O AMANHECER
Neste extremo ocidental da Europa, amanhece ao
crepúsculo no ponto mais improvável do dia e do espaço, quando a atmosfera fica
ligeiramente roxa ou azul, ou com aquela cor que é entre ambas, e o céu, lá ao
fundo no horizonte, chega a ficar de todas as cores, e o mar, em certos dias,
parado, leitoso, espelhando os tons. No alto da falésia o tempo parou. A
atmosfera morna. O céu não se move, pintado. O mar, parado, dourado. Ao
crepúsculo amanheceu. E que crepúsculo é ele? O das almas. Antigas. Encontradas
depois do encontro marcado. Olhando-se, luminosas. Anjos tão próximos. Amanhece
quando sabemos que não estamos sós. Quando amanhecemos todos ao crepúsculo; a
luz fosca, imprecisa, obriga-nos à concentração do olhar. Olhamo-nos e sabemos
que nos vimos, tal qual somos, no amanhecer do crepúsculo. Perto desse lago
onde nadam os cisnes àquela hora e que nos anunciam o sol nascente que brota
como um sussurro, devagar, dentro de nós. É tão ou mais verdade, esse
amanhecer, como essas tardes mágicas da infância, mar adentro, mar de algas,
morno, o céu ao longe incendiado, o verde caindo sobre nós. É mais verdadeiro
este crepúsculo novo. Que guarda ele? A vida. Respondem a sorrir. “Nós
guardamos a vida onde ninguém a espera, onde alguém já não a espera”.
Subitamente, os portões de ferro forjado antigo abrem-se, a coroa eleva-se, o
dragão abre as asas, entramos, passo a passo, na vida. O mundo lá fora está
morto. Só naquele segredo se encontra a
vida. O mundo lá fora é uma casca quebrada deixada para trás. O mundo lá fora
não sabe ou pouco sabe do extremo ocidental da Europa, das terras de Viriato:
no terreno de montes, por entre as pedras rudes e escorregadias, por entre os
cardos, no frio gélido do Inverno, na dureza das gentes, nas facas moldadas em
ferro, nas fogueiras pôr-do-sol, aqui e ali, por entre cabanas, perto das
ovelhas subindo a colina, das cabras saltando nas pedras, das barbas rijas dos
homens, dos músculos, das mãos calejadas, e delas, com pernas fortes a segurar
o mundo no braços, a rir e a temer, ninguém os sabe. Estão onde ninguém os vê.
Escondidos desde a Atlântida. Memórias turvadas pelas águas turvas do dilúvio.
Ali, onde ninguém os vê, guardam o jardim que há-de vir a ser. Homens e
mulheres, pressentem-no a nascer quando irrompem as flores na Primavera por
entre as pedras rudes e frias. Pressentem o desvio das nuvens para Norte.
Sentem o cheiro do mar trazido no vento. Sentem o jardim, ainda que não o vejam
e que a neve pouco derreta, escoando-se pelos ribeiros que dançam com as
serpentes, procurando o rio, procurando o mar. A Primavera é um pressentimento
por aquelas terras, nunca a chega a ser, o amanhecer é um pressentimento, por
aqueles penhascos e ainda não é o bordado das vestes delas, com cornucópias e
flores, ainda não, mas a Saudade já nasceu há muito. É a Saudade que sempre
esteve com eles, foi ela que com eles esteve, quando o céu caiu sobre a terra e
quando o mar se levantou e virou os barcos, foi sempre ela que os acompanhou a
nado, até à terra firme, e os beijou e os salvou quando os seus corpos,
exaustos, na beira mágoa dos tempos, oscilavam nas ligeiras ondas de espuma,
entre terra e mar, foi ela que pegou neles, foi ela que lhes cobriu as cabeças
com os seus seios, foi ela que gritou, foi ela que os lavou com as suas
lágrimas, foi ela que os beijou, foi ela que os gerou, foi ela que os puxou
pela praia, foi ela que os carregou pelos montes, foram eles que a levaram em
carros talhados a machado, foram eles que a choraram lá no alto e que a
guardaram, e que a veneraram, foram eles que a salvaram, foram eles que lhe
deram asas e que a fizeram subir ao céu, foram eles que lhe pediram o fogo dos
deuses, foi ela que lhes trouxe as palavras de fogo com que hoje cantam a
poesia no jardim dos símbolos perfeitos, pelo crepúsculo fora, vendo-se, tal
como são, ao amanhecer.
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