segunda-feira, 6 de março de 2023

O JARDIM DOS SÍMBOLOS IX

 



PORQUE ERAMOS ANTIGOS

 

Porque éramos antigos, tão antigos como a história da nossa terra de onde tínhamos vindo, falávamos através de gestos da História. Não havia nada de estranho no facto de moldarmos o barro e, com ele, fazermos as formas que nos transformavam em viajantes do tempo. Mesmo separados, visitávamos os mesmos lugares, nas mesmas noites de sacrilégio, quando o tempo se desfaz em pó e navegamos por entre as estrelas e mergulhamos nas ruínas do que fomos, como povo, como gente, como gente pós-diluviana, limpando as lágrimas, deixando a praia, subindo o monte, descendo para o vale, atravessando os portões do jardim onde nos voltámos a encontrar, esse local impreciso onde a chama do coração é uma rosa aberta, a pulsar. Mesmo distantes uns do outros, esculpíamos os mesmos espaços, os mesmos ídolos, os mesmos castros que viviam nos nossos dedos e na nossa noite e que dávamos à luz, devagar, sem saber porquê, tu cilindros vindos do forno com homens, mulheres e crianças, eu, esse espaço onde todos viveram, visto de cima, acompanhada pela águia que me dita os passos sempre que vou ver as vinhas, retorcidas, nodosas, só para saber se já doiram ao sol. E reproduzimos, passo a passo, os passos dados pelos nossos ancestrais só para sabermos (porque tudo o que não construímos, não sabemos), de onde viemos e o acordo que tínhamos feito com a vida e que era o de não a deixar morrer. Nunca. Nem que, para isso, tivéssemos de chorar todos os lagos, ou tivéssemos de reviver todos os dilúvios, embarcar em todas as tempestades, esgotarmo-nos na praia, em frente ao forno, pela noite fora, pelo dia, em cristais de suor, em lágrimas consentidas, em dores que esquecíamos pela vontade, em terrores macabros de perdição. Nem a luz que iluminava todas as noites, sombras, memórias e desejos, nos deixava apagar a vida ou de a resgatar da sua prisão temporal. Um dia apareceste-me perturbado porque tinhas tido um sonho do qual te lembravas. Tu nunca te lembravas dos sonhos, mas aquele tinha-te acompanhado pelo dia, como uma presença, segura, ao teu lado. Tinhas sonhado com uma casa com objectos que nunca tinhas visto acordado, mas que, no sonho, conhecias desde sempre. Como eu te conhecia desde sempre. Tu que moldaste ídolos de barro, homens mulheres e crianças, e esperaste pacientemente no forno, e esperaste pacientemente dias para que secassem das águas do dilúvio, não sabias ainda o quão antigo eras e por quanto tempo tinhas acompanhado esta terra. Tu, que dizias a brincar que de nada te lembravas, disseste-me que fomos concebidos no mesmo lugar… a gruta aberta ao mundo, a parte mais visível do jardim onde tantas e tantas coisas estavam ao contrário pelo lado celeste da verdade que o jardim contém. Gruta luminosa e aberta aos olhos de quem passava, infinitos objectos tão próximos de ti como os do teu sonho e lustres em forma de ovo, subindo e descendo em roldanas para onde me levaste só por saberes que os veria como só tu os verias… pequeno palácio-gruta aberto aos olhos de quem passava e que nem imaginavam, nem podiam imaginar o que ali se podia ver com os olhos que viviam no mais profundo segredo do nosso ser. No jardim dos símbolos encontra-se muito mais do que flores… muito mais do que o que se encontra num jardim da cidade. Podemos encontrar uma cidade inteira dentro desse jardim, cidades inteiras, com colinas e escadas, e deusas indianas dançando pela noite, e globos suspensos em colunas grandes como mundos em suspenso, à espera de o serem. O palácio que me deste a conhecer era aquele que tinha construído para mim sem saber do teu, enquanto dispunha os objectos, um a um… globos suspensos em colunas, estátuas de deusas indianas, flores incrustadas, copos, talheres, velas, sombras, flores incrustadas subindo os degraus, vasos, potes, vidros, flores incrustadas suspensas das colunas, louceiros, jarras, armários, flores incrustadas em toalhas de mesa, os teus objectos sempre estiveram comigo. Só quem vive lá ama os objectos. Só eles lhes veem o sentido para além das memórias e dos sentimentos, só eles abrem uma caixa para sentir o perfume da madeira, só eles lhes apanham a alma e os tocam como se fossem seres vivos. Como tu, no teu sonho, enquanto os seguravas por entre os teus dedos. Nessa gruta, o perfume solidifica-se em ângulos e curvas, em metais, madeiras, cerâmicas, cristais… denso, transparente e leve. Não se ensina, não se fala desses objectos, não se escrevem nem se declamam. Cantamos para esses objectos que vivem dentro da cidade-gruta alçada dentro do jardim… cantamos, pela tarde fora, aquilo que é mais um encontro, fazendo ecoar neles a nossa voz.


