terça-feira, 26 de maio de 2020

Dia e noite


Tenho insónias do tamanho da noite. Navego pela noite como se fosse dia e, de dia, adormeço na mais profunda rigidez mortífera que são as coisas práticas. De dia digo que a água chega às casas e retiro-a delas com baldes sem fundo. De noite, nas minhas insónias, navego em todas as divisões das casas circundantes. Encontro todas as pessoas que dormem encostadas aos baldes. Navego em todos os olhares que não me vêem, e escuto todas as palavras que não dizem. Depois, o sol nasce e mascaro-me de lua. E vou pela rua com todos os outros, dissolvo-me na água que invade as casas até que a noite chega e, regresso do fundo das águas, como uma ilha nascente capaz de voar por todos os mares que são todas as casas onde dormem os aflitos.

sexta-feira, 22 de maio de 2020

Flores



Quem não conhece a linguagem das flores vivas nunca poderá perceber a idêntica linguagem das flores artificiais.


sexta-feira, 15 de maio de 2020

Arte



‌O problema dos grandes criadores é que criam o seu próprio mundo e ficam nele e pensam que quem não entende o seu mundo é louco ou estúpido ou as duas coisas. Os copistas não têm esse problema. Copiam infinitamente para chegarem ao maior número de pessoas e serão muito conceituados se arrastarem atrás de si um qualquer Manifesto ( os Manifestos são monumentos oficiais de mármore escrito) que lhes diga aquilo que devem ser e fazer. Um Manifesto será sempre ensinar a missa ao Papa e só serve, se lhe der para aí, como matéria prima entre muitos outros Manifestos.  Um grande criador é um absurdo para fora e absolutamente estável para dentro e, em graus de aproximação ao seu interior, é também absolutamente absurdo para dentro e instável para fora. Escrevi é e não "deve" ser. Os que escrevem "devem" são copistas do futuro totalizante que almejam para si e para os outros, e chegam até a escrever Manifestos para isso. Para os grandes criadores só há a efervescência da obra que no seu íntimo é só uma e intraduzível.

sexta-feira, 8 de maio de 2020

O sonho


Qual vai ser montante da dívida?
Quanto tempo vai durar a pandemia?
Quando teremos vacina ou medicamentos eficazes?
Qual a taxa de desemprego devido ao vírus?
Como vai correr a corrida ao investimento?
Como vamos pagar a dívida?
Como se recupera mundialmente de uma pandemia destas?

A nossa sociedade orgulhosa dos seus feitos e achados não tem resposta para coisa nenhuma. O sonho de Nabucodonosor é recorrente.

