quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Quem é?



Quem é que foi abandonado à sorte
num semi-berço de verga,
atirado, não ao rio, mas ao mar,
Num balanço de imprevisível aconchego,
ou das coisas que fazem parte
Da ordem da tempestade?
Quem é que nasce segunda vez,
e não sabe que o faz...?
Quem é que nessa pequena barca,
conhece a morte a navegar,
e do horizonte, retira e prova
O sabor de um dia novo?
Quem é que regressando, pára,
nas doiradas areias... lá deixado,
por onda finas, de espuma em renda?
Quem é que lá descobre, nas palavras,
o alimento das eras e a fuga das trevas?
Quem para sempre fica em terra,
balançando como o mar?

É o poeta, é o poeta, quando
Em português se torna e entorna,
(na pátria donde nunca se apartou)
As palavras das estrelas, do sol e do mar.


(Cynthia Guimarães Taveira)

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

Até as ilhas...




Invade-me a alma
Um sentimento do norte
Belas e flamejantes espadas
Encontram o coração do sul
Escolher cima ou baixo é golpe mortal
Abrindo o nativo corpo esguio
sem o pôr ou nascer do sol
Congratulo-o pelas estradas e suas vinhas
E brindo a isso cruzando sabores
Se se bebe um copo nortenho
Perde-se meio dele
No Alentejo deserto que o preenche
Rir a bom rir com tal espírito
Saudades de cada ponta
Se a mão esquerda se ergue e aponta
A direita vai e encontra
Tentar o impossível é desviar caminho
De tantos e tantos que foram
Pelo mar da esperança em repouso
Aí já não esperavam
Sabiam antes do total saudoso
E na distancia encontraram
a distancia de trajos reais vestida
E quando ao longe se brinda e diz
Vem o soberano inteiro sem ponta solta
Até as ilhas afastadas em suas brumas escondidas
se aproximam da festa intima
Entram na arcana dança lusa do não diz que vai
Mas vai e volta na eterna rota que roda viva!

 
(Cynthia Guimarães Taveira)

Lótus


 
Aqueço-me nas palmas dos teus pensamentos
Ouço-te falar em minuciosas canções à vida
Desloco-me no espaço das ideias na tentativa vã
De uma posição confortável
Depois, esqueço-me, e as mãos cedem, deixo-me estar
Ouço-te apenas, porque o som da tua voz é um poema
Embalo-me no teu embalo
E penso nas idades do homem, se serão seguidas,
Comprometidas com o tempo
Ou se, na vida das gentes há flores de lótus eclodindo
Para além da investidura das horas...
Súbitas, abrindo e desaparecendo à luz das viagens
Decididas à última hora, no limite dos ciclos invisíveis
Vindas a qualquer momento, para além dos anos
E do lógico desenrolo do papiro do pensamento

 
(Cynthia Guimarães Taveira)

terça-feira, 14 de outubro de 2014

A memória




Há uma solidão na memória
A solidão do nosso ponto de vista
O canto da sala secreto
Local de observação muito nosso

Há uma companhia na memória
A companhia sem ponto de vista
Toda a casa e por completo
Local de observação todo do Espírito

 
(Cynthia Guimarães Taveira)

L'amour


Amor é uma conversa sem fim com aquele que é totalmente diferente de nós. Haverá coisa mais parecida com a relação que temos com Deus? Tal como dele guardamos a imagem e semelhança sendo que o resto é conversa e uma conversa.


(Cynthia Guimarães Taveira)

No alto mar



Foi esta ruptura absurda,
Vinda não sei de que mar,
que obriga à separação,
que abriga a imensidão.

Foi esta história simples,
de acontecer a arfante fuga
do imenso espelho do ser,
na verdade insubmissa e cruel,
de nada poder contra as palavras,
esvaziando-me e enchendo-me o ser.

Foi esta incapacidade de não conhecer
outra coisa senão estados do mar
que são só vagas de palavras a falar.

Foi esta a longura sem distancia,
este momento de vingança ,
em que um céu maior que o ser,
o invade e o alcança,
em mortificação transparente
de diferentes tempos a acontecer.

Não sei de que mar, de que humor, de que deus,
de que norte ou desnorte veio o vento...
Este remoinho de sóis,  esta arte sem saber,
quem dera a voz, dos trovões, dos mares
Pudesse dizer, na sua pura firmeza,
ser a nave puro espírito, 
adormecendo e aconchegando
a febre do que é existir em palavras vivas

Nada, nada nem ninguém,
sabe o que o Verbo, pode e faz acontecer...
E de que modo se move por entre as frestas da alma,
e de que modo canta nos intervalos das veias,
e de que modo faz as flores nascer em alto mar,
E como se solta em pombas rápidas,
E de que modo é ele mesmo sempre a nascer...


(Cynthia Guimarães Taveira)

 

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Oleiro


Conheci um velho oleiro
Que girava com o barro
Na roda do eterno mundo
Cada dedo sulcava o destino
Cada medo era abismo conhecido
Girava o barro e o oleiro nele
Deixava na ânfora animada
Parte do mistério para sempre moldado
Braços e pernas em ritmo marcado
Sofrem na matéria o efeito desejado
À parede o barro não atirava
Pois a sorte não se encontrava
Nem no destino, nem no pensamento
Apenas na terra pela terra dada
E nessa roda-viva, de sonho e sujidade
A ânfora crescia em mestria e idade
Na história que os homens são
E no espirito irrequieto da alteridade
Brilhava o sol da manhã que cedo entardecida
A roda girava no fundo que é mais fundo
Recuperava cacos de pó dos deuses que foram
Das avenidas que retornavam
De ânforas que em novas se tornavam
Conheci um velho oleiro
Mais velho que o mundo
E dançava na História em jeito de novo ser
Por dentro e por fora dessa ânfora
Guardiã da frescura de novos segredos
E daqueles apenas que a História quer


(Cynthia Guimarães Taveira)