sábado, 2 de setembro de 2023

A distopia da disruptividade



Depois de apresentar a sua pintura que consistia numa cara que ocupava toda a tela, feita com pinceladas irregulares, com um olho de cada cor e uns traços que esquartejavam a cara em locais perfeitamente aleatórios,  a pintora afirmou que seguia o seu próprio caminho, que adorava quebrar as regras e construir novas ideias. Em suma, o lugar comum de todos os que desejam ser artistas, mas não o são porque aquele dom estranho, que nada procura e tudo inventa, não lhes foi dado, para além de que um artista não anda à procura de novas ideias, isso andam os cientistas quando querem resolver alguma questão mais ou menos particular do universo que nos acompanha e que já tem em si todas as ideias de que é capaz. Mas insiste-se em ser-se artista porque se pode. E poder é querer e querer é poder. De maneira que a caratonha mal pintada, inestética e tosca lá foi vendida por alguns trocos a quem reconheceu na caratonha a sua própria fealdade de espírito. A arte, ou é assim, ou é interventiva e sem graça nenhuma. Anda o neo-Bordalo nessa vida de intervenção, de ativismo, seja contra as Jornadas papais ou contra as Touradas animais (que as humanas não interessam para nada), e eis a declaração, o protesto, a chamada de atenção que poderia ser feita de qualquer outra maneira: tanto dá colocar uma passadeira no chão com notas de euros, como passear nu no Rossio com um cartaz a dizer que o Papa vai nu por ser humilde e desapegado, o resultado é o mesmo: nulo. Todos juntos, estes artistas, embora se pensem únicos e muito originais, fazem parte um um movimento global, ao qual se poderia dar o nome de “distopia da disruptividade”, todos querem quebrar regras, colocar as “coisas” em “questão”, chamar a atenção para aquilo a que todos acham injusto, ter voz ativa e política nos centros de decisão, bater-se por uma causa, roçando, com mais ou menos vigor, as chamadas ideologias, digo mais ou menos, porque querem ter novas ideias embora nunca se consigam distanciar da utopia ideológica por completo. São distópicos e utópicos em simultâneo. Tanto a palavra distopia como a palavra disruptividade, estão na moda e são, de facto, acção concreta e não ideia fechada em livros poeirentos por encontrar numa qualquer biblioteca. São, estes artistas, verdadeiros ditadores, apoiados no poder da vontade e na vontade de poder.

Aquelas séries inglesas que se passam nas grandes propriedades, com a classe dos serventes a viver em baixo e a classe aristocrática a viver em cima são autenticas aberrações para os distópicos disruptivos. E se alguém conseguir ser a casa toda, e tê-la dentro de si, isso ainda é pior. Alguém que tenha a casa toda. passa com o pano do pó pelas madeiras retorcidas por aquele que aprendeu com outro, mais velho, o ofício de esculpir a madeira, trata dos tecidos com toda a atenção e vai polir as pratas até que todo o salão resplandeça nelas, isto num minuto, porque no outro, já fala com os agricultores que tem sobre a sua alçada nos seus domínios, resolve crises e participa nos partos dos bezerros, antes de se vestir, com a ajuda do criado de quarto, para o jantar, normal e de família, jantar esse que foi confeccionado por si com receitas vindas do fundo dos tempos acrescentadas com novidades improváveis dos maiores chefes da cidades das luzes. Alguém que tenha a casa toda dentro de si, a qualquer momento, a qualquer hora, terrenos limítrofes inclusive, é o verdadeiro escândalo silencioso e solitário neste mundo de analfabetos em arte. A casa toda dentro de si, com os retratos ao longo da escadaria, os gessos trabalhados dos tectos, as flores cuidadosamente escolhidas e dispostas em grandes jarrões tornando a casa num jardim invisível é absolutamente incompreensível para estes artistas modernos poderosos que não conhecem o espaço de liberdade numa casa toda. Possuem apenas uma fração da realidade e, cegos que são, nessa fracção intuem toda a realidade. Possuem todos a mesma linguagem, os mesmos argumentos, a mesma vontade de destruição dos velhos valores que desconhecem por completo e têm por isso um inimigo invisível, mas que os leva a estarem todos no mesmo barco nessa luta distópica e disruptiva em nome de uma utopia indefinida e maior. O belo não tem lugar, o equilíbrio não tem lugar, a história não tem lugar, o ambiente não tem lugar, a harmonia é o maior pavor, invisível, porque não a veem, mas suficientemente pressentida para se armarem cavaleiros inovadores e lutarem contra ela. O grande susto deles, é o belo. Torcem o nariz quando o veem e colocam-no num silêncio distanciado, numa urna parada no tempo, jamais desenterrada porque se fosse, isso seria largar os fantasmas malditos de um tempo sem ideologias nem ideias novas. Nascer com a casa toda dentro de si e percorrer os seus andares, desde a cave mais funda onde o vinho descansa até ao sótão mais alto onde as memórias se acumulam é estar demasiado perto de toda a realidade. E estes novos artistas, que não o são, detestam a realidade, debatem-se contra ela com todas as suas forças e nem sequer são vanguardistas porque se repetem uns aos outros como gritos de um bando de gralhas que passam e varrem tudo à sua passagem. Ficamos dentro desta solidão desta casa cheia de tudo, onde, para lá da sua extensão se ergue a grande ditadura. Mas a nossa casa é cheia de tesouros, daqueles sem fim, que se desdobram e se erguem à nossa passagem, e se revelam sempre novos, dependendo da luz que é sempre outra que não a de ontem. A perpétua novidade do antigo que pisca os olhos, enamorada, à eternidade. Maggie Smith, numa dessas séries inglesas, pergunta, espantada: “O que é um fim-de-semana?”, isto porque nunca tinha trabalhado. Os criados perguntariam o mesmo, porque trabalhavam todos os dias. Ter a casa toda dentro de nós, é isto. O fim de semana disruptivo não existe. E a distopia não é necessária a quem vive na utopia. A casa é o espaço da verdadeira liberdade, longe da escravatura de se querer ser qualquer coisa, ou de se querer ter poder para o que seja e o caminho para ela é só um: nascer já assim. 

                                                           



 

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