domingo, 5 de março de 2023

O JARDIM DOS SÍMBOLOS VIII

 



AZUL ESCURO E CORES

 

Dia frio de granizo. O céu azul escuro. Roxo, por vezes. O caminho estreito, de pedras. A descer para o vale onde os mortos vivem, onde os sonhos se passam, onde as curvas se esbatem. Os sentidos eclipsam-se, fica apenas a visão. O verde a crescer nas margens das pedras. Abraça-nos. O céu escuro. Roxo. Acima de nós. E olhei. E vi. No fundo do caminho, o arco íris. Um arco tão estreito que começava e acabava no estreito caminho. As cores vibravam fazendo adivinhar o ouro do sol. No vale dos sonhos. Vi. As cores impressionaram-me ali tão concentradas. Ainda trazia um ramo de flores na mão. Com as mesmas cores. Dois arco íris. Pequenos. Um perto, nas minhas mãos, o outro parecia não estar longe. Parei com o vestido branco a esvoaçar. As rendas, bandeiras bravas ao vento. Nos dedos, as cores. Dois arcos. Estendi o ramo e entrelacei-o no arco íris. Tão perto era. Tão perto estava. Nunca contei o segredo do arco íris do vale. Nem aquilo que fiz. Uni o céu e a terra por terem as mesmas cores. Rosas, jacintos, gerberas, alfazemas, hortenses…. Enlaçadas ao arco íris. E prendi tudo à minha memória que anda sempre comigo. Foi um segredo entre candelabros de prata e velas apagadas que nada viram e nada souberam no seu silêncio escuro. Só a luz o soube, como só ela sabe de tudo o que é luminoso. O estreito caminho que vai dar às estufas e aos pássaros com vasos de um lado e do outro. Sabia sempre quantas pétalas tinha cada flor. O malmequer, dezassete pétalas, vezes dois, trinta e quatro… não chegava a contar, sabia. Lá dentro o cenário era semelhante ao daqueles canários a quem dão pigmentos a comer para ficarem com as cores ainda mais vivas, mas o nosso alimento ali, e aquele que alimentava todo o cenário, era a nossa própria alma. A vida lá fora era uma bruma cinzenta que se dissipava à medida que entrávamos pelos portões de ferro forjado. Os objectos ganhavam vida e vontade e disseram-me em surdina que essa vida e essa vontade eram um favor dos deuses. Mas os deuses eramos nós. A realidade alterava-se à nossa passagem porque nós eramos a alma do mundo concentrada num ponto minúsculo do planeta, num jardim secreto cheio de segredos, numa inspiração onde o ar era diferente, os pássaros nos conheciam e os objectos apareciam e desapareciam conforme os olhos da nossa alma os viam. Tudo aparecia apenas porque a nossa alma via. Poder-se-ia pensar que era uma estranha capacidade de ver o futuro, de procurar aquilo que sempre esteve lá, isto para quem vinha de fora e nos observava a partir das brumas exteriores, mas, na verdade, o tempo lá dentro era inexistente e o espaço era moldável como a lama, o barro, a cerâmica, a tinta, o verniz, o fogo do forno, as palavras, os acontecimentos. Tudo vibrava e nada estava fixo. A nossa alma era permanentemente salva, por vagas, entre soluços, mergulhos nas águas negras do lago, renascimentos à medida que voltávamos a pisar o caminho das pedras de novo, em percurso inverso, subindo o monte, olhando para trás, para o vale, para o arco íris que reconciliava a terra e o céu e deixava que nos enlaçássemos nessa união como a vara de Hermes, eixo erguido na esperança do reajuste estático, aparentemente impossível, num jardim onde tudo se movia acompanhando a mais ínfima mudança da nossa alma.


