PORQUE ERAMOS ANTIGOS
Porque éramos antigos, tão antigos como a história da
nossa terra de onde tínhamos vindo, falávamos através de gestos da História.
Não havia nada de estranho no facto de moldarmos o barro e, com ele, fazermos
as formas que nos transformavam em viajantes do tempo. Mesmo separados,
visitávamos os mesmos lugares, nas mesmas noites de sacrilégio, quando o tempo
se desfaz em pó e navegamos por entre as estrelas e mergulhamos nas ruínas do
que fomos, como povo, como gente, como gente pós-diluviana, limpando as
lágrimas, deixando a praia, subindo o monte, descendo para o vale, atravessando
os portões do jardim onde nos voltámos a encontrar, esse local impreciso onde a
chama do coração é uma rosa aberta, a pulsar. Mesmo distantes uns do outros,
esculpíamos os mesmos espaços, os mesmos ídolos, os mesmos castros que viviam
nos nossos dedos e na nossa noite e que dávamos à luz, devagar, sem saber
porquê, tu cilindros vindos do forno com homens, mulheres e crianças, eu, esse
espaço onde todos viveram, visto de cima, acompanhada pela águia que me dita os
passos sempre que vou ver as vinhas, retorcidas, nodosas, só para saber se já
doiram ao sol. E reproduzimos, passo a passo, os passos dados pelos nossos
ancestrais só para sabermos (porque tudo o que não construímos, não sabemos),
de onde viemos e o acordo que tínhamos feito com a vida e que era o de não a
deixar morrer. Nunca. Nem que, para isso, tivéssemos de chorar todos os lagos,
ou tivéssemos de reviver todos os dilúvios, embarcar em todas as tempestades,
esgotarmo-nos na praia, em frente ao forno, pela noite fora, pelo dia, em
cristais de suor, em lágrimas consentidas, em dores que esquecíamos pela
vontade, em terrores macabros de perdição. Nem a luz que iluminava todas as noites,
sombras, memórias e desejos, nos deixava apagar a vida ou de a resgatar da sua
prisão temporal. Um dia apareceste-me perturbado porque tinhas tido um sonho do
qual te lembravas. Tu nunca te lembravas dos sonhos, mas aquele tinha-te
acompanhado pelo dia, como uma presença, segura, ao teu lado. Tinhas sonhado
com uma casa com objectos que nunca tinhas visto acordado, mas que, no sonho,
conhecias desde sempre. Como eu te conhecia desde sempre. Tu que moldaste
ídolos de barro, homens mulheres e crianças, e esperaste pacientemente no
forno, e esperaste pacientemente dias para que secassem das águas do dilúvio,
não sabias ainda o quão antigo eras e por quanto tempo tinhas acompanhado esta
terra. Tu, que dizias a brincar que de nada te lembravas, disseste-me que fomos
concebidos no mesmo lugar… a gruta aberta ao mundo, a parte mais visível do
jardim onde tantas e tantas coisas estavam ao contrário pelo lado celeste da
verdade que o jardim contém. Gruta luminosa e aberta aos olhos de quem passava,
infinitos objectos tão próximos de ti como os do teu sonho e lustres em forma
de ovo, subindo e descendo em roldanas para onde me levaste só por saberes que
os veria como só tu os verias… pequeno palácio-gruta aberto aos olhos de quem
passava e que nem imaginavam, nem podiam imaginar o que ali se podia ver com os
olhos que viviam no mais profundo segredo do nosso ser. No jardim dos símbolos
encontra-se muito mais do que flores… muito mais do que o que se encontra num
jardim da cidade. Podemos encontrar uma cidade inteira dentro desse jardim,
cidades inteiras, com colinas e escadas, e deusas indianas dançando pela noite,
e globos suspensos em colunas grandes como mundos em suspenso, à espera de o
serem. O palácio que me deste a conhecer era aquele que tinha construído para mim
sem saber do teu, enquanto dispunha os objectos, um a um… globos suspensos em
colunas, estátuas de deusas indianas, flores incrustadas, copos, talheres,
velas, sombras, flores incrustadas subindo os degraus, vasos, potes, vidros,
flores incrustadas suspensas das colunas, louceiros, jarras, armários, flores
incrustadas em toalhas de mesa, os teus objectos sempre estiveram comigo. Só
quem vive lá ama os objectos. Só eles lhes veem o sentido para além das
memórias e dos sentimentos, só eles abrem uma caixa para sentir o perfume da
madeira, só eles lhes apanham a alma e os tocam como se fossem seres vivos.
Como tu, no teu sonho, enquanto os seguravas por entre os teus dedos. Nessa
gruta, o perfume solidifica-se em ângulos e curvas, em metais, madeiras, cerâmicas,
cristais… denso, transparente e leve. Não se ensina, não se fala desses
objectos, não se escrevem nem se declamam. Cantamos para esses objectos que
vivem dentro da cidade-gruta alçada dentro do jardim… cantamos, pela tarde
fora, aquilo que é mais um encontro, fazendo ecoar neles a nossa voz.
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