quarta-feira, 6 de maio de 2020

Azul cueca



Na Disneylândia anda tudo bem disposto. As cabeças de animais superam qualquer tristeza. Dantes os livros aos quadradinhos eram para serem lidos, agora são para ser. Numa conversa divertida, António Telmo observou que se nos concentrarmos nas orelhas dos interlocutor eles começam a parecer-se com animais. Rirmo-nos todos com esta observação. Constatamos agora que se o sorriso for de orelha a orelha, as pessoas ficam iguais aos bonecos gigantes que povoam a Disneylândia. Por outro lado, com a máscara, as orelhas tendem a sair para fora, mas nem por isso a audição parece estar mais apurada e muito menos a capacidade de ouvir os outros. Já as escutas vão de vento em popa com o Googles e companhias a escutarem tudinho, bem como os serviços secretos e os hackers (os novos mercenários). A burka venceu. Sinto isso quando entro num supermercado com a máscara azul cueca e me esqueço de tirar os óculos escuros. A nossa dignidade é para manter, não há dúvida... sociedade ridícula. O pinto não quer sair do ovo e só lhe dou razão. A minha parte animal está com ele! Juntos venceremos! Não sabemos muito bem o que venceremos mas está-se bem aqui no sono embrionário, o resto, lá fora, é muito estranho. Logo o azul cueca - provavelmente a cor mais detestável tanto para vestir como para pintar as casas por fora. Vou à rua e penso que as pessoas, coitadas, não têm culpa. Mas apetece-me disparar em todas as direções. Tenho violência contida como as mulheres de burka. Estou farta de gente e de opiniões. E de peritos. Os peritos são os piores!!! Abrem a bocarra por detrás da máscara e sabem tudo. O pior é quando um que sabe se confronta com um que sabe ao contrário. Parecem veados com uma rede de cornos enfiados uns nos outros a lutar pela verdade. Autênticos animais. Se vir passar um anjo vou pedir-lhe boleia. Ao menos é diferente. Andar em cima das nuvens fofas e a ouvir as opiniões das pessoas só se quisermos. Aposto que o telejornal hoje vai falar de viroses e de números. Um mundo tão previsível torna-se o lugar ideal para os bonecos da Disneylândia. Por isso andam sempre a rir e bem dispostos. Quando morrerem vão querer ir de burro e de burka azul cueca sem o som das latas que isso é para gente triste. Para os palhaços tristes. Andámos nós a navegar em alto mar para resumir a vida a uma burka, a um vírus, a um sorriso e a um arco-íris "todo bem", todo in.  No outro dia passei na estrada e vi um grupo de miúdos a andar de bicicleta como andavam antigamente, livres e felizes. Parei o carro e disse-lhes para não crescerem porque nós, os adultos, éramos bonecos de Disneylândia, com pernas fininhas, mas com uma cabeçorra tão grande que não conseguíamos ver o caminho se andássemos de bicicleta. Estamos cá para sermos felizes, é sabido. Os peritos até já inventaram um "índice de felicidade" e medem os sorrisos dos bonecos. Depois põe nos telejornais para vermos quem vai à frente no campeonato. Também fiquei a saber que existe o "índice do batom (não estou a brincar) que indica o nível da crise: parece que elas em crise compram mais batons. Agora com a burka azul cueca se calhar tem de se passar para o rímel isto se não formos ao supermercado de óculos escuros. Uma zarzuela é o que isto é, como dizia a minha avô quando a confusão era mais do que muita. Podíamos pôr o planeta à venda como sala de espectáculos, com cenário e actores incluídos. Talvez um ET qualquer o queira comprar só para se rir um bocadinho nos intervalos da sua vida séria. Esses tristes et's nem sabem como isto aqui é divertido senão já tinham aterrado aqui para viverem sempre em festa. O que eu quero é beleza, o resto que se lixe. Que se lixe mesmo. Enquanto não tiverem o sentido da beleza hão-de andar todos tortos, mancos e rotos. Bonecos de burka.

O dia e a noite


Os sonhos podem confirmar o que pensamos e o que sentimos durante o dia. Hoje sonhei que vivia numa casa muito antiga e bela, com mosaicos nas paredes, alguns brilhantes com figuras de animais, pessoas e plantas. A casa situava-se no meio de prédios altos todos de vidro, gelados e iguais uns aos outros sem grande variação de forma ou de altura. Tenho-me recusado a levantar. Não me apetece. E posso. Deixo-me ficar até ao meio dia/uma hora na cama. As minhas noites vão até às três, quatro, cinco, seis da manhã. A essas horas o mundo está com o silêncio com que sempre esteve. Francamente também nunca gostei por aí além dos dias muito pseudo-diurnos. A noite foi sempre muito mais solar para mim. Lá passa-se mesmo tudo. O dia é para os loucos que pensam ser muito activos, pró-activos, dinâmicos e aerodinâmicos e que pensam que no dia se passa tudo por causa deles.  Desvairados, na sua grande maioria. As manhãs, no seu início, trazem a candura da noite e, a pouco e pouco, à medida que as horas passam, a cor do dia torna-se mais baça e sofucante. Este vírus e todo o seu contexto levou a discursos patéticos como "o mundo não será mais o mesmo". As pessoas estão desejosas de que seja mais o mesmo e que haja mais do mesmo com a diferença de que agora podem usar máscara sempre que alguém lhes diga para as usar. As pessoas querem exactamente o mesmo que tinham e querem ser exactamente o que eram: cada um com a sua vidinha, o seu meio de sustento, a sua poluição de estimação, os seus pseudo-direitos assegurados, os seus deveres de obidiência à pseudo-ciência devidamente estimulados. Resumindo, as pessoas querem estar vivas (a morte numa sociedade laica é o grande pesadelo) e querem números. Não querem mais nada. Querem mais canais de televisão, carros mais rápidos e modernos, aviões super lotados, mais pessoas a fazer turismo (a qualidade não interessa para nada), mais dinheiro, mais modas, mais qualquer coisinha se faz favor. Se possível à custa dos que têm menos. As pessoas não querem comunidades de pessoas, querem, ora um comunismo, ora um feudalismo com o seu senhor, alternados ou em simultâneo, que é exactamente a mesma coisa. Não vai mudar nada, a não ser para pior. Vamos ter a já costumeira "recuperação da crise" para que se passe rapidamente à normalidade, à vida normal e às pessoas normais que vão votar quando lhes mandam, agora talvez com maior intensidade porque o governo as salvou de uma morte "iminente". Este vírus mata tanto como a gripe, mas a gripe  mé ligeiramente mais arrastada no tempo, a única diferença está nessa rapidez e a ausência de camas nos hospitais dá mais nas vistas como deu em Espanha e em Itália, hospitais pagos pelos contribuintes. Este vírus é apenas mais vistoso com um ou outro caso de reacções surpreendentes: diz-me que um chinês ficou preto! Devia ter acontecido ao Trump! E há pessoas que conseguem falar quase sem oxigénio! Espantoso! Deve ser uma preparação para Marte!  A democracia quer-se vistosa e espampanante. É o sistema do folclore, agrada a eleitos e eleitores e cerca-os a todos num caos delicioso que todos deglutam até ao osso, até não haver democracia nenhuma apenas a ditadura de grupos económicos, políticos, científicos, académicos, de comunicação social.  É uma democracia composta por pequenas ditaduras que asseguram o funcionamento da "liberdade de expressão" geral e das pequenas ditaduras que, somadas, formam a grande ditadura difusa como uma nuvem. Irrespirável. O centro deixou de existir o que existem são vários centros à imagem e semelhança do caos. De maneira que as pessoas querem mais do mesmo. E se possível pior ainda. Prefiro a noite.