sábado, 4 de março de 2023

OS POETAS

 


A saudade como impressão perene na alma é a fonte de toda a inquietação.  Mas algo nos assusta. Talvez seja a ausência de sussurros, tão próximos do silêncio. A urgência de se mostrar que se sabe, mesmo quando, ainda assim, se revela a ignorância. Tenho um aluno, bom aluno, com onze anos e que sabe tudo. Sabe todos os factos. Revela-os com uma voz viva... Surpreende-me o que sabe. Apanha tudo, fixa tudo e tem opinião sobre quase tudo. Fico muda a olhar para ele. Não tenho tanta memória como ele, nem grandes opiniões sobre muitas coisas, muitas mesmo, penso que cada vez menos algo me entusiasma assim para querer dar o contributo, sempre prescindível, sobre o que penso, porque não penso nada. Nem penso nada desse aluno, a não ser que me deixa muda, mais enrolada ainda no meu silêncio imenso que parece estar cheio de todas as coisas. É um frente a frente um pouco sui generis, ele fala e eu calo-me. Ele age como se fosse ele o professor e a única atitude que, como professora me dá para ter, é a de ficar calada, deixá-lo exprimir-se livremente e deixá-lo ficar contente com o que diz e por dizê-lo. É como um livro que se abre, uma lista imensa de factos onde todas as notas de rodapé são as opiniões dele. Quase parecem dois livros independentes, o dos factos e o das opiniões. Mas o meu coração continua cheio de saudade. Ainda não é este tipo de pessoas que me afastam desta sensação de ausência do passado e do futuro. Quedo no silêncio como se este fosse uma pedra no caminho que se tivesse tornado o próprio caminho. Daria a mão ao futuro desejado se este aparecesse, mesmo que não o imagine na totalidade. O futuro é uma sensação que trago envolto nas vestes da senhora saudade, bordadas com corações cheios, pendentes aqui e ali, como lágrimas reflectindo a distancia que vai de nós a nós, o futuro é tão grande e tão pleno que parece transbordar tudo o que se possa imaginar. Não é fixo, nem utópico como a cidade de Platão, não é preciso, nem se consegue descrever, porque tentar fazê-lo é transformá-lo numa ideologia qualquer. E ele não é nada disso. Sinto que não é nada disso. E a saudade dói. Olho para o aluno, neste silêncio que une a saudade ao futuro e as palavras dele só servem para que lhe dê uma boa nota, para que prossiga os estudos, para que tenha um bom emprego, para que seja um bom pai, se for caso disso, e para que continue pela vida fora a ser quem é. O meu silêncio ele não o ouve, nem o sonda. Encara-o como o pano de fundo das suas palavras. Mas o meu silêncio é tão cheio que não há espaço para o somatório de factos, de coisas, de ideias que são sempre feitas (ainda estou para conhecer uma ideia que não seja feita...)  com o qual ele o tenta bombardear em vão. Aos onze anos já sabem tudo. São precoces. A única novidade para eles seria a saudade, o sentimento de ausência de algo, de perfeição indescritível e as lágrimas geradas por ela. Porque quem não chorou de saudade nunca a sentiu. E quando não se chora por ela e por causa dela, tem-se o coração inquieto para ela. A impassibilidade Oriental que se aguente. Aqui, apenas a Saudade é impassível, imperturbável, mesmo que se chorem rios de tentativas de apaziguamento ou que se formem montanhas de inquietação. Da mesma maneira que temos uma sociedade na qual o fosso entre ricos e pobres é cada vez maior, também, e não como consequência disso, mas sim como causa desse fosso, temos os que sabem tudo e os ignorantes. Estes dois tipos de pessoas já estão em acção há muito tempo e foram eles os causadores desta desgraça contemporânea. Os poetas, herdeiros dos profetas, como bem observou Dalila P. da Costa, foram expulsos a pontapé, apedrejados e deixados encurralados, a chorar, com o coração inquieto, num canto. Por mais que no parlamento se citem os poetas, ninguém quer saber deles e, muito menos, ser um deles... O poeta nem sabe tudo nem é ignorante, é dispensável na sociedade dos afectos e dos afectados. O poeta foi infectado com o vírus da saudade. O mais pavoroso vírus, capaz de acabar com este permanente gladiar entre sabichões e ignorantes. Ao poeta não interessa o que sabe. Só interessa a saudade. E quando morre um desses portugueses, cada vez mais raros, morre um pouco da saudade, porque embora não o diga abertamente, a saudade ama os seus poetas.

