagens, congressos...”. O´Neill indigna-se, e bem, com os abutres, não com o poeta. Mas, despessoado como é, Diogo Vaz Pinto, aponta imediatamente a “esterilidade dos inéditos que ainda vão surgindo” e a “dificuldade em se estabelecer uma linha entre o que é dele ou não (no facebook isso acontece com todos, dizemos nós), aquilo que é material novo (estamos cá para investigar, dizemos nós), velho (velhos são todos os poemas e escritos, já têm uns aninhos, observado por nós), requentado, ou mais algum borborismo sem o menor interesse...” para o cronista, claro, afirmado por nós. Quanto ao requentado, fez-nos lembrar um professor universitário que tivemos que se mostrou muito irritado por andarmos a ler Mircea Eliade, acusando-o de estar ultrapassado (a velha mania compulsiva das ciências antropológicas de se pensarem como ciências exactas), levando-nos a perguntar-lhe se Platão também estaria ultrapassado. Poesia requentada, por vezes, é como o vinho do Porto... em repouso em velhas arcas de madeira, mais tarde descoberta como rubis no fundo da terra. E conclui com Eugénio de Andrade que se mostra incomodado com a incapacidade de Pessoa ser ele próprio. É isso que lhe dá a graça, dizemos nós e ainda andamos à procura de alguém que seja igual a si próprio.
Por fim, a grande mágoa revela-se, aberta em penas de pavão: “... quem paga o preço são os poetas vivos, e sobretudo os jovens, que têm de contender e reger-se por esta forma de astrologia e de veneração do brilho cada vez mais distante de astros mortos.” Espantoso! Enterremos definitivamente os mortos depois de os matarmos outra vez, retiremos-lhes o brilho para que os jovens possam tomar o seu lugar porque este é um mundo cão, competitivo, destronador de antigos e distantes astros, um mundo que se quer novo, asséptico e sem ponta de História por onde se lhe pegue. Afirma o cronista solar, encadeador de outros sóis, em pleno Agosto, numa linda manhã de Verão, que nos deixamos influenciar pelos estrangeiros. Deduz-se que são muitos os estrangeiros que apreciam a obra de Pessoa e que só por causa disso o veneramos, porque somos naturalmente imbecis, se pensássemos pela nossa cabeça nunca veneraríamos Pessoa. Temos pois, a vanguarda das vanguardas, o paradoxo nacional e juvenil contemporâneo na sua glória: gostar de nós é não gostar de um dos nossos maiores poetas! Espantoso. É a nova geração em pleno, de boné poético colocado ao contrário na cabeça, com gestos de Rap e danças amacacadas. Pessoa? Esse “grafomaníaco que era menos de inventar do que se fazer passar, traficar, falsificações e cópias, redundâncias ao infinito...” Yah! Este Yah é nosso porque nos encontramos a ler Rap.
Ora, segundo este cantor de novos poetas a haver, o poema de Luís Filipe Parrado publicado na referida revista e que se encontra à esquerda (a esquerda não deve ser por acaso) das linhas de Pessoa é muito mais curioso e versa assim: “Nos seus poemas/ os poetas dizem muitas vezes/ que o mais importante,/ o que marca uma verdadeira diferença/entre o antes e o depois/ é o apelo da beleza e do terror,/ o ímpeto de rasgar o véu da carne/para chegar ao osso./Aí, onde dói./ Aí, onde o excesso de luz cega./ é o que dizem os poetas./ muitas vezes. /Nos seus poemas./ Mas, para além de Homero/ e de Borges, diz-me tu, / que outros poetas cegos conheces?”. Temos más notícias, isto não é poesia, de poesia, e mais uma vez, só tem a forma. O urinol de Duchamp já entrou na meia idade e, desde ele, a arte é arte quando, das duas uma, ou o autor diz que é arte ou quando está presente num espaço de exibição de arte e é por isso que as artes plásticas estão como estão, uma desgraça. O mesmo se passa aqui, não é por ter a forma de um poema que é poema, mas a modernidade diz que é. A antiguidade diz que não. E andamos nisto. Estou em crer que Diogo Vaz Pinto aprecia muito prosa, pela amostra dos dois poemas que escolhe transcrever, beneficiados com a sua crítica benigna, o mexicano e este português. Em comum: não são poesia. Como já estava muito à esquerda e, não vá o diabo tecê-las, conclui a sua opinião com um exemplo do que se passou na época de Estaline, quando uma geração de poetas foi “delapidada” por causa deste hábito irresistível de venerar os mortos. Assim, os pratos da balança ficam equilibrados. Os Russos também fizeram o mesmo. Nada como os estrangeiros para nos apoiarem... e, mesmo no fim, deixa-nos um apelo escrito pelo russo Maiakovski que acaba assim: ”Abandonem de uma vez por todas a veneração por meio de jubileus, centenários, a homenagem por meio de edições póstumas. Artigos sobre os vivos! Pão para os vivos! Papel para os Vivos!”. Pois, o Rei morreu, viva o Rei! Mas isso é numa monarquia... com Reis (um pouco diferente de meros presidentes, porque quanto há lugar para todos nos retratos reais e na memória do povo, algo que a Democracia actual desconhece). Viva a Revolução!