sábado, 2 de maio de 2020

Civilização e barbárie


Os lobos e os cães são aparentados e muito parecidos. Bem conversado, um lobo torna-se um animal doméstico (que foi o que aconteceu aos cães), abandonados, os cães, formam uma matilha e tornam-se lobos (com um cabecilha). Quando colocamos lobos, cães e ovelhas em jogo, o que acontece é que a leitura humana coloca o lobo como inimigo. O lobo ataca as ovelhas que tanta falta fazem aos humanos e o cão torna-se amigo porque defende as ovelhas que tanta falta fazem aos humanos. Os humanos, por sua vez, precisam apenas dos animais domésticos, os cães e as ovelhas e dispensam o lobo, condenado a errar pelas montanhas por não ser um sujeito simpático e atacar antes de cumprimentar. Os humanos e os cães, cumprimentam sempre antes de atacarem, ou seja, apenas antes de se servirem uns dos outros. Têm essa coisa do cumprimento que os distingue. As ovelhas e os lobos não cumprimentam ninguém, andam para ali, uns a atacarem as ovelhas e as outras a atacarem o pasto. O cumprimento é o passaporte para uma hierarquia, bem lá no fundo, baseada apenas no próprio cumprimento. O cão come carne que até pode ser de ovelha e o homem faz o mesmo. O homem, que se gosta de confundir com as ovelhas, come ervas e carne. O homem é um grande lobo com a capacidade de não só cumprimentar como de fundar toda uma hierarquia a partir do cumprimento. Antes de se entrar num grande baile de animais devemos ter isto em conta. Isto se quisermos entrar num grande baile de animais. Mas na verdade, como diz Guénon, alguns não entram na dança macabra, já estão fora dela e tão fora dela que se tornam intocáveis. A hierarquia desaparece por excesso de qualidade. As pessoas verdadeiramente distintas são assim, as restantes passam a vida a utilizar metáforas para ver onde se encaixam melhor, se nos lobos selvagens, se nas ovelhas, se nos cães ou nas pessoas pouco ou nada diferentes umas das outras. Aquilo que as pessoas verdadeiramente diferentes fazem é constatarem, do lado de fora (porque não se encaixam em lado nenhum) o que se passa no palacete decadente (à imagem da nossa civilização actual) e observam o baile autofagico onde todos dançam conforme a música. Os que ficam de fora, não querem saber se são lobos, ovelhas, homens ou cães e cumprimentam se quiserem.