 

 

 

O JARDIM DOS SÍMBOLOS VII

 



AS PALAVRAS ESCRITAS

 

Levei-te a passagem de um livro que passava pelo mesmo jardim. Igual. Tantos anos nos separavam do autor e, no entanto, o jardim era igual. Aquele lago num crepúsculo denso, já sem sol, onde cisnes deslizavam, brilhando na noite e as águas, com laivos de lua, revelavam o mistério sereno do azulado clima. Houve um dia que foi igual ao da passagem daquele livro que falava da vida de Leonardo. Igual até ao âmago. Quando os autores amam as suas personagens tocam a essência do tempo delas e, se calha às personagens nunca terem estado no tempo, então, os autores, tocam a essência do não tempo e podem ir ter a esse lago sereno, azul, e nós, se nos calha o jardim, se no nosso desenrolar dos acasos nos deixarmos guiar pelo coração, se deixarmos que as palavras deslizem sobre nós, então elas são proféticas. E a passagem do livro que passava pelo jardim passa por nós. Levei-te parte do jardim escrito. Leste. Os teus olhos ficaram mais claros. E lançaste as palavras para longe por saberes que o jardim nunca ficaria encerrado num livro, num pedaço dele, num parágrafo, numa frase, num verso. O jardim pulsava para os atentos e era indescritível pelos escritores, pelos poetas que se ocupavam da alma sem nunca a conhecerem verdadeiramente por não lhes ser possível sentir a brisa do fim de tarde tocando as pétalas, ou os vendavais em dias mais sonoros a agitar os ramos, ou o cheiro a terra e a luz, ou o modo como todo o jardim nos acenava à nossa passagem e nunca às palavras mortas, sepultadas em livros escritas por profetas que não sabiam do que falavam. Poderíamos passear por ele com páginas de versos soltos. O jardim nunca os leria. Só leria a nossa alma enquanto passávamos e só ouviria as nossas palavras de fogo que brotavam do vulcão do nosso coração. O jardim vivia no instante e, no instante, não havia memória, nem tempo. As abelhas zumbiam as palavras que éramos naquele preciso momento em que passávamos, de fogo, de fel, de mel. Se coincidiam ou não com o que os profetas tinham dito, isso não existia sequer. O olhar do jardim não se desviava nem sequer um pouco de nós, mesmo que lhe trouxéssemos, numa salva de prata, os mais perfumados versos dos poetas. Nós tínhamos nascido nele e éramos dele, sem desvios, sem dúvidas, sem perguntas, sem respostas, sem outros que não nós, sem o mundo lá fora escrito por profetas que não sabiam o que escreviam mesmo quando nos escreviam a nós, nascidos no jardim dos símbolos, mesmo quando tocavam o não tempo de quem lá morava. As profecias não existiam. Nós éramos o que acontecia. Deuses de pedra, dotados de vida, nascidos das sementes, e mais tarde do ovo, estrelícias dotadas de asas, pássaros outrora flores. Pássaros a caminho do mar, ribeiros a caminho do rio, a caminho do mar. Lançaste as palavras escritas para longe, e vi-as soltas, vi as letras a separarem-se, vi-as a rodopiar e a caírem no solo como sementes. Éramos deuses de pedra viva e os nossos gestos, demiúrgicos, mesmo quando recusávamos. Mas espreitei-te um dia e cantavas um verso em francês: “Quando o poeta morreu…” e sorrias, se sorrias, se amavas os poetas, no dia em que o poeta morreu foi nascer para o jardim, dizia o teu sorriso. Estavam, enfim, libertos das palavras e eram do jardim um dia pressentido, em terras de Viriato, lá, ainda longe do mar.