Então, vamos dar uma olhadela a essa “decepção” que são os versos de Pessoa e que incomodou tanto Vaz Pinto, rezam assim:
A ave canta livre onde está presa.
O servo dorme e o sonho lhe é surpresa,
Liberta-te, mas nega a liberdade.
Poder e não querer, eis a grandeza.
Não é necessário estudar muito Fernando Pessoa para se compreender que, mais uma vez, se trata de um poema iniciático. Vivemos, cantando presos na nossa prisão, que é corpo e terra, somos servos com a capacidade de sonhar e o sonho pode ser uma porta para a Libertação (vide o que é a libertação em termos iniciáticos), atingida a liberdade esta só é total se a nossa vontade prevalecer para além dessa mesma liberdade. Curiosa é a utilização da ave e a tal forma em estilo persa, sabendo-se de cor a importância das aves nessa cultura arcaica à qual Camões não foi indiferente e também curioso é o papel dos sonhos na Iniciação tão bem estudado por Henri Corbin. E diríamos que este é apenas o primeiro véu a ser retirado destes versos. A Grandeza reside na Vontade e a liberdade, abaixo dela nunca se perde. A Vontade é condição sin qua non (as minhas desculpas a Diogo Vaz Pinto pelo latim que é antigo) não há iniciação. A iniciação é grandeza. Vai um pouco na esteira daquilo que é dito por alguns budistas “Se vires Buda no caminho, mata-o!”. O mesmo princípio, Tradicional. A Iniciação é, aliás, Tradição e, das duas uma, ou andamos nesta terra para sermos jovens e experimentalistas até aos noventa anos de idade ou, a determinada altura do percurso de vida, tal como aconteceu com Almada Negreiros, damo-nos conta de que há mais. Este poema diz-nos que há mais. Eis a grande reviravolta na vida, maior e com mais grandeza do que aquela que há em qualquer Revolução. Revolucionários há muitos. Iniciados, poucos.
sábado, 16 de setembro de 2023
O lobo mau
quinta-feira, 14 de setembro de 2023
O estranho caso da filosofia expectante
domingo, 10 de setembro de 2023
A Beleza
Os cavalos avançam naquela praia. A forma como correm é em
si mesma uma mensagem de liberdade. As crinas ao vento e aquele focinho
comprido que, de vez em quando, inclinam para baixo numa expressão mista, entre
a submissão e a rebeldia. Uma corrida desses cavalos é poesia pura, neles
encontramos os nossos próprios movimentos, mais até do que nos pássaros, estes
mais constantes. Mas os cavalos assim, velozes e com movimentos súbitos parecem
traduzir a nossa instabilidade, a nossa inquietação e o nosso profundo prazer
na liberdade. E há tanta beleza neste mundo que conhecemos por tão breves anos
em absoluta consciência. Devia haver uma educação pelo silêncio e pela
contemplação, mais até do que por aquelas modas que há hoje de colocar as crianças a
meditar. O silêncio e a contemplação são muito mais acessíveis do que uma
meditação herdeira de uma técnica ascética e complexa. Uma educação em que se
dê a mão em silêncio só interrompido para chamar a atenção para as coisas
lindas deste mundo. Uma paragem do movimento da alma, em que esta se une à
paisagem estática e eterna. Pequenos gestos são maiores do que grandes teorias.
