domingo, 5 de março de 2023

O JARDIM DOS SÍMBOLOS VIII

 



AZUL ESCURO E CORES

 

Dia frio de granizo. O céu azul escuro. Roxo, por vezes. O caminho estreito, de pedras. A descer para o vale onde os mortos vivem, onde os sonhos se passam, onde as curvas se esbatem. Os sentidos eclipsam-se, fica apenas a visão. O verde a crescer nas margens das pedras. Abraça-nos. O céu escuro. Roxo. Acima de nós. E olhei. E vi. No fundo do caminho, o arco íris. Um arco tão estreito que começava e acabava no estreito caminho. As cores vibravam fazendo adivinhar o ouro do sol. No vale dos sonhos. Vi. As cores impressionaram-me ali tão concentradas. Ainda trazia um ramo de flores na mão. Com as mesmas cores. Dois arco íris. Pequenos. Um perto, nas minhas mãos, o outro parecia não estar longe. Parei com o vestido branco a esvoaçar. As rendas, bandeiras bravas ao vento. Nos dedos, as cores. Dois arcos. Estendi o ramo e entrelacei-o no arco íris. Tão perto era. Tão perto estava. Nunca contei o segredo do arco íris do vale. Nem aquilo que fiz. Uni o céu e a terra por terem as mesmas cores. Rosas, jacintos, gerberas, alfazemas, hortenses…. Enlaçadas ao arco íris. E prendi tudo à minha memória que anda sempre comigo. Foi um segredo entre candelabros de prata e velas apagadas que nada viram e nada souberam no seu silêncio escuro. Só a luz o soube, como só ela sabe de tudo o que é luminoso. O estreito caminho que vai dar às estufas e aos pássaros com vasos de um lado e do outro. Sabia sempre quantas pétalas tinha cada flor. O malmequer, dezassete pétalas, vezes dois, trinta e quatro… não chegava a contar, sabia. Lá dentro o cenário era semelhante ao daqueles canários a quem dão pigmentos a comer para ficarem com as cores ainda mais vivas, mas o nosso alimento ali, e aquele que alimentava todo o cenário, era a nossa própria alma. A vida lá fora era uma bruma cinzenta que se dissipava à medida que entrávamos pelos portões de ferro forjado. Os objectos ganhavam vida e vontade e disseram-me em surdina que essa vida e essa vontade eram um favor dos deuses. Mas os deuses eramos nós. A realidade alterava-se à nossa passagem porque nós eramos a alma do mundo concentrada num ponto minúsculo do planeta, num jardim secreto cheio de segredos, numa inspiração onde o ar era diferente, os pássaros nos conheciam e os objectos apareciam e desapareciam conforme os olhos da nossa alma os viam. Tudo aparecia apenas porque a nossa alma via. Poder-se-ia pensar que era uma estranha capacidade de ver o futuro, de procurar aquilo que sempre esteve lá, isto para quem vinha de fora e nos observava a partir das brumas exteriores, mas, na verdade, o tempo lá dentro era inexistente e o espaço era moldável como a lama, o barro, a cerâmica, a tinta, o verniz, o fogo do forno, as palavras, os acontecimentos. Tudo vibrava e nada estava fixo. A nossa alma era permanentemente salva, por vagas, entre soluços, mergulhos nas águas negras do lago, renascimentos à medida que voltávamos a pisar o caminho das pedras de novo, em percurso inverso, subindo o monte, olhando para trás, para o vale, para o arco íris que reconciliava a terra e o céu e deixava que nos enlaçássemos nessa união como a vara de Hermes, eixo erguido na esperança do reajuste estático, aparentemente impossível, num jardim onde tudo se movia acompanhando a mais ínfima mudança da nossa alma.


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