sexta-feira, 3 de março de 2023

O JARDIM DOS SÍMBOLOS VI

 


O AMANHECER

 

Neste extremo ocidental da Europa, amanhece ao crepúsculo no ponto mais improvável do dia e do espaço, quando a atmosfera fica ligeiramente roxa ou azul, ou com aquela cor que é entre ambas, e o céu, lá ao fundo no horizonte, chega a ficar de todas as cores, e o mar, em certos dias, parado, leitoso, espelhando os tons. No alto da falésia o tempo parou. A atmosfera morna. O céu não se move, pintado. O mar, parado, dourado. Ao crepúsculo amanheceu. E que crepúsculo é ele? O das almas. Antigas. Encontradas depois do encontro marcado. Olhando-se, luminosas. Anjos tão próximos. Amanhece quando sabemos que não estamos sós. Quando amanhecemos todos ao crepúsculo; a luz fosca, imprecisa, obriga-nos à concentração do olhar. Olhamo-nos e sabemos que nos vimos, tal qual somos, no amanhecer do crepúsculo. Perto desse lago onde nadam os cisnes àquela hora e que nos anunciam o sol nascente que brota como um sussurro, devagar, dentro de nós. É tão ou mais verdade, esse amanhecer, como essas tardes mágicas da infância, mar adentro, mar de algas, morno, o céu ao longe incendiado, o verde caindo sobre nós. É mais verdadeiro este crepúsculo novo. Que guarda ele? A vida. Respondem a sorrir. “Nós guardamos a vida onde ninguém a espera, onde alguém já não a espera”. Subitamente, os portões de ferro forjado antigo abrem-se, a coroa eleva-se, o dragão abre as asas, entramos, passo a passo, na vida. O mundo lá fora está morto.  Só naquele segredo se encontra a vida. O mundo lá fora é uma casca quebrada deixada para trás. O mundo lá fora não sabe ou pouco sabe do extremo ocidental da Europa, das terras de Viriato: no terreno de montes, por entre as pedras rudes e escorregadias, por entre os cardos, no frio gélido do Inverno, na dureza das gentes, nas facas moldadas em ferro, nas fogueiras pôr-do-sol, aqui e ali, por entre cabanas, perto das ovelhas subindo a colina, das cabras saltando nas pedras, das barbas rijas dos homens, dos músculos, das mãos calejadas, e delas, com pernas fortes a segurar o mundo no braços, a rir e a temer, ninguém os sabe. Estão onde ninguém os vê. Escondidos desde a Atlântida. Memórias turvadas pelas águas turvas do dilúvio. Ali, onde ninguém os vê, guardam o jardim que há-de vir a ser. Homens e mulheres, pressentem-no a nascer quando irrompem as flores na Primavera por entre as pedras rudes e frias. Pressentem o desvio das nuvens para Norte. Sentem o cheiro do mar trazido no vento. Sentem o jardim, ainda que não o vejam e que a neve pouco derreta, escoando-se pelos ribeiros que dançam com as serpentes, procurando o rio, procurando o mar. A Primavera é um pressentimento por aquelas terras, nunca a chega a ser, o amanhecer é um pressentimento, por aqueles penhascos e ainda não é o bordado das vestes delas, com cornucópias e flores, ainda não, mas a Saudade já nasceu há muito. É a Saudade que sempre esteve com eles, foi ela que com eles esteve, quando o céu caiu sobre a terra e quando o mar se levantou e virou os barcos, foi sempre ela que os acompanhou a nado, até à terra firme, e os beijou e os salvou quando os seus corpos, exaustos, na beira mágoa dos tempos, oscilavam nas ligeiras ondas de espuma, entre terra e mar, foi ela que pegou neles, foi ela que lhes cobriu as cabeças com os seus seios, foi ela que gritou, foi ela que os lavou com as suas lágrimas, foi ela que os beijou, foi ela que os gerou, foi ela que os puxou pela praia, foi ela que os carregou pelos montes, foram eles que a levaram em carros talhados a machado, foram eles que a choraram lá no alto e que a guardaram, e que a veneraram, foram eles que a salvaram, foram eles que lhe deram asas e que a fizeram subir ao céu, foram eles que lhe pediram o fogo dos deuses, foi ela que lhes trouxe as palavras de fogo com que hoje cantam a poesia no jardim dos símbolos perfeitos, pelo crepúsculo fora, vendo-se, tal como são, ao amanhecer. 