Nem nos damos conta da importância deles e ainda bem. É por isso que, por
vezes, nos lembram de qualquer coisa de que não nos lembramos. Podem ser as
coisas mais inocentes e pequenas que fizemos naturalmente, mas que marcaram
alguém que nos lembra delas. São paragens profundas no movimento da alma onde
esta mergulha e daí retira uma verdade qualquer, daquelas vívidas, inseparáveis
do ser. Lembro-me de passear por um centro comercial com Dalila Pereira da
Costa e da sua paragem em frente a uma montra com serviços de porcelana. Parou,
olhando para o padrão dos pratos e das chávenas como se olhasse para um tesouro.
“Que lindo!”, disse, mas com tal alegria e maravilhamento que não mais me
esqueci do serviço de mesa. A educação pelo belo parece-me mais importante do
que a educação pela revolução. O belo não necessita de rebeldia, apenas de
rendição. A rebeldia vem mais tarde, contra o inestético. Uma sociedade que não
reconheça o belo está condenada a desaparecer e a nem sequer ter um vislumbre
da sua perpetuidade. Desaparece como um mau sonho que se quer esquecer. A
beleza é uma exteriorização da alegria do mundo. Não há volta a dar quanto a
isto. Continuamos a admirar a escultura antiga, a arquitectura antiga e os ecos
que nos deixam de uma outra época para onde viajamos sem querer, neste
crepúsculo que nos rodeia. A beleza estende-se a tudo, tem uma capacidade
enorme de ser a grande viajante do cosmos, de tocar com os seus dedos os
recantos mais escondidos, de embalar as almas mais atormentadas. É a grande
senhora do universo. A grande educadora, a grande conservadora e inovadora. A
sua dança é maior do que a de Kali. É feita do ouro mais incorruptível e do
cristal mais puro. Sabendo isto, as coisas são mais fáceis e as casas exalam a
paz que as almas têm. E então, e só então, o espírito desce.
quarta-feira, 6 de setembro de 2023
sábado, 2 de setembro de 2023
A distopia da disruptividade
Depois de apresentar a sua pintura que consistia numa cara que ocupava toda a tela, feita com pinceladas irregulares, com um olho de cada cor e uns traços que esquartejavam a cara em locais perfeitamente aleatórios, a pintora afirmou que seguia o seu próprio caminho, que adorava quebrar as regras e construir novas ideias. Em suma, o lugar comum de todos os que desejam ser artistas, mas não o são porque aquele dom estranho, que nada procura e tudo inventa, não lhes foi dado, para além de que um artista não anda à procura de novas ideias, isso andam os cientistas quando querem resolver alguma questão mais ou menos particular do universo que nos acompanha e que já tem em si todas as ideias de que é capaz. Mas insiste-se em ser-se artista porque se pode. E poder é querer e querer é poder. De maneira que a caratonha mal pintada, inestética e tosca lá foi vendida por alguns trocos a quem reconheceu na caratonha a sua própria fealdade de espírito. A arte, ou é assim, ou é interventiva e sem graça nenhuma. Anda o neo-Bordalo nessa vida de intervenção, de ativismo, seja contra as Jornadas papais ou contra as Touradas animais (que as humanas não interessam para nada), e eis a declaração, o protesto, a chamada de atenção que poderia ser feita de qualquer outra maneira: tanto dá colocar uma passadeira no chão com notas de euros, como passear nu no Rossio com um cartaz a dizer que o Papa vai nu por ser humilde e desapegado, o resultado é o mesmo: nulo. Todos juntos, estes artistas, embora se pensem únicos e muito originais, fazem parte um um movimento global, ao qual se poderia dar o nome de “distopia da disruptividade”, todos querem quebrar regras, colocar as “coisas” em “questão”, chamar a atenção para aquilo a que todos acham injusto, ter voz ativa e política nos centros de decisão, bater-se por uma causa, roçando, com mais ou menos vigor, as chamadas ideologias, digo mais ou menos, porque querem ter novas ideias embora nunca se consigam distanciar da utopia ideológica por completo. São distópicos e utópicos em simultâneo. Tanto a palavra distopia como a palavra disruptividade, estão na moda e são, de facto, acção concreta e não ideia fechada em livros poeirentos por encontrar numa qualquer biblioteca. São, estes artistas, verdadeiros ditadores, apoiados no poder da vontade e na vontade de poder.
