sexta-feira, 1 de março de 2019

A professora de Português


Do sétimo ao nono ano tive uma professora que era amiga doutra professora e que era, por sua vez, professora da minha grande amiga desses tempos da escola. As duas professoras eram amigas da poesia. E tinham uma paixão especial pela poesia de Fernando Pessoa. De maneira que tive tratamento de choque e chique. Quando passei para o décimo ano, essas professoras reuniram-se e não sabendo muito bem o que fazer comigo quando disse querer ser decoradora, intercederam,  mexeram uns cordelinhos e enfiaram-me na António Arroio. Chegada lá fiz um décimo ano que a única coisa que teve de bom foram os colegas (finalmente não me ligavam nenhuma, já não me sentia um bicho estranho), um professor de História da Arte que teimava em não dissociar a Filosofia da Arte, coisa rara, e uma professora de Português. Essa professora de português chamou-me a atenção, duma forma um pouco, digamos, embaraçosa, numa entrega de um teste, para o facto de que eu deveria escrever. Não lhe liguei nenhuma nessa altura. No fim do ano, as pautas estavam para sair e essa professora convidou-me a mim e a mais uns quantos para ir a casa dela. Quando saíram fiquei eu. Ela pegou nas pautas, que nessa altura eram escritas à mão, a esferográfica vermelha e azul e pediu-me para as preencher segundo aquilo que tinha anotado num caderno. E lá fiz aquilo, da minha e de outras turmas.
Acabei por mudar de curso e ir por outros caminhos, mais antropológicos. Mas aquela tarde tinha-me ficado na cabeça. Sempre que me apanhava, essa professora, já sabia que me ia falar de livros e de literatura. E fê-lo também nessa tarde ao mesmo tempo que demonstrava, pelo gesto de me pôr a fazer as pautas, sem olhar sequer para elas, que tinha confiança em mim. Este acto profundamente ilegal que é o de pôr uma aluna a fazer as pautas mais a insistência na literatura ficou-me na memória e mais do que isso, passei a escrever sem questionar se o deveria ou não fazer. Se ela tivesse ido na cantiga da legalidade e da igualdade entre alunos, não teria tido o efeito que teve em mim. Se ela não tivesse tido uma intuição da hierarquia e da sua possivel inversão para uma mensagem maior, nada se teria passado. Não teria mudado de curso, atravessado mais outra escola, mais duas faculdades mais isto mais aquilo para anos mais tarde me reencontrar com a decoração mas com olhos muito mais profundos... Essas três professoras foram as parcas sem o saberem, separando, enrolando, cortando, ou seja mudando de rumo quando era necessário.  Um fio que era um rio interminável... A melhor cooperação é esta: fazer parte de um padrão simbólico pela naturalidade do gesto e não porque "é melhor", "fica melhor" ou parece bem... A primeira professora planava nas aulas com a poesia, perdia-se nas palavras e quantas quantas vezes os seus olhos ficavam distantes numa espécie de êxtase poético, chegou mesmo a agarrar num livro de poesia contra o peito e dizer, completamente corada, de lágrimas nos olhos, que Antero de Quental era a paixão da vida dela. O modo como ensinava Pessoa não era, convenhamos, a forma mais acessível e conviniente para alunos com a nossa idade e maturidade. Havia ali mais do que o suficiente para uma repreensão de um ministério que já nessa altura tendia a formatar cabeças em vez de as pôr a pensar e a chorar, porque não? Só de ver aqueles olhos lacrimejantes ia atrás, na onda. A poesia era para sentir, para perceber e se juntarmos as duas coisas, então é para comer, como dizia Natália Correia. A segunda professora não tinha meias medidas, enfiava a aluna do sétimo, oitavo... nas visitas de estudo para alunos do décimo e décimo primeiro. E lá ia eu, toda contente, discretamente (não convinha que se soubesse), para essas visitas de estudo dos "grandes".
Tive tratamento vip! Uma espécie de cooperação inacessível aos outros alunos. Evidentemente que a inveja e incompreensão neste país têm terreno fértil.  Mas também vos digo que esta tentativa igualitária à força é uma forma de camuflar a potencial inveja e incompreensão que não é coisa que se apague com um decreto-lei-interruptor. A aceitação daquilo que é diferente quando uniformizado torna tudo o que é diferente em coisas iguais... Anulando-se a diferença anula-se a inveja e a incompreensão. Era bom era, mas não me enganam. A verdadeira cooperação vem do alto, daí que a Tradição seja infalível. Não vem por decreto-lei. Assim como a paz profunda não vem por a desejarmos muito e todos os dias uns aos outros. Vem do alto quando quer e como quer. E se tiver que transgredir, transgride. Vai até contra a igualdade entre alunos e vai a favor dos que são iguais entre si. E quantas vezes é a capacidade de compreender isto (com o coração que é a única forma) aquilo que define, exactamente, a diferença? Por isso me cansam palavras que são bonitas e úteis para viver em sociedade, como uma espécie de decoração bem feita e funcional e não me canso de outras aparentemente desordeiras, uma decoração que vai para além do bem feito e do funcional e que se torna o cenário, complexo e verdadeiro, do nosso mundo interior, ou seja, transbordante de arte. Tudo o resto é catequese. E nunca lá pus os pés. A minha mãe achou que não era para mim. Perguntou-me e eu confirmei. E há tantas, tantas formas de catequese. Até onde menos esperamos.

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