quinta-feira, 2 de março de 2023

O JARDIM DOS SÍMBOLOS V

 



O ENCONTRO MARCADO

 

É possível ver-te sem que durma estando tu tão distante. É possível que a tua imagem me invada. É possível falar contigo dentro dessa imagem. Não, não é um sonho desperto, nem um sonho enquanto dormimos. É a gota mais pura de eternidade que cai, apenas porque tem de cair, sobre nós. É possível reconhecer a tua voz por entre as de um coro, os teus gestos por entre os ramos ao vento, a tua grandeza por entre os astros. O tempo é uma máscara que colocamos para que a nossa eternidade não seja vista… e embora digam as multidões que somos todos iguais, no íntimo sabemos sempre donde viemos e que estamos mais ligados a umas pessoas que a outras. E o laço é tão forte e tão divino que não se desfaz nem com o desgaste da chuva, nem com as ondas do mar, nem com o vento… que é o mesmo que dizer, nem com o mundo profano, nem com os obstáculos da vida, nem com o desamor vindo como um vento… nós somos divinos, nós bebemos a liberdade desde a nossa origem, foi o nosso seio e é o nosso selo. O nosso maior mistério, o nosso maior segredo, tão grande, tão imenso como é o jardim donde viemos, e dentro dele, no espaço mais secreto dele, para lá do lago, coberto de nenúfares, negro, de Inverno, de chuva, sem fundo, sem fim… a nossa origem está para lá do fim. O ovo donde eclodimos é todo feito de luz, a gruta onde repousa é de luz e indo mais para dentro dela, num regresso agudo ao útero, até ao seu interior mais profundo está o seu coração, de onde brotámos como ovos depois de termos sido sementes nele, e o seu coração é a fonte de todas as coisas vivas, a fonte do nosso próprio coração. O coração do mundo. Foi por isso que quando te vi pela primeira vez, sorri. E me beijaste a mão e me disseste que no nosso jardim somos deuses de pedra dotados de vida… deuses de pedra que já foram sementes, que já são aves e que voamos para o mar só para o ver desde cima, peixes vistos do céu que contemplamos no tanque do recanto, nadando como se voassem. E como voamos no céu da criação, e como dançamos nele valsas e danças das quais ninguém sabe o nome por serem feitas de sons caindo sobre nós em gotas de eternidade e por nelas colorirmos o mundo e reinventarmos o jardim, tantas vezes, como uma cornucópia da abundância: jacintos mudando de lugar, aves, cantando em gaiolas abertas douradas, crisântemos brancos em fila, gerberas indagando-nos com o olhar enquanto as mudamos de sítio, muros que se levantam, muros que se derrubam, abrindo caminhos, aquários com  peixes de cauda de noiva, leves sedas em água, leves vestes como nenúfares em água, à superfície, nadamos à superfície, onde a água está mais quente e onde a chuva parou e o sol brilha, aquecendo as lágrimas do lago donde emergimos porque há um vaso para mudar de lugar, um crisântemo branco a espreitar, uma gerbera a indagar… e muros, baixos, pequenos, pedra a pedra, à espera de nós, caminhos a libertar, a abrirem-se aos nossos pés quando saímos dessas águas primordiais, da morte fria onde caímos como poeira e nos deixámos levar, para lá do lago, além, mais, além, nessa gruta de luz, onde fomos coração, semente e aves eclodindo, piando em fogo por alimento, fénix coloridas, voando acima dos muros, só para poder ver o mar e os peixes em baixo, nas águas de baixo, nas águas inferiores, ovo do mundo …. Ganso… cisne…curvas da natureza. Encontrei-te, deste-me a mão e corremos pelo nosso jardim.


