sábado, 4 de março de 2023

O JARDIM DOS SÍMBOLOS VII

 



AS PALAVRAS ESCRITAS

 

Levei-te a passagem de um livro que passava pelo mesmo jardim. Igual. Tantos anos nos separavam do autor e, no entanto, o jardim era igual. Aquele lago num crepúsculo denso, já sem sol, onde cisnes deslizavam, brilhando na noite e as águas, com laivos de lua, revelavam o mistério sereno do azulado clima. Houve um dia que foi igual ao da passagem daquele livro que falava da vida de Leonardo. Igual até ao âmago. Quando os autores amam as suas personagens tocam a essência do tempo delas e, se calha às personagens nunca terem estado no tempo, então, os autores, tocam a essência do não tempo e podem ir ter a esse lago sereno, azul, e nós, se nos calha o jardim, se no nosso desenrolar dos acasos nos deixarmos guiar pelo coração, se deixarmos que as palavras deslizem sobre nós, então elas são proféticas. E a passagem do livro que passava pelo jardim passa por nós. Levei-te parte do jardim escrito. Leste. Os teus olhos ficaram mais claros. E lançaste as palavras para longe por saberes que o jardim nunca ficaria encerrado num livro, num pedaço dele, num parágrafo, numa frase, num verso. O jardim pulsava para os atentos e era indescritível pelos escritores, pelos poetas que se ocupavam da alma sem nunca a conhecerem verdadeiramente por não lhes ser possível sentir a brisa do fim de tarde tocando as pétalas, ou os vendavais em dias mais sonoros a agitar os ramos, ou o cheiro a terra e a luz, ou o modo como todo o jardim nos acenava à nossa passagem e nunca às palavras mortas, sepultadas em livros escritas por profetas que não sabiam do que falavam. Poderíamos passear por ele com páginas de versos soltos. O jardim nunca os leria. Só leria a nossa alma enquanto passávamos e só ouviria as nossas palavras de fogo que brotavam do vulcão do nosso coração. O jardim vivia no instante e, no instante, não havia memória, nem tempo. As abelhas zumbiam as palavras que éramos naquele preciso momento em que passávamos, de fogo, de fel, de mel. Se coincidiam ou não com o que os profetas tinham dito, isso não existia sequer. O olhar do jardim não se desviava nem sequer um pouco de nós, mesmo que lhe trouxéssemos, numa salva de prata, os mais perfumados versos dos poetas. Nós tínhamos nascido nele e éramos dele, sem desvios, sem dúvidas, sem perguntas, sem respostas, sem outros que não nós, sem o mundo lá fora escrito por profetas que não sabiam o que escreviam mesmo quando nos escreviam a nós, nascidos no jardim dos símbolos, mesmo quando tocavam o não tempo de quem lá morava. As profecias não existiam. Nós éramos o que acontecia. Deuses de pedra, dotados de vida, nascidos das sementes, e mais tarde do ovo, estrelícias dotadas de asas, pássaros outrora flores. Pássaros a caminho do mar, ribeiros a caminho do rio, a caminho do mar. Lançaste as palavras escritas para longe, e vi-as soltas, vi as letras a separarem-se, vi-as a rodopiar e a caírem no solo como sementes. Éramos deuses de pedra viva e os nossos gestos, demiúrgicos, mesmo quando recusávamos. Mas espreitei-te um dia e cantavas um verso em francês: “Quando o poeta morreu…” e sorrias, se sorrias, se amavas os poetas, no dia em que o poeta morreu foi nascer para o jardim, dizia o teu sorriso. Estavam, enfim, libertos das palavras e eram do jardim um dia pressentido, em terras de Viriato, lá, ainda longe do mar.


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