quarta-feira, 6 de março de 2019
Sem ambargo
É, sem ambargo na voz,
que atesto a solidão das naves,
o inverno dos rumos,
a única nota solta pelas aves.
E se, atravessar o vale das sombras,
escrever um livro com o seus poemas,
fixar as bandeiras coloridas
em terras de cinzentos rochedos,
for o gesto de uma alma rotunda,
sobre si girando, infinita,
de quem já não acredita...
E com ela, poder continuar,
no segredo da brisa,
a passar por entre o vento,
a reclamar esse diálogo, a sós,
entre nós e o divino,
que, no profundo sentido,
anuncia a sorte dos erros e dos acertos...
E, assim, refazer o vento e a brisa
à luz dessa conversa
outro nome da oração
aquela única e só
em que o divino
ainda acredita.
segunda-feira, 4 de março de 2019
Fundo do mar
A maior parte de Portugal encontra-se no fundo do mar tal como alguns portugueses, que quando emergem das águas, se tornam ilhas encobertas.
domingo, 3 de março de 2019
Ignorância
Como povo da finisterra temos responsabilidades e o previlégio de poder observar o sol, na maioria das noites, a afundar-se no oceano, estranho mergulho do fogo na água. Este segundo aspecto sintetiza a obra e é um direito natural com toda a complexidade que o "natural" implica. Já o primeiro, é um dever. Entre essas responsabilidades pudemos inumerar várias que estão directamente ligadas à ignorância.
Negar o aspecto profético nalguns dos nossos poetas submetendo-os a questões psicológicas é desvirtuar a origem das suas palavras encaminhando a sua leitura para a dimensão do chamado "eu poético" como se este se sobrepusesse àquilo que é o caminho de um país. Se nesses poetas acontece um ponto de intercessão entre a sua vida e a vida do país, é sem dúvida este último o princípio e o fim da sua poesia e não a vida do poeta que é apenas a cruz da rosa.
Negar que existem um conjunto de ritos nacionais, suportados por determinados símbolos que são a base do caminho do país é pura e simplesmente não os conhecer. Essa negação é sempre feita por quem não foi introduzido nesse mundo simbólico.
Negar que este é um país iniciático, ou seja, que esses símbolos visíveis e esses ritos que permanecem secretos e invisíveis são exclusivamente portugueses e muito arcaicos, muito anteriores à Revolução Francesa, sem deixarem de ser tradicionais, é não conhecer a verdade fundamental que anima o caminho de Portugal.
Posto isto, existem por aí inúmeros comentários que ficam pela rama do que é verdadeiramente o papel da poesia, a natureza dos símbolos em Portugal, a qualidade dos ritos portugueses e a infalibilidade da Iniciação.
Relativamente a isto só há e só pode haver o dever da responsabilidade que só pode ser exercida pela leitura de autores portugueses, tanto poetas que cantaram o nosso país como de pensadores ou pensadores-poetas que sobre ele se debruçaram. E este é apenas o primeiro passo, apenas introdutório, da escuta da voz dos poetas como profetas, da aprendizagem dos símbolos como portais para outras realidades... O rito e a iniciação pertencem já um um outro estado, impossível de ser escrito ou falado sequer devido ao seu carácter secreto e invisível. A questão de Portugal é de uma delicadeza tal que não se coaduna com opiniões baseadas apenas em impressões sensíveis. No entanto se, no início, não se ouvirem as vozes dos poetas como profetas tudo o mais, símbolos, ritos e iniciação, estará vedado até ao mais sincero dos interessados. Aliás, uma vez lidos com o seu verdadeiro timbre profético, deixa de haver interesse e passa a existir uma outra coisa chamada desejo. É exactamente esse desejo e essa sinceridade que os deuses escutam. O restante nem ouvem.
sábado, 2 de março de 2019
Tendências
Quando era miúda ofereceram-me um pêndulo de Newton igual a este. Estava numa mesinha da sala. A transferência de energia que percorria as três bolas interiores que permaneciam estáticas a partir do lançamento de uma das bolas da extremidade, fazia com que a outra bola da extremidade fosse lançada para fora do grupo de bolas e que, chegando a um determinado ponto, regressava batendo na bola do conjunto das três estaticas que transferiam, por sua vez, a energia para a bola da ponta fazendo com que ela voltasse a repetir o mesmo comportamento inicial aquando o primeiro lançamento feito por nós. Assim as do centro mantinham-se estáticas sendo o seu papel, apenas, o de transferirem energia.