quarta-feira, 1 de março de 2023

O JARDIM DOS SÍMBOLOS IV

 


O CAMINHO DAS PEDRAS

 

Levo-te pelo caminho das pedras, devagar, porque podes escorregar. Choveu. A água percorre os intervalos entre elas. Corre sempre em direcção ao mar. Corre sempre para mais baixo, segue a linha da gravidade. Segue o íman do mundo. Tem tendência a concentrar-se lá em baixo, onde fica o lago. Tem tendência a ser sempre primordial. Corre para o princípio dos outros e para o princípio de si. E descemos seguindo-a, levamos folhas dispersas connosco, levamos as poeiras e os pensamentos; nunca descemos só um pouco, descemos com tudo, desde o início, em direcção às águas primordiais, ao lago, no fundo do jardim. Descem todos os encontros, descem todas as palavras e todas as manhãs, descem com a água que desliza. A água é pesada. O nosso passado pesa-nos descendo, sobre as pedras, sobre nós. O céu cinzento desce sobre os nossos ombros, o céu ainda mais escuro, ao fundo, sobrecarrega-nos com o seu peso invencível, os braços descem sobre o nosso corpo, a nossa cabeça inclina-se na direcção das pedras que descem, e desce com elas, descem as memórias, desce o cansaço. E a chuva desce sobre o nosso rosto. E o lago espera-nos ao fundo, lá em baixo. Lá salpicado de gotas e de nenúfares. E oásis absorvem as águas nas suas bermas. Bebem as águas que chegaram do céu, bebem as águas que chegaram das pedras, bebem-nos as mãos geladas da gelada manhã até não as sentirmos… e os pensamentos são um grito de dor e não podem voar mais alto do que o frio porque o frio, do lago, da manhã, das águas, e de nós que descemos com elas, são o encontro último antes de um último suspiro de vida ante a visão dos nenúfares flutuantes, atravessados por gotas de chuva. E o último suspiro de vida são esse nenúfares que se deixam deslizar sobre as águas frias do lago, os últimos rostos de vida sobre as águas, os últimos seres, antes de nos afundarmos nas águas, e de ficarmos frios, no seu fundo, onde já não se ouvem as vozes nem se vêem os corações. Águas primordiais, paradas, escuras, no lago de Inverno, o nosso corpo oculto sob nenúfares, no lago das nossas lágrimas pesadas, túmulo sem saber que o é, concentradas as nossas lágrimas tão pesadas, guardam-nos desde o princípio, cercam-nos desde o princípio, e vão gelando nas pedras frias, tão frias, e descem com os pensamentos sob o peso do nosso coração, deslizam sobre as pedras, e arrastam-nos como poeira, e sepultam-nos no frio das águas primordiais.