Cada vez mais, está o mundo povoado de pequenas guerrilhas relativamente às quais o grande declínio da humanidade é perfeitamente indiferente. É por isso, Professor Marcelo, que é cada vez mais difícil governar. As marchas de luta são dispersas e extremamente cirúrgicas, uns lutam por melhores salários, outros por casas, outros por médicos, outros pelo clima, outros por outro treinador de futebol e os governantes só tem duas opções: ou ficam indiferentes ou, caso as eleições estejam próximas e em jogo, lá vão, quais bombeiros demasiado gordos para andar habilmente, tentar apagar pequenos fogos a troco de alguns votos. É assim aqui, é assim em todo lado onde haja democracias. O grande papão que é o declínio da própria espécie nem sequer é lembrado ou questionado acerca da sua existência. Torna-se, portanto, um pouco doloroso acordar todas as manhãs pois metade do corpo agradece por estar vivo (o lado egoísta) e a outra metade (o lado altruísta) olha em volta, assusta-se, leva as mãos ao rosto e diz: “Oh, não!” e o primeiro instinto é o de voltar a adormecer. E, durante o resto do do dia, andamos coxos, a não ser que se encarem as coisas como sendo perfeitamente normais dentro de um contexto de queda geral. Quando vamos a cair de uma grande altura, parte de nós sabe que ainda está vivo, e parte de nós adivinha o destino final. Sabendo isto, até se pode sorrir e dizer o quão são detestados os seres humanos no estado em que se encontram. Depois? Depois é só viver e fingir que se obedece aos mega-estímulos que nos rodeiam: ser educado, atencioso, acenar que sim, em concordância absoluta quando se fala com alguém que se encontre numa qualquer guerrilha, praticar algumas boas acções que ficam connosco, sem publicidade, não votar de uma ou de outra forma: ou nem sequer pôr os pés nas urnas ou aproveitar o domingo soalheiro para um passeio, passar pela urna e escrever algo como: não me apetece votar. Estivemos lá, mas não estivemos. O alheamento profundo é, nesta época histórica, necessário e conveniente se quisermos viver com sanidade mental. O estado morto-vivo é a grande glória da sobrevivência é, aliás, o estado normal de qualquer ser vivo que esteja em queda livre: ainda não morreu, mas está lá perto. Chamo a isto o alheamento superior, depois há o dos loucos que ou caem na depressão e drogas concomitantes, ou no seio de uma qualquer guerrilha ou ainda na alegria genuína (ou loucos são genuínos) de se pensar que vivemos no melhor dos mundos, na melhor das épocas e que no tempo da outra senhora e do outro senhor era bem pior porque não tínhamos nem água em casa, quanto mais água quente! São os chamados loucos por conforto e estão habilitados a fazer publicidade à Conforama. É isto que se arranja neste momento. Se se observar bem, aqueles que nos rodeiam estão sempre num ou noutro espectro e até podem saltitar, da depressão à guerrilha, da guerrilha ao conforto, normalmente até é este o percurso, mas também há casos em que são capazes de viver em simultâneo em dois ou três planos desses tipos de alheamentos, são os bi-polares e os tri-polares. O alheamento superior, por seu lado, pode descer ao nível de qualquer outro alheamento que lhe esteja abaixo, por quanto tempo for necessário, isto se estiver a morrer de tédio. O tédio é o grande problema do alheamento superior. Convenhamos, é superior, mas não é perfeito. Tem as suas coisas, os seus humores e pode ser impaciente por não ver melhorias em nada. Também tudo isto é normal e faz parte do declínio. Qualquer alheamento, por muito superior que seja não escapa à queda, a essa grande onda, a essa grande boca do lobo mau, escancarada com todos nós a escorregar pela sua goela, em queda livre. E Jonas a rir-se, cá fora, à espera de alguém que saia para lhe dar um grande abraço.
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