AZUL ESCURO E CORES
Dia frio de granizo. O céu azul escuro. Roxo, por
vezes. O caminho estreito, de pedras. A descer para o vale onde os mortos
vivem, onde os sonhos se passam, onde as curvas se esbatem. Os sentidos
eclipsam-se, fica apenas a visão. O verde a crescer nas margens das pedras.
Abraça-nos. O céu escuro. Roxo. Acima de nós. E olhei. E vi. No fundo do
caminho, o arco íris. Um arco tão estreito que começava e acabava no estreito
caminho. As cores vibravam fazendo adivinhar o ouro do sol. No vale dos sonhos.
Vi. As cores impressionaram-me ali tão concentradas. Ainda trazia um ramo de
flores na mão. Com as mesmas cores. Dois arco íris. Pequenos. Um perto, nas
minhas mãos, o outro parecia não estar longe. Parei com o vestido branco a
esvoaçar. As rendas, bandeiras bravas ao vento. Nos dedos, as cores. Dois
arcos. Estendi o ramo e entrelacei-o no arco íris. Tão perto era. Tão perto
estava. Nunca contei o segredo do arco íris do vale. Nem aquilo que fiz. Uni o
céu e a terra por terem as mesmas cores. Rosas, jacintos, gerberas, alfazemas,
hortenses…. Enlaçadas ao arco íris. E prendi tudo à minha memória que anda
sempre comigo. Foi um segredo entre candelabros de prata e velas apagadas que
nada viram e nada souberam no seu silêncio escuro. Só a luz o soube, como só
ela sabe de tudo o que é luminoso. O estreito caminho que vai dar às estufas e
aos pássaros com vasos de um lado e do outro. Sabia sempre quantas pétalas
tinha cada flor. O malmequer, dezassete pétalas, vezes dois, trinta e quatro…
não chegava a contar, sabia. Lá dentro o cenário era semelhante ao daqueles
canários a quem dão pigmentos a comer para ficarem com as cores ainda mais
vivas, mas o nosso alimento ali, e aquele que alimentava todo o cenário, era a
nossa própria alma. A vida lá fora era uma bruma cinzenta que se dissipava à
medida que entrávamos pelos portões de ferro forjado. Os objectos ganhavam vida
e vontade e disseram-me em surdina que essa vida e essa vontade eram um favor
dos deuses. Mas os deuses eramos nós. A realidade alterava-se à nossa passagem
porque nós eramos a alma do mundo concentrada num ponto minúsculo do planeta,
num jardim secreto cheio de segredos, numa inspiração onde o ar era diferente,
os pássaros nos conheciam e os objectos apareciam e desapareciam conforme os
olhos da nossa alma os viam. Tudo aparecia apenas porque a nossa alma via.
Poder-se-ia pensar que era uma estranha capacidade de ver o futuro, de procurar
aquilo que sempre esteve lá, isto para quem vinha de fora e nos observava a
partir das brumas exteriores, mas, na verdade, o tempo lá dentro era
inexistente e o espaço era moldável como a lama, o barro, a cerâmica, a tinta,
o verniz, o fogo do forno, as palavras, os acontecimentos. Tudo vibrava e nada estava
fixo. A nossa alma era permanentemente salva, por vagas, entre soluços,
mergulhos nas águas negras do lago, renascimentos à medida que voltávamos a
pisar o caminho das pedras de novo, em percurso inverso, subindo o monte,
olhando para trás, para o vale, para o arco íris que reconciliava a terra e o
céu e deixava que nos enlaçássemos nessa união como a vara de Hermes, eixo
erguido na esperança do reajuste estático, aparentemente impossível, num jardim
onde tudo se movia acompanhando a mais ínfima mudança da nossa alma.
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