Aquelas séries inglesas que se passam nas grandes propriedades, com a classe dos serventes a viver em baixo e a classe aristocrática a viver em cima são autenticas aberrações para os distópicos disruptivos. E se alguém conseguir ser a casa toda, e tê-la dentro de si, isso ainda é pior. Alguém que tenha a casa toda. passa com o pano do pó pelas madeiras retorcidas por aquele que aprendeu com outro, mais velho, o ofício de esculpir a madeira, trata dos tecidos com toda a atenção e vai polir as pratas até que todo o salão resplandeça nelas, isto num minuto, porque no outro, já fala com os agricultores que tem sobre a sua alçada nos seus domínios, resolve crises e participa nos partos dos bezerros, antes de se vestir, com a ajuda do criado de quarto, para o jantar, normal e de família, jantar esse que foi confeccionado por si com receitas vindas do fundo dos tempos acrescentadas com novidades improváveis dos maiores chefes da cidades das luzes. Alguém que tenha a casa toda dentro de si, a qualquer momento, a qualquer hora, terrenos limítrofes inclusive, é o verdadeiro escândalo silencioso e solitário neste mundo de analfabetos em arte. A casa toda dentro de si, com os retratos ao longo da escadaria, os gessos trabalhados dos tectos, as flores cuidadosamente escolhidas e dispostas em grandes jarrões tornando a casa num jardim invisível é absolutamente incompreensível para estes artistas modernos poderosos que não conhecem o espaço de liberdade numa casa toda. Possuem apenas uma fração da realidade e, cegos que são, nessa fracção intuem toda a realidade. Possuem todos a mesma linguagem, os mesmos argumentos, a mesma vontade de destruição dos velhos valores que desconhecem por completo e têm por isso um inimigo invisível, mas que os leva a estarem todos no mesmo barco nessa luta distópica e disruptiva em nome de uma utopia indefinida e maior. O belo não tem lugar, o equilíbrio não tem lugar, a história não tem lugar, o ambiente não tem lugar, a harmonia é o maior pavor, invisível, porque não a veem, mas suficientemente pressentida para se armarem cavaleiros inovadores e lutarem contra ela. O grande susto deles, é o belo. Torcem o nariz quando o veem e colocam-no num silêncio distanciado, numa urna parada no tempo, jamais desenterrada porque se fosse, isso seria largar os fantasmas malditos de um tempo sem ideologias nem ideias novas. Nascer com a casa toda dentro de si e percorrer os seus andares, desde a cave mais funda onde o vinho descansa até ao sótão mais alto onde as memórias se acumulam é estar demasiado perto de toda a realidade. E estes novos artistas, que não o são, detestam a realidade, debatem-se contra ela com todas as suas forças e nem sequer são vanguardistas porque se repetem uns aos outros como gritos de um bando de gralhas que passam e varrem tudo à sua passagem. Ficamos dentro desta solidão desta casa cheia de tudo, onde, para lá da sua extensão se ergue a grande ditadura. Mas a nossa casa é cheia de tesouros, daqueles sem fim, que se desdobram e se erguem à nossa passagem, e se revelam sempre novos, dependendo da luz que é sempre outra que não a de ontem. A perpétua novidade do antigo que pisca os olhos, enamorada, à eternidade. Maggie Smith, numa dessas séries inglesas, pergunta, espantada: “O que é um fim-de-semana?”, isto porque nunca tinha trabalhado. Os criados perguntariam o mesmo, porque trabalhavam todos os dias. Ter a casa toda dentro de nós, é isto. O fim de semana disruptivo não existe. E a distopia não é necessária a quem vive na utopia. A casa é o espaço da verdadeira liberdade, longe da escravatura de se querer ser qualquer coisa, ou de se querer ter poder para o que seja e o caminho para ela é só um: nascer já assim.