Para o pêndulo funcionar necessitava de duas energias que andavam em direcções opostas. Sem isso nem o pêndulo servia para nada. Assim vamos nós em Portugal. Pensamos que o poder e a tecnologia, (esta última, mais não é, senão uma forma de poder) são suficientes para colocar o pêndulo (símbolo, entre outras coisas, de movimento (e consequentemente de vida) e de equilíbrio. Mas, assim, o pêndulo não anda. A Arte & a Literatura, as humanísticas, as "humanidades", essa coisa da poesia, da filosofia e outras que, naturalmente, se lhes seguem, e que não pertencem ao domínio do binómio poder/tecnologia que parece fascinar, não só as novas gerações como as antigas e muito ciosas do vinte e cinco de Abril onde fizeram questão de estar, é o outro lado da questão e é o lado que mais perto está da terceira força invisível que faz andar o pêndulo verdadeiramente porque na natureza não há nada igual, nem nada que se repita (de maneira que a igualdade das bolas das extremidades é ilusória). Assim, quando vejo esta atracção pelo poder e pela tecnologia fico desconfiada. Nao chega. Porque de nada serve o poder nem a tecnologia se não tivermos pessoas. E as pessoas são formadas por dois terços de poesia e apenas um terço dessa coisa chamada poder e tecnologia. E daí a proximidade com terceira força que anima a totalidade do pêndulo. Porque só a poesia a pode saber e conhecer. Aquilo que mais atrai o país será aquilo para aquilo mais tende. E a terra parece ser muito mais atraente do que o céu que é muito maior. Interesses rasteiros geram um país rasteiro. Quando o poder parece ser muito interessante é porque não temos poder nenhum. Quando a poesia, distante da tecnologia, se torna muito interessante, então afinal, até se sabe e se conhece o que é que verdadeiramente produz a oscilação do pêndulo. Digamos que os que se interessam muito pelo poder e pela tecnologia contribuem em apenas um terço para a vida do país mas, como têm uma tendência para o poder, julgam contribuir os tais dois terços. Um país desequilibrado é assim. E assim nunca se encontra. Nem sai do Inferno. E tomam, esses, as palavras de Dante como verdadeiras, mais cedo ou mais tarde, quando diz que se perde toda a esperança de sair do Inferno quando no Inferno se entra. É aliás, muito italiano... Muito católico, o caldeirão a arder eternamente. Mas o nosso poeta é outro. É Camões. Muito mais nosso. Muito de acordo com o nosso centro. Muito de acordo com o ritmo da nossa respiração que tende para a Liberdade.
sexta-feira, 1 de março de 2019
O maravilhoso mundo das borboletas
As borboletas são muito bonitas. Agitam as asas, tocam ao de leve nas flores. Muito ao de leve. E tocam ao de leve no nosso cabelo, nas nossas mãos e no nosso rosto. Esvoaçantes, andam de flor em flor. São símbolos da transformação porque mudam de forma. Fazendo o seu próprio casulo, as lagartas , a partir dele, passam a ser borboletas. Dependendo das espécies têm, geralmente, pouco tempo de vida. Há uma, que vive mais tempo e que chega a durar nove meses de vida, o tempo da gestação humana. Enquanto a borboleta anda de flor em flor, muito ao de leve, gera-se um ser humano e isto apenas no caso dessa espécie que dura mais tempo porque as outras ainda vivem menos. Isto é o que acontece quando se existe para se ser muito bonito e se tocar ao de leve nas coisas. Muito ao de leve, como quem não quer mais nada. Isto é o que acontece quando não aprofundamos as coisas. O tempo de vida máximo deste animal é equivalente à gestação de um ser humano. Para esse ser humano a procissão ainda vai no adro. Para a borboleta que tudo tocou ao de leve, os foguetes já foram lançados, as canas apanhadas e agora só para o ano.
O trovão
Entrou de rompante no atelier, parecia farejar de longe. Olhou e soltou com a voz de trovão:
- Isto está tudo mal!
Por ordem aconteceu, dos mais distantes aos mais próximos.
Os mais distantes foram-se embora
Depois outros sentiram-se ofendidos
Os outros tremeram
Os a seguir choraram
Os mais próximos acordaram
Os a seguir abriram os olhos
Os mais aproximados viram o erro
Os mais juntos gritaram: eu bem disse
Os juntinhos gritaram
"Está tudo mal"
E os fundidos na obra
Farejavam, ao longe
Entravam de rompante
E gritavam com voz de trovão:
"Isto está tudo mal"!
- Isto está tudo mal!
Por ordem aconteceu, dos mais distantes aos mais próximos.
Os mais distantes foram-se embora
Depois outros sentiram-se ofendidos
Os outros tremeram
Os a seguir choraram
Os mais próximos acordaram
Os a seguir abriram os olhos
Os mais aproximados viram o erro
Os mais juntos gritaram: eu bem disse
Os juntinhos gritaram
"Está tudo mal"
E os fundidos na obra
Farejavam, ao longe
Entravam de rompante
E gritavam com voz de trovão:
"Isto está tudo mal"!
A professora de Português
Do sétimo ao nono ano tive uma professora que era amiga doutra professora e que era, por sua vez, professora da minha grande amiga desses tempos da escola. As duas professoras eram amigas da poesia. E tinham uma paixão especial pela poesia de Fernando Pessoa. De maneira que tive tratamento de choque e chique. Quando passei para o décimo ano, essas professoras reuniram-se e não sabendo muito bem o que fazer comigo quando disse querer ser decoradora, intercederam, mexeram uns cordelinhos e enfiaram-me na António Arroio. Chegada lá fiz um décimo ano que a única coisa que teve de bom foram os colegas (finalmente não me ligavam nenhuma, já não me sentia um bicho estranho), um professor de História da Arte que teimava em não dissociar a Filosofia da Arte, coisa rara, e uma professora de Português. Essa professora de português chamou-me a atenção, duma forma um pouco, digamos, embaraçosa, numa entrega de um teste, para o facto de que eu deveria escrever. Não lhe liguei nenhuma nessa altura. No fim do ano, as pautas estavam para sair e essa professora convidou-me a mim e a mais uns quantos para ir a casa dela. Quando saíram fiquei eu. Ela pegou nas pautas, que nessa altura eram escritas à mão, a esferográfica vermelha e azul e pediu-me para as preencher segundo aquilo que tinha anotado num caderno. E lá fiz aquilo, da minha e de outras turmas.
Acabei por mudar de curso e ir por outros caminhos, mais antropológicos. Mas aquela tarde tinha-me ficado na cabeça. Sempre que me apanhava, essa professora, já sabia que me ia falar de livros e de literatura. E fê-lo também nessa tarde ao mesmo tempo que demonstrava, pelo gesto de me pôr a fazer as pautas, sem olhar sequer para elas, que tinha confiança em mim. Este acto profundamente ilegal que é o de pôr uma aluna a fazer as pautas mais a insistência na literatura ficou-me na memória e mais do que isso, passei a escrever sem questionar se o deveria ou não fazer. Se ela tivesse ido na cantiga da legalidade e da igualdade entre alunos, não teria tido o efeito que teve em mim. Se ela não tivesse tido uma intuição da hierarquia e da sua possivel inversão para uma mensagem maior, nada se teria passado. Não teria mudado de curso, atravessado mais outra escola, mais duas faculdades mais isto mais aquilo para anos mais tarde me reencontrar com a decoração mas com olhos muito mais profundos... Essas três professoras foram as parcas sem o saberem, separando, enrolando, cortando, ou seja mudando de rumo quando era necessário. Um fio que era um rio interminável... A melhor cooperação é esta: fazer parte de um padrão simbólico pela naturalidade do gesto e não porque "é melhor", "fica melhor" ou parece bem... A primeira professora planava nas aulas com a poesia, perdia-se nas palavras e quantas quantas vezes os seus olhos ficavam distantes numa espécie de êxtase poético, chegou mesmo a agarrar num livro de poesia contra o peito e dizer, completamente corada, de lágrimas nos olhos, que Antero de Quental era a paixão da vida dela. O modo como ensinava Pessoa não era, convenhamos, a forma mais acessível e conviniente para alunos com a nossa idade e maturidade. Havia ali mais do que o suficiente para uma repreensão de um ministério que já nessa altura tendia a formatar cabeças em vez de as pôr a pensar e a chorar, porque não? Só de ver aqueles olhos lacrimejantes ia atrás, na onda. A poesia era para sentir, para perceber e se juntarmos as duas coisas, então é para comer, como dizia Natália Correia. A segunda professora não tinha meias medidas, enfiava a aluna do sétimo, oitavo... nas visitas de estudo para alunos do décimo e décimo primeiro. E lá ia eu, toda contente, discretamente (não convinha que se soubesse), para essas visitas de estudo dos "grandes".
Tive tratamento vip! Uma espécie de cooperação inacessível aos outros alunos. Evidentemente que a inveja e incompreensão neste país têm terreno fértil. Mas também vos digo que esta tentativa igualitária à força é uma forma de camuflar a potencial inveja e incompreensão que não é coisa que se apague com um decreto-lei-interruptor. A aceitação daquilo que é diferente quando uniformizado torna tudo o que é diferente em coisas iguais... Anulando-se a diferença anula-se a inveja e a incompreensão. Era bom era, mas não me enganam. A verdadeira cooperação vem do alto, daí que a Tradição seja infalível. Não vem por decreto-lei. Assim como a paz profunda não vem por a desejarmos muito e todos os dias uns aos outros. Vem do alto quando quer e como quer. E se tiver que transgredir, transgride. Vai até contra a igualdade entre alunos e vai a favor dos que são iguais entre si. E quantas vezes é a capacidade de compreender isto (com o coração que é a única forma) aquilo que define, exactamente, a diferença? Por isso me cansam palavras que são bonitas e úteis para viver em sociedade, como uma espécie de decoração bem feita e funcional e não me canso de outras aparentemente desordeiras, uma decoração que vai para além do bem feito e do funcional e que se torna o cenário, complexo e verdadeiro, do nosso mundo interior, ou seja, transbordante de arte. Tudo o resto é catequese. E nunca lá pus os pés. A minha mãe achou que não era para mim. Perguntou-me e eu confirmei. E há tantas, tantas formas de catequese. Até onde menos esperamos.
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