quarta-feira, 27 de novembro de 2024

Pior a emenda

 


Continua a ser pior a emenda do que o soneto. Talvez tenha sido por isso que sonhei com uma cabra autista que só estabelecia contacto comigo.  Identifiquei-me com a cabra e com o seu autismo. Tenho almoçado com autistas ultimamente. Aprende-se com eles o momento do momento. Ainda ouço comentadores televisivos a sugerirem ao público que tenha plena dos políticos pois estar no lugar deles não é fácil. Dá para rir sem controlo. Estar em qualquer lugar hoje não e fácil, no deles, no nosso ou no dos vizinhos. A época é difícil, de compaixão e de auto compaixão. Sobra, por isso, a cabra autista, a única que sobrevive ao caos sem tirar aqueles que se enfiam nos bunkers que já estão ser construídos. Ligeiramente saltitante, a cabra lá vai andando, como a dona do sonho. E a dona é tão autista, mas tão autista que só partilha um sonho: o da cabra autista, isto para sobreviver. Qualquer tentativa de emenda que faça é pior do que o soneto, porque logo se levantam  espadas, ou de um lado ou de outros e o que a cabra quer é paz, ainda que o soneto não seja grande coisa. Em tempo de guerra, que se danem os sonetos, apenas as flores são apetecíveis, quer para a cabra gulosa, quer para a dona do sonho, talentosa. 

quinta-feira, 14 de novembro de 2024

O que me adormece e o que me acorda


Dei por mim tentar ver uns vídeos com filosofos portugueses a falarem sobre a alma lusa. Não consegui ver até ao fim nenhum deles devido aos excesso de sono que me causaram. E pensei nos tempos em que frequentava colóquios e encontros e pensei "como é que aguentei?". Hoje já não tinha paciência e o simples facto de ter de me deslocar para ouvir palavras repetidas até ao infinito é um pensamento que me causa aflição. Tenho andado a ver uns vídeos que falam muito de drogas que provocam estados alterados de consciência. Tem sido muito interessante, sobretudo porque essas drogas não me atraem nada. Até agora tem sido tudo "ao natural" e suficientemente alucinante para perceber porque é que as palestras filosóficas me dão sono. Não há mistério filosófico como o da nossa própria vida... Encontro-me a dar aulas e o estado do país mede-se nas escolas. Está podre. Não é o facto de haver alguns filósofos que falam para o público que tem alterado a degradação total da sociedade portuguesa. É a absolutamente inútil. O que é útil, mesmo, é chorar por dentro. Não é vir lamentar um passado que não volta mais com lágrimas de filosofia. É chorar mesmo com o coração todo e berrar a sério, bem dentro de nós. É disfarcar-mo-nos de gente comum e andar no submundo em que se tornou a sociedade portuguesa para que todos não dêem pelo nosso choro, pelo  nosso desgosto, pelo nosso desagrado. Nada se tornou mais vão e mais perigoso do que as palavras. Não valem nada e podem matar. Falar é ser bipolar. Chorar é ser uno. No outro dia fui montar a exposição com quadros que já têm quinhentos anos de estadia em minha casa. Perguntou-me a senhora responsável pela exposição o que significam os quadros. Dei por mim a respirar, a sorrir e a não me apetecer explicar nada porque se fosse verdadeiramente a explicar a senhora ficaria a chorar cheia de alma pelo suicídio coletivo do país e do mundo. Pausei. E ainda a sorrir disse-lhe que eram símbolos. Total inaptidão no olhar da senhora. Parecia que lhe tinha falado marcianez. Levou a conversa para a auto-ajuda, não sei porquê. Sei. Por causa da literatura de cordel dos supermercados. Sorri, simpática, a pensar que tinha de me ir embora dali o mais depressa possível. Não queria explicar nada. Não tinha nada a dizer. Quando estamos furiosos com tudo, é melhor não dizer nada. Mais vale chorar e berrar para dentro até que alguém ouça lá em cima. Depois pus-me a caminho por colinas verdejantes e um sol radioso sobre o campo de outono. Aí já não chorei. Amei. Amei aquele verde gritante em contraste com um sol que estava ali só para iluminar os montes e as folhas douradas e os vários verdes ao longo das colinas. Se estivesse bem com o mundo como anda, estava louca, assim, estava sã a ver o verde que não parecia deste mundo. As palavras dos filósofos são dolorosamente vagarosas em comparação com a exaltação que me provocou aquele verde. Não sei explicar o desalento que me invade. Não é nenhuma depressão, nem loucura. Penso que é uma descrença momentânea na humanidade. Uma espécie de certeza de que "não vale a pena" sequer tentar explicar nem pinturas, nem símbolos, nem a alucinação que tem sido a minha vida sem ter experimentado qualquer produto alucinante. Não é uma descrença em mim, é mesmo na humanidade porque anda a enveredar por caminhos que não sei se têm retorno. Eu retorno sempre. A humanidade parece perdida. Penso que há uma espécie de guerra surda onde exércitos de lados opostos se degladiam, nem sei bem porquê. Mas dizem as alquimias que é necessária a decomposição. É, é doloroso ter de assistir a isto. Que pensam as águias lá em cima de tudo isto, enquanto olham cá para baixo? A filosofia não me interessa, mas o passado é delicioso. Perco-me na pré-história como num labirinto mágico. Também poderia ter dito à senhora que as pinturas eram estelas, rituais apanhados a meio, seres maravilhosos doutro universo. Mas o olhar moderno que se deitam às estelas é idiota, como se fossem uma imagem tosca a comparar com os efeitos especiais de um qualquer filme. Ou então, momentaneamente, um olhar inquiridor que logo se esmorece porque já é hora de almoço. O olhar fica cinzento e baço rapidamente, tão diferente das colinas verdes ao sol. Onde estão os vivos? Estive a ver o olhar dos filósofos e não brilhavam. Não tinham vigor na voz. Arrastavam as palavras como chinelos por casa. Dependendo do clima, mostro a minha vitalidade. Mas é cada vez mais difícil. Escondo-me e disfarço-me para fingir que sou deles, que sou eles. Ando nas vielas dos corredores da escola e bebo galões ao lanche. Faço o possível para que não me vejam os olhos e o meu verdadeiro sorriso. Faço o possível para que não saibam da alegria que sinto quando vejo os montes e os pequenos vales onde acima as águias espreitam. Ninguém pode saber nem disso, nem das minhas lágrimas, nem dos meus berros que lanço aos céus. Não o faço por maldade. Faço-o por bondade e bondade também para mim mesma. Se me esconder dou a mim mesma a hipótese de não ter de me explicar e de arrastar as palavras como se fossem chinelos velhos pelos cantos do mundo. Porque sempre que falamos somos esses filósofos que nos fazem dormir. E, a ser qualquer coisa, prefiro ser aquela águia cujos pensamentos não adivinhamos e que paira acima da paisagem, engolindo-a com o olhar. 









 

domingo, 13 de outubro de 2024

Camionista





A tabuleta assim, pendurada, esquecida, abandonada à indiferença, remete, mesmo que não queira, não a uma qualquer nostalgia, porque essas são sempre agradáveis, mas sim ao arremesso que o vento dá ao que quer, quando quer. Passámos do Portugal amordaçado do Ary, para o Portugal arremessado para um qualquer canto. Em abono da verdade, estamos sujeitos ao vento arremessados para onde calha. Nem com um reles orçamento se encontra um acordo, quanto mais em relação ao resto. Estamos num mundo sem ponta de poesia e Portugal não tem muito jeito para este tipo de mundo. Neste mundo das falsas notícias, tudo é, em contramão, realidade férrea, metálica, pesada e insistente naquilo que a realidade tem de abrutalhado. O mundo é um camionista ao volante, braço tatuado para fora da janela com o cotovelo ao céu, barba de vários dias, daquela que pica como espinhos, desmazelo orgulhoso de si, palito nos dentes, trincado depois de remover restos do almoço com sabor a banha servido à beira da estrada, óculos escuros espelhados onde se adivinha a tempestade próxima e reflectida, ténis velhos, do trabalho, saltando entre o acelerador e o travão. Calças de ganga, americanas, claro, porque a América é azul e é lá que está o Deus, qualquer que este seja; na rádio, a música pimba porque povo que é povo é brejeiro, goza e ri com um humor abaixo do infantil. A estrada é longa e leva ao objectivo do mundo que é um armazém onde se retêm produtos por pouco tempo, seja aí, nas lojas ou nas casas. Os camionistas não são mercadores, nem têm essa dignidade, são iguais ao seu camião, brutos, feios, largando fumo, com letras gastas e placas a balançar ao vento porque ninguém está para pregar um prego e acabar com o balanço. Já teve mais charme este mundo. E lá por dentro, no motor do camião, a combustão das guerras cujas explosões o fazem andar, andar, em direção ao armazém dos produtos, transeuntes vindos de uma qualquer fábrica que não é nem melhor, nem mais feliz que o camionista.  Nunca o silêncio foi tão de ouro. Mas ouro velho, daquele que é o de um pôr do sol de Outono. Ouro que se distancia, para além de ser silêncio. O silêncio distanciado. O ouro? Sabem lá do ouro, da luz ou da poesia que é a mesma coisa. Para se ser decente, hoje, tem de se andar com o coração magoado. Se não se anda assim, somos camionistas agarrados ao tempo e ao vento da estrada. Só o coração magoado se eleva no seu choro fino, só ele acena à poesia quando ela passa montada numa fénix, só ele a vê, ainda assim, para além do ferro e do chumbo, vestida como sempre está, de glória.

domingo, 29 de setembro de 2024

Coleccionadores, galeristas e psicopatas

 




Com o título "The Kill Room - Arte Fatal", um retrato fiel do coleccionismo, dos galeristas e dos artistas. Com a diva Uma Thurman. 





terça-feira, 23 de julho de 2024

Luz


 (Pintura de Cynthia Guimarães Taveira)

Hoje acordei cedo com o barulho dos pássaros, uma discussão entre galinhas na capoeira aqui perto, o luar, o despontar do sol. Tanta luz logo pela manhã. Tinha acabado de sonhar que retornava a uma casa que não era minha nem me dizia nada. Esse retorno, impensável naquilo a que se chama vida real, deu-me uma sensação dupla de liberdade e do perfeito desligamento com o passado. A memória é apenas útil nalguns casos, como este, que nos diz que o passado não prestou o serviço que lhe era devido e a sua utilidade não vai além disso. É o desligamento do passado que nos solta os gestos futuros. A luz do sol e da lua, o canto dos pássaros e a discussão das galinhas pareciam os contrastes possíveis dentro daquilo a que chamamos luz ou manhã. A tentação de acordar e de largar um sonho que não me interessava mais foi demasiado grande, como se houvesse uma fronteira abrupta entre o passado e o presente, sem continuidade ou possibilidade de resolução. Penso muitas vezes que o passado não é resolúvel em vida e que só depois da morte as coisas se compõem, uma justiça que tem de ser adiada se quer efetivamente existir e não aparecer meia morta aparentando todas as Disneylândias do mundo. Há um silêncio qualquer que me acompanha e que é essa fronteira abrupta, não só entre o passado e o presente, mas também entre a não espectativa e a espectativa de tudo. Um silêncio que é todo ele terreno de possibilidades inexploradas onde o paradoxo de aguardar sem aguardar é possível. Caminho sempre envolta nessa capa. A capa-simbolo, não só de proteção, mas igualmente de espaço, de liberdade, de vontade e, sobretudo, de invisibilidade. Logo a seguir sonhei com umas torneiras quadradas, possivelmente vindas dos anos sessenta. No sonho dizia que as torneiras eram velhas o que provava que a casa era velha. Não era antiga, era velha. Ora sabendo que a água é fluida e tende para a curva ao mínimo apelo, aquelas torneiras quadradas, muito prateadas ainda (o tempo parecia não ter passado por elas), tudo me pareceu paradoxal: a visita a uma casa velha, com velhas pessoas que estavam ainda novas como as torneiras quadradas. As torneiras, donde jorra a água viva, não eram apropriadas às curvas, à fluidez. Desse passado não levava nada a não ser uma personagem, demasiado envolvida na casa, que se apresseva em julgar o facto de ter regressado. Um julgamento idiota por não saber do meu total desapego a esse passado. Olhava para a personagem, que abanava a cabeça, desapontada por ter regressado e dizia para mim que não percebia nada desse regresso, que esse regresso era inócuo em mim porque das torneiras quadradas nunca poderia jorrar água verdadeiramente viva. Era um passado que não percebia nada do meu tempo presente, interpretando tudo mal. Acordei porque a luz despontava, a do sol e a lua, também ela ia brilhante no céu e entravam as duas pelas festas das portadas. Esse era o meu tempo